Poder para distribuir poder. Exercê-lo de maneira responsável e democrática mediante direito reivindicado por iniciativa voluntária de agregar valor a um organismo autônomo, sem fins lucrativos e voltado ao interesse de crescimento mútuo e equitativo daqueles que se dispuserem a avocá-lo. Eis o substrato do cooperativismo moderno. Se trata de conteúdo econômico, porém, não de lucro. Diferenças sutis. Consequências colossais.
Desde o marco ocorrido ao século XIX, com o pioneirismo divisor de águas oriundo de Rochdale, como alternativa ao regime exploratório do infortunado assalariado da época vitoriana, a onda crescente do cooperativismo - do ganho mútuo e do impacto convergente de interesses, tem ganhado força e modernização. Tanto o é, que, ao campo jurídico, milita-se pelo reconhecimento do Direito Cooperativo como ramo autônomo de divisão funcional e didática de estudos.
Necessário, portanto, se faz distingui-las de uma associação de natureza comercial ou, mais drasticamente ainda, de uma sociedade com ultimato ao lucro.
Grande traço diferenciador entre as sociedades regularmente instituídas aos olhos da lei, pode ser notado a partir da affectio societatis a ela inerente, consubstanciado no elo subjetivo àqueles que se dispõem a agir em organização societária: Uma sociedade empresária (abrangida aqui por suas inúmeras espécies), propriamente dita, empenhada no exercício de produção econômica organizada, mirará, por natureza, o lucro.
Inobstante as sociedades cooperativas igualmente compartilharem das mesmas características de empresa (atividade econômica), não compartilharão do foco de enriquecimento como última razão, onde esta possui um deslinde social relevante no auxílio dos cooperados para que, estes sim, possam eventualmente desenvolver sua atividade lucrativa por conta própria, a partir dos benefícios compartilhados entre os cooperados. Uma sociedade comercial de lucro pode ser bem sucedida apenas pela constituição de uma única pessoa natural. A sociedade cooperativa sequer existirá sem a união de várias.
Em tal sentido, asseverou Pontes de Miranda, ao afirmar que o
"fim econômico, nas sociedades cooperativas, é atingido diretamente pelos sócios, em seus contactos com a sociedade. O fim econômico, nas sociedades lucrativas, é obtido com a repartição do que a sociedade percebeu de lucro. A diferença é sutil, porém sempre da máxima relevância".
Procedendo-se as palavras do saudoso jurista, a própria Lei Brasileira assim afirmou:
"As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados" (art. 4°, caput, da lei 5.764/71).
Falando-se da lei 5.764/71, veja-se que, desde o início da década de 1970 até hoje, vigora texto legal regulamentador das sociedades cooperativas, o que significativamente traz ao bojo normativo legal brasileiro o patamar de categoria jurídica própria e autônoma a ela intrínseca e necessária.
A relevância de alavancagem social gerada pelo cooperativismo moderno deve ser acompanhada de relevante proteção institucional aos seus alicerces de continuidade.
Sucintamente lançado tal contexto, é com alarde que se denuncia a dificultosa capacidade dos tribunais pátrios, em diversos aspectos de relevância, aplicarem ao imbróglio concreto a correta distinção conceitual e prática das normas próprias de Direito Cooperativo, que, via de regra, perenemente replicam precedentes das cortes superiores em verdadeira ausência de enfrentamento ao overruling que clama o espírito dos tempos.
No presente texto, nos delimitaremos ao seguinte ponto: O errôneo tratamento das quotas sociais integralizadas à Cooperativa como possibilidade de penhora patrimonial para satisfação da dívida civil judicialmente executada:
PROCESSUAL CIVIL E DIREITO SOCIETÁRIO. RECURSO ESPECIAL. PENHORA DE COTAS DE SOCIEDADE COOPERATIVA EM FAVOR DE TERCEIRO ESTRANHO AO QUADRO SOCIETÁRIO. POSSIBILIDADE. 1. A penhora de cotas sociais, em geral, não é vedada por lei, ex vi da exegese dos arts. 591, 649, I, 655, X, e 685-A, § 4º, do CPC. Precedentes. 2. É possível a penhora de cotas pertencentes a sócio de cooperativa, por dívida particular deste, pois responde o devedor, para o cumprimento de suas obrigações, com todos seus bens presentes e futuros (art. 591, CPC). 3. O óbice de transferência a terceiros imposto pelo art. 1.094, inc. IV, do CC/02 e pelo art. 4º, inc. IV, da Lei nº 5.764/71 não impede a penhora pretendida, devendo os efeitos desta serem aplicados em consonância com os princípios societários e características próprias da cooperativa. 4. Dada a restrição de ingresso do credor como sócio e em respeito à afecctio societatis, deve-se facultar à sociedade cooperativa, na qualidade de terceira interessada, remir a execução (art. 651, CPC), remir o bem (art. 685-A, § 2º, CPC) ou concedê-la aos demais sócios a preferência na aquisição das cotas (art. 685-A, § 4º, CPC), a tanto por tanto, assegurando-se ao credor, não ocorrendo solução satisfatória, o direito de requerer a dissolução parcial da sociedade, com a exclusão do sócio e consequente liquidação da respectiva cota. 5. Em respeito ao art. 1.094, inc. I e II, do CC/02, deve-se avaliar eventual dispensa de integralização de capital, a fim de garantir a liquidez da penhora e, ainda, a persistência do número mínimo de sócios na hipótese de exclusão do sócio devedor, em quantitativo suficiente à composição da administração da sociedade. 6. Recurso improvido. (Processo : REsp 1278715 / PR RECURSO ESPECIAL 2011/0220197-1 . Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI (1118). Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento: 11/6/2013. Data da Publicação/Fonte: DJe 18/6/2013).
