Em 30 de abril de 2021, foi publicado na imprensa oficial o decreto 65.662, expedido pelo Governador do Estado de São Paulo, que atribui à Secretaria de Logística e Transportes a competência para: (i) celebrar contratos de concessão ou permissão dos serviços públicos de transporte e seus respectivos aditivos; e (ii) firmar acordos e compromissos de implementação de reequilíbrio econômico-financeiro nos contratos de concessão regulados pela Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados de Transporte de São Paulo - ARTESP.
Referido decreto veio para suprir a lacuna deixada pela alteração do artigo 4º, inciso V, da Lei Complementar 914/02 (que cria a ARTESP), promovida pela lei 17.293, de 25 de outubro de 2020, que estabelece medidas ao ajuste fiscal e ao equilíbrio das contas públicas. Explicamos.
O artigo 4º da Lei Complementar 914/02, lei que criou a ARTESP, estabeleceu as competências dessa autarquia de regime especial e previa, no inciso V, que lhe cabia “celebrar e gerenciar os contratos de prestação de serviços públicos de transporte, inclusive do transporte rodoviário intermunicipal de passagens e aquaviário”. Desde então, portanto, todos os contratos de concessão de serviços públicos de transporte e os respectivos aditivos eram assinados pela ARTESP, representada por sua Diretoria Geral.
Ocorre que, em 16 de outubro de 2020, foi publicada a lei 17.293, que, dentre medidas voltadas para implantar ajuste fiscal no Estado de São Paulo, alterou exatamente a redação desse inciso V, retirando da ARTESP a competência para celebrar os contratos, permanecendo com ela a competência de “gerenciar os contratos de prestação de serviços públicos de transporte, inclusive do transporte de passageiros”.
Em que pese a supressão dessa competência da ARTESP, na ocasião da alteração da legislação, a referida competência não foi atribuída a outro ente ou órgão do Estado de São Paulo, permanecendo uma lacuna legislativa que foi então integrada pelo decreto 65.662, que atribuiu tal competência à Secretaria de Logística e Transportes. Isso é comprovado, inclusive, pela disposição contida no art. 2º do Decreto, que faz retroagir seus efeitos para o dia 16 de outubro de 2020, data da publicação da lei 17.293.
Em nosso entender, sem adentrarmos com profundidade na questão técnico-jurídica, que não é objeto do presente artigo, tanto a lei 17.293, que suprimiu essa competência da ARTESP, quanto o decreto 65.662, que a atribui à Secretaria de Logística e Transporte, corrigem o vício de delegação anteriormente existente na legislação estadual, já que o titular do “serviço” concedido sempre foi o Estado, cabendo-lhe, portanto, figurar como contratante ou delegar tal competência a um órgão, mas jamais à entidade reguladora.
Mais relevante do que essa discussão a respeito da natureza jurídica das autarquias, a alteração legislativa implementada em 2020 e integrada pelo recente Decreto demonstra a intenção do Estado de participar mais ativamente da gestão dos contratos de concessão e permissão dos serviços públicos de transporte.
Veja que a competência agora atribuída à Secretaria de Logística e Transporte não se limita à celebração dos contratos e dos aditivos, mas compreende, também, os acordos administrativos e compromissos para implementação de reequilíbrio econômico-financeiro, submetendo a ARTESP ao controle e aos anseios do Estado quanto à condução e à conclusão do respectivo processo.
O Decreto aqui em análise deve ser analisado em conjunto com o artigo 36 da lei 17.293, que determina a cientificação prévia do Estado a respeito de qualquer matéria que lhe possa gerar encargo, ônus financeiro ou obrigação, que só depois irá à deliberação da diretoria Geral da ARTESP.
Ainda que a própria Lei tenha estabelecido que a manifestação do Estado nesses casos não é vinculativa e respeitará a autonomia própria das agências reguladoras, a experiência que possuímos em regulação das concessões dos serviços públicos de transporte nos leva a crer que os órgãos de direção das agências não contrariarão eventual manifestação negativa do Estado a respeito de pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro, ainda que, técnica e economicamente, os estudos realizados pela ARTESP demonstrem a procedência dos pedidos.
Além disso, a redação do Decreto quanto à competência da Secretaria de Logística e Transportes para celebrar “acordos administrativos e firmar compromissos” é bastante ampla e nos parece que visa abarcar aqueles ajustes que sejam decorrentes de meios alternativos de solução de controvérsia, como conciliação, mediação e arbitragem.
Podemos dizer que toda essa alteração legislativa atribui ao Poder Executivo, por meio da Secretaria de Logística e Transportes, uma espécie de “supervisão” da atividade de regulação da ARTESP. Por um lado, isso reduz os riscos de embates judiciais entre o Estado e as concessionárias, como ocorre nos casos de alguns aditivos de postergação de prazo de contratos de concessão de rodovias, questionado pelo Estado mesmo após a formalização pela ARTESP. Por outro lado, suscita dúvidas a respeito da preservação da autonomia da ARTESP no exercício de sua atividade de regulação, o que não contribui para um ambiente regulatório estável e para a segurança jurídica das relações contratuais.
Veja-se que, as novas competências da Secretaria de Logística e Transporte do Estado de São Paulo quanto aos contratos de concessão dos serviços de transporte trazem diversas implicações na regulação desses serviços, em especial quanto aos aditivos de reequilíbrio, sendo necessária constante vigilância dos operadores do Direito e dos órgãos de controle para que a harmonia nas relações entre o Poder Concedente, a ARTESP e os concessionários prevaleça, de forma que não haja interferências políticas indevidas nem privilégios descabidos, tudo em prol da coletividade e dos interesses dos usuários dos serviços públicos de transporte no Estado de São Paulo.