Migalhas de Peso

As cautelares preparatórias da recuperação judicial

Uma breve análise sobre qual deverá ser a data termo para fins de sujeição das obrigações contraídas entre a distribuição da tutela cautelar antecedente e o aditamento do pedido de recuperação judicial.

16/6/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

I. AS MEDIDAS CAUTELARES E A LEI 14.112/2020

As mudanças trazidas pela lei 14.112/2020, muitas delas construídas pela jurisprudência, contemplaram diversas novas ferramentas de notável relevância no âmbito prático-processual da insolvência.

A exemplo de tais inovações, está a possibilidade de se obter o adiantamento dos efeitos do Stay Period1 –– leia-se: suspensão das ações e execuções em face da Devedora ––, mesmo sem possuir o deferimento do processamento da Recuperação Judicial, nos termos do artigo 6º, § 12, da lei 11.101/2005.

A inserção do mencionado parágrafo visou, claramente, resguardar a preservação da atividade empresária, vez que, manter a empresa em crise desprotegida até a decisão de deferimento do processamento da Recuperação Judicial, poderia vir a esvaziar o próprio intuito da lei 11.101/2005 – qual seja a manutenção da função social.

Embora tal regra tenha sido inicialmente pensada para a hipótese de uma tutela incidental ao pedido de Recuperação Judicial já distribuído, com o objetivo de antecipar os efeitos do Stay Period até que se obtenha o deferimento do seu processamento2, acredita-se que, com o advento da nova previsão legal, será usual a utilização do instituto para o ajuizamento de tutela cautelar em caráter antecedente, regulada pelo artigo 303 do Código de Processo Civil.

Nesse sentido, com o intuito de se obter a antecipação dos efeitos do Stay Period antes mesmo do pedido de Recuperação Judicial, a devedora poderá solicitar a suspensão de execuções específicas, demonstrando a probabilidade do direito e o perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo3.

Salienta-se que, nesta hipótese, os documentos que devem ser juntados quando do pedido da tutela cautelar antecedente são apenas aqueles exigidos pelo artigo 48 da lei 11.101/20054. Seguindo-se os trâmites processuais, os demais documentos previstos no artigo 51 seriam juntados por ocasião do aditamento à petição inicial no prazo de 30 (trinta) dias, conforme artigo 308, caput, do Código de Processo Civil.

A exemplo do exposto, citam-se as tutelas cautelares antecedentes preparatórias ao pedido de Recuperação Judicial ajuizadas pelo Figueirense Futebol Clube5 e pelo Instituto Metodista de Educação6, as quais geraram grande repercussão no âmbito da insolvência nacional. Em ambos os casos, as autoras obtiveram sucesso no deferimento da liminar.

II. A DISTRIBUIÇÃO DA TUTELA, O ADITAMENTO DO PEDIDO PRINCIPAL E O ARTIGO 49, CAPUT, DA LEI 11.101/2005

Considerando a utilização da tutela cautelar em caráter antecedente para obtenção dos efeitos do Stay Period em momento anterior ao deferimento do processamento da Recuperação Judicial, pode-se observar a existência de dois marcos importantes: a data de distribuição da medida cautelar e, também, a data do aditamento do pedido principal.

A partir de tal constatação, retomando-se a importância e a extensão dos efeitos do artigo 49, caput, da lei 11.101/2005, o que se tem de questionamento e controvérsia é, enfim, qual realmente seria a data termo para classificação dos créditos concursais e extraconcursais: a data da distribuição da medida cautelar ou a data do aditamento do pedido principal. O legislador, aqui, não previu qualquer resposta.

Observa-se que a referida controvérsia certamente abarcará ampla discussão com relação às obrigações contraídas no interregno de tempo entre a distribuição da tutela e o aditamento do pedido propriamente dito, período esse que, como corolário lógico, poderia alterar os interesses de vários credores – sejam aqueles já existentes, sejam aqueles que, eventualmente, resolvessem comercializar com a devedora nesse espaço de tempo.

Como se vê, a interpretação de tal problemática, via de regra, segue duas vertentes:

De um lado, é certo que, caso se considere a data do pedido de tutela para fins de sujeição, todas aquelas obrigações, constituídas após tal período, seriam consideradas não sujeitas aos efeitos recuperacionais.

Contudo, ressalva-se que tal intepretação iria de encontro à eficácia jurídica, vez que os créditos anteriores, neste caso, estariam sujeitos a um processo de Recuperação Judicial que, a bem da verdade, sequer teria se concretizado – podendo, até mesmo, nunca existir.

Isso porque, se analisados os preceitos da tutela cautelar antecedente no âmbito do Código de Processo Civil, verificar-se-á que o aditamento do pedido principal em 30 (trinta) dias não é mandatório. O autor da demanda poderá desistir de sua pretensão sem necessitar de qualquer consentimento, ocasião na qual, de acordo com o artigo 309, incisos I e II, do Código de Processo Civil, apenas cessarão os efeitos da tutela anteriormente concedida. Tal entendimento já era, inclusive, pacificado pela súmula 482 do STJ7, a qual remanesce íntegra.

Assim, o não aditamento da petição inicial ensejaria, como consequência prática, a extinção do processo cautelar sem resolução do mérito8.

Seguindo-se tal linha de raciocínio, apenas se estaria diante de um efetivo processo de Recuperação Judicial quando (e se) efetuado o aditamento do pedido propriamente dito no prazo de 30 (trinta) dias, sendo controverso considerar, portanto, que os créditos anteriores poderiam ser sujeitos a um procedimento que, ao menos nesse período, sequer existiria.