Veja-se que o precedente trazido acima é, até hoje, referência utilizada para a manutenção da possibilidade de penhora de quotas sociais cooperativas pela autoridade judicante que assim profere entendimento sobre.
Entretanto, soi sobre essa fundamentação ensejar as seguintes ponderações:
O ingresso voluntário a uma cooperativa se preceitua, dentre outros requisitos próprios, à integralização de sua quota social, que passa a se tornar capital patrimonial da cooperativa em que pretende associar-se, sendo, portanto, constitutivo de patrimônio líquido próprio e autônomo, totalmente alheio da esfera de disponibilidade patrimonial do associado que a integralizou (alteração emanada da lei 13.097/2015).
Não se trata de investimento à obtenção futura de lucro (finalidade estranha à atividade cooperativa), mas sim, verdadeiro ato inicial de acesso aos benefícios de mútuo compartilhamento oferecidos por determinada sociedade cooperativa, como forma de atribuir efetivas condições para se conceder tais serviços e benefícios em retorno aos associados, incisivamente se ponderando: O patrimônio da cooperativa, oriundo da integralização de suas quotas capitais é o coração pulsante que mantém e possibilita a manutenção da pessoa jurídica cooperativa.
Neste sentido, a legislação atribuiu taxativamente as excepcionais hipóteses de retirada do patrimônio próprio da cooperativa em favor do associado, proporcionalmente às suas quotas integralizadas: desligamento, demissão, exclusão ou eliminação (art. 24, §4° da lei 5.764/71). Note-se que as hipóteses acima elencadas são o que, de fato, fixam o marco inicial de uma nova disponibilidade patrimonial para a pessoa natural ou jurídica outrora associada.
Tal disposição é tratada com seriedade igualmente pelo Código Civilista que, em atenção às peculiaridades da sociedade cooperativa como organismo autônomo e de natureza própria, fixou a impossibilidade de transferência de tais quotas a terceiros alheios à sociedade cooperativa, não sendo passíveis nem mesmo de tornarem-se objeto de herança (art. 1.094, inciso IV da lei 10.406/2002). Possível perceber que a agressiva proteção ao capital líquido da cooperativa é peculiaridade que não se faz presente às demais sociedades civis e/ou empresárias.
Assim, a penhora e eventual alienação e/ou liquidação compulsória das quotas sociais, forçariam a exclusão societária atípica do executado associado da cooperativa, justamente por se tratar de situação estranha à lei e, possivelmente o será ao próprio estatuto cooperativo, como um necessário efeito colateral extrapatrimonial da execução civil e, nada obstante, é causa diretamente prejudicial à manutenção da própria cooperativa em si, completamente alheia à dívida executada, à medida em que, por força legal, ao momento da penhora indevida das quotas sociais para satisfazer execução cujo seu associado que figura-se ao polo passivo, amargura com verdadeira expropriação patrimonial de bens próprios (art. 24, §4° da lei 5.764/71).
Esclarecida a peculiaridade que gravita ao regime jurídico cooperativo - acompanhada da expressa vedação à transmissão (ainda que por herança!) de suas quotas sociais a terceiros alheios ao organismo cooperativo, o exercício hermenêutico de ordem sistemática torna plenamente enquadrável à hipótese de impenhorabilidade trazida ao bojo do Código de Processo Civilista:
"Não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis" (art. 832, CPC).
Em breves apontamentos de hodierno brilhantismo, preceitua Humberto Theodoro Júnior:
"Além do mais, só os bens alienáveis podem ser transmitidos e, consequentemente, penhorados. Nosso Código de Processo Civil é, aliás, expresso em dispor que "não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis" (NCPC, art. 832). A regra básica, portanto, é que a penhora deve atingir os bens negociáveis, ou seja, os que se podem normalmente alienar e converter no respectivo valor econômico"
Consoante tal natureza incompatível com a transmissibilidade das quotas sociais, veja-se que o fundamento aventado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça à ementa acima colacionada, traz em seu bojo a indevida ultrapassagem dos limites de responsabilidade patrimonial para satisfação da dívida exequenda onde, pela via processual legal, deve tão somente limitar-se aos bens do devedor – aquele que efetivamente contraiu a dívida. (art. 789, CPC) - ressalvadas situações excepcionais previstas de responsabilização patrimonial secundária.
Ora, permitir tal espécie de penhora é, em verdade, transcender a responsabilidade patrimonial do devedor, levando à cooperativa o ônus de iniciativa para que conceda "preferência" de arrematação a outros associados, ou, teratologicamente ainda, que efetue remição da dívida do associado executado. É verdadeiramente criar nova hipótese atípica de responsabilização patrimonial secundária (art. 790, CPC).
Tal proteção atribuída ao patrimônio da cooperativa é matéria de ordem pública e deve ser observada e manifestada de ofício pelo magistrado.
Há verdadeiro anacronismo em aplicar-se tal fundamento superado e favorável à penhora em tempo posterior à lei 13.097/2015, onde efetivamente acrescentou-se expresso mandamento de titularidade do patrimônio de quotas como de pertencimento à sociedade cooperativa (art. 24, §4° da lei 5.764/71).
Por consequência lógica da exposição, a única situação possível de penhora de quotas sociais de sociedade cooperativa que ora se vislumbra, acostaria-se às hipóteses do credor postulador da penhora ser, ao momento exequendo, igualmente já associado a própria cooperativa titular das quotas ou, até mesmo, fosse a própria cooperativa figuradora do polo ativo da relação processual executória.
Quiçá, possível se vislumbrar como alternativa à equívoca penhora sobre as quotas sociais - no intuito de se evitar que o devedor cooperado use indevidamente da integralização de suas quotas sociais como forma de blindagem patrimonial, ser plenamente possível considerar por alternativa, a determinação judicial que bloqueie e impeça o levantamento das quotas sociais enquanto se perdurar a dívida executada, como forma de medida atípica para alcance da efetividade da tutela executória, valendo-se, ato contínuo, de penhora sobre eventuais sobras líquidas do exercício cooperativo (art. 4°, VII, lei 5.764/71), nos limites e critérios de distribuição estatutariamente e/ou por assembleia geral definidos, à vista que, a penhora destas não ensejaria na retirada do capital do próprio organismo, não provocando risco de manutenção e serviliência aos demais cooperados, nem violação à ordem legal e axiológica do cooperativismo.
Entrementes, sob o olhar macroscópico, tal insegurança jurisprudencial sobre a tutela legal do patrimônio líquido e integrado à cooperativa, irrestritamente aplicada como regra ao Superior Tribunal de Justiça, ataca o cerne do próprio estímulo ao cooperativismo, um mandamento de otimização elevada à ordem constitucional (art. 174, §2°, CRFB/88), o que deve ser precipuamente, em tempo, despertado aos olhos do julgador.
Estimular o cooperativismo significa estimular a devida tutela ao seu patrimônio constitutivo. Um não subsiste sem o outro. Penhorar uma quota de sociedade cooperativa é penhorar um capital cooperativo, é estender a responsabilidade patrimonial a seu nível ultra legem.
Conclusivamente, possível preceituar-se que, em caso de indevida constrição patrimonial da cooperativa por fundamento em penhorabilidade de quota social por dívida contraída por cooperado, plenamente cabível configurar-se o interesse e legitimidade da sociedade cooperativa a fim de opor ao ato jurisdicional, embargos de terceiro, nos moldes do art. 674 e seguintes do Código de Processo Civil.
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1 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Parte especial, tomo XLIX. Rio de Janeiro, Borsoi, 1965;
2 BECHO, Renato Lopes. Elementos de direito cooperativo [livro eletrônico] - 2. Ed., atual. e ampl. - São Paulo, Thomson Reuters Brasil, 2019;
3 NAMORADO, Rui. Introdução ao Direito Cooperativo. Coimbra: Almedina, 2000;
4 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – vol. III . 50. ed, atual. e ampl. – Rio de Janeiro, Forense, 2017;