Nessa ocasião, a tutela cautelar antecedente apenas e tão somente suspenderia a execução de créditos específicos, não interferindo nessa regra geral de sujeição de créditos aos efeitos da Recuperação Judicial.9

Nesse sentido, considerar a data de distribuição da tutela para fins do artigo 49, caput, da lei 11.101/05, talvez, pudesse não vir a ser a interpretação mais coerente sob este ponto de vista.

Por outro lado, se considerada a data do aditamento da petição inicial como marco temporal para a sujeição das obrigações, sabendo-se que o período contemporâneo ao início de uma Recuperação Judicial é crucial para que a atividade empresária se mantenha hígida, as relações comerciais tidas nesse interregno temporal poderiam ser impactadas.

Como exemplo, deve-se imaginar o sentir de seus potenciais e/ou já existentes fornecedores: se considerada a data do pedido principal como termo para fins de sujeição, certo que haveria desmedida insegurança e engessamento de tais relações comerciais, vez que todas aquelas obrigações posteriores ao ajuizamento da medida cautelar restariam sujeitas ao procedimento, culminando-se, pois, em um possível desinteresse de se comercializar com a empresa neste período.

O mesmo aconteceria com os agentes financeiros: se a sujeição for delimitada pelo pedido principal, não haveria a pretensão de se fomentar a atividade da devedora nessa fase – fator primordial para a manutenção de seu going concern.

De forma conclusiva, diante da possível estagnação no fomento de sua atividade nesse espaço de tempo – o qual, apesar de curto, é essencial para a preservação da empresa – a celeridade no aditamento do pedido principal deverá ser uma questão amplamente considerada pela devedora, sob pena de tornar este racional conflitante aos seus próprios interesses particulares.

III.   CONCLUSÃO

Viu-se, na discussão abordada, a existência de ao menos duas vertentes interpretativas com relação à data considerada para fins de sujeição dos créditos nos casos em que distribuída a medida cautelar preparatória à Recuperação Judicial.

No entanto, apesar da existência de argumentos plausíveis para a defesa de ambas as interpretações, entende-se que a antecipação dos efeitos do Stay Period, por si só, não possui o condão de sujeitar os créditos futuros ao oportuno processo de Recuperação Judicial.

Neste sentido, a regra geral prevista pelo artigo 49, caput, da lei 11.101/2005 se manteria incólume, de forma que todos os créditos existentes ao tempo do aditamento do pedido principal de Recuperação Judicial poderão ser incluídos no procedimento10.

De todo modo, para que esta interpretação se revele como a mais adequada e coerente com relação ao contexto da lei 11.101/2005 e os princípios que a regem, a devedora deve zelar pela presteza na apresentação do pedido principal, sobretudo para garantir o fomento de sua atividade nesta fase e evitar o desaquecimento das suas relações comerciais.

Todavia, diante da carência legislativa sobre a questão, conclui-se que a jurisprudência enfrentará mais uma grande tarefa em moldar e consolidar o entendimento que melhor repercutirá dentro do sistema de insolvência brasileiro.

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1 Referida suspensão é motivada pela tentativa da lei de criar, com a Recuperação Judicial, um ambiente institucional para a negociação entre credores e devedores. A suspensão das ações e execuções impede que credores individuais retirem bens imprescindíveis à reestruturação da atividade, o que assegura ao devedor a possibilidade de estabelecer no plano de recuperação meios para sanar a crise econômico-financeira pela qual passa. (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência. Saraiva Educação. São Paulo, 2018, p. 78)
2 COSTA, Daniel Carnio; NASSER DE MELO, Alexandre. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência: Lei 11.101/2005, Curitiba: Juruá, 2021, p. 97.
3 COSTA; NASSER DE MELO. Op cit., p. 97.
4 COSTA; NASSER DE MELO. Op cit., p. 97.
5 FLORIANÓPOLIS/SC, Vara Regional de Rec. Judiciais, Falências e Concordatas, Processo 5024222-97.2021.8.24.0023, 11/3/2021.
6 PORTO ALEGRE/RS, Vara de Direito Empresarial, Recuperação de Empresas e Falências, Processo 5035686-71.2021.8.21.0001, 9/4/2021.
7 Súmula 482: A falta de ajuizamento do processo principal no prazo do art. 806 do Código de Processo Civil acarreta a perda da eficácia da liminar deferida e a extinção do processo cautelar.
8 A não formulação do pedido principal no prazo legal pelo autor demonstraria a falta de interesse processual no prosseguimento da ação como meramente cautelar, o que representaria uma desistência tácita da ação, fazendo incidir o art. 485, III (MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: RT, 2015, p. 496)
9 COSTA; NASSER DE MELO. Op cit., p. 97.
10 COSTA; NASSER DE MELO. Op cit., p. 97.

Alexandre Correa Nasser de Melo
Advogado e administrador judicial. Sócio fundador da Nasser de Melo-Adv. Associados e da Credibilità Administrações Judiciais. Coordenador da pós-graduação de Recuperação Judicial e Falência da PUCPR.

Fernanda Luppi Drugowich
Advogada, graduada em Direito pela PUC/CAMPINAS; pós-graduanda em Falência e Recuperação de Empresas pela PUC/PR; membro da Comissão de Estudos em Falência e Recuperação Judicial da OAB Campinas - 3ª Subseção; atuante na área de Recuperação Judicial e Falências, Reestruturação de Empresas e Recuperação de Crédito.

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