Migalhas de Peso

Os reflexos da pandemia no descumprimento do plano de recuperação judicial

De acordo com a doutrina majoritária, a relação entre o devedor e os credores consiste em uma relação de cunho contratual, disponível para deliberação, sendo o plano de recuperação judicial como um verdadeiro "contrato judicial".

16/6/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

É certo de que a atual pandemia gerada pela covid-19 é a maior crise global enfrentada, fato confirmado pela ONU¹, e que vem sendo também corroborado no judiciário em âmbito nacional, por meio de decisões judiciais², as quais vêm considerando como caso fortuito ou força maior.³

Considerando esse cenário, as empresas que já estão em processo de recuperação judicial têm buscado ancorar-se nas dificuldades deste momento delicado, para justificar o descumprimento das obrigações previstas no plano de recuperação judicial homologado, sem que haja imediata convolação em falência, conforme preconiza o art. 61, §1º, da lei 11.101/05.

De acordo com a doutrina majoritária, a relação entre o devedor e os credores consiste em uma relação de cunho contratual, disponível para deliberação, sendo o plano de recuperação judicial como um verdadeiro "contrato judicial". Por meio do qual, se declaram as razões pelas quais a empresa precisa utilizar-se das faculdades previstas na lei 11.105/05, também porque é nele que a empresa aponta por quais meios pretende alcançar o objetivo de soerguimento, e os instrumentos de que pretende se utilizar para tanto.

Assim, percebe-se que com a aprovação do plano de recuperação judicial pelos credores, cria-se uma espécie de contrato, no qual a empresa assume obrigações e, ainda, compromete-se a colaborar com o Juízo e Administrador Judicial – profissional idôneo nomeado para fiscalizar as atividades do devedor e o cumprimento do plano de recuperação judicial –, sendo que o descumprimento de qualquer obrigação disposta ensejará na imediata convolação em falência.

Para ilustrar tal conceito, por exemplo, durante esse cenário de pandemia da covid-19, uma empresa que atua no segmento de e-commerce provavelmente teve suas atividades aumentadas – e consequentemente seu lucro. Lado outro, as empresas do ramo de prestação de serviços in loco (e.g. cinemas) tiveram seu faturamento “zerado” no mesmo período. Assim, não há que se invocar a força maior no primeiro exemplo que possa justificar eventual descumprimento do PRJ4.

Neste sentido, a ilustre professora MICAELA BARROS BARCELOS FERNANDES resumiu a dicotomia que vivemos: “É incontestável o entendimento de que a presente escalada de medidas restritivas ao trânsito de pessoas e de produtos decorrentes da pandemia COVID-19 impacta bastante a indústria e o comércio de produtos e serviços. Mas não se pode invocar a pandemia, ou as medidas que se seguiram a ela, como razões de força maior para autorizar quaisquer descumprimentos. Embora, sem dúvida, as circunstâncias da pandemia constituam fato necessário e com efeitos inevitáveis é preciso saber, em cada relação jurídica, se os eventos relacionados à covid-19 efetivamente afetaram a capacidade de cumprimento das obrigações pelas partes. Saber se os fatos serão enquadráveis como evento de força maior, e quais os caminhos possíveis, depende da análise de cada caso em concreto. Uma vez sendo de fato possível caracterizar a pandemia (ou fato dela decorrente) como evento que concretamente possa ser caracterizado como de força maior, é preciso saber se as partes dispuseram, e como, sobre este tipo de circunstância.”. (O impacto do coronavírus em contratos paritários)5.

Portanto, deve-se observar cautelosamente não apenas se este descumprimento está relacionado à pandemia, mas também os artigos 61, §1º e 73, IV da lei 11.101/05, que preceituam a imediata convolação em falência no caso de descumprimento de plano de recuperação judicial.

Senão, as recuperandas buscarão respaldo desenfreado também no princípio basilar da lei de Recuperação Judicial e Falência, de preservação da empresa (mesmo que a própria legislação já sobressalte a criação de reserva monetária para a remota hipótese de impossibilidade de pagamento de parcelas), e na recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)6 aprovada com a finalidade de mitigar os impactos decorrentes das medidas de combate à contaminação pela Covid, em detrimento dos credores e todo o processo recuperacional.

Recentemente, em 02 de fevereiro de 2021, foi proferido acórdão da lavra do Desembargador Relator Sebastião Barbosa Farias nos autos do Agravo de instrumento 1008032-96.2020.8.11.00007, de analise detidamente técnica e precisa para o caso concreto, mantendo a decisão a quo de convolação em falência de Recuperação Judicial já frustrada e rechaçando a aplicação das flexibilidades dispostas pelo judiciário em razão da pandemia. Transcreve-se:

“RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO – PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL – DESCUMPRIMENTO – CONVOLAÇÃO EM FALÊNCIA DECRETADA - DECISÃO MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO. Mantém-se a decisão de primeiro grau que convolou a recuperação judicial em falência da empresa, quando incontroverso que a recuperanda não cumpriu o plano.

(...). In casu verifica-se que a r. decisão agravada determinou a convolação da recuperação judicial deferida à recorrente em falência, diante da absoluta impossibilidade de soerguimento da Recuperanda.

Fora concedida a recuperação judicial; porém foram detectadas várias inconsistências e, inadimplemento do plano de recuperação judicial aprovado.

Não é demais mencionar que a preservação da empresa deve ser perseguida quando ela apresenta condições de promover à sociedade benefícios ao desenvolvimento, cumprindo-se a sua função social, e não quando a empresa somente traz prejuízos.

A decretação da falência de uma empresa inviável atende muito mais à sociedade do que o prolongamento da sua existência, que pode gerar ainda mais dívidas e desequilíbrio econômico.

O pleito de apresentação de novo plano de recuperação judicial, na hipótese, não representa a melhor alternativa.

Observe-se que a agravante já descumpriu o plano aprovado e homologado, sendo que a lei 11.101/05, em seus artigos 61, §1º e 73, inciso IV, são assertivos ao dispor que o descumprimento de obrigação assumida no plano de recuperação judicial acarreta a convolação em falência.

Assim, deve ser mantida a r. decisão agravada que convolou a recuperação judicial da empresa recorrente em falência.”

Seguindo a esteira de raciocínio, a recomendação do CNJ abarca algumas recomendações aos Juízos com competência para o julgamento de ações de Recuperação Judicial e falência, sendo importante destacar o seguinte trecho: “[...] (iv) a autorização de apresentação de plano modificativo pela recuperanda, a ser submetido aos credores, desde que reste comprovado que a diminuição de sua capacidade de cumprimento do plano, anteriormente aprovado, ocorreu em razão da pandemia da covid-19. Recomenda-se, ainda, a consideração de ocorrência de força maior ou caso fortuito para a relativização da decretação de falência, prevista no art. 73, IV, da lei 11.101/2005 (art. 4º). ”(g.n.)

Pelo exposto, no atual cenário jurídico, a análise deve ser minuciosa como, por exemplo, análise de Relatórios Mensais de Atividades, fluxo de caixa, análise do mercado em que a empresa está inserida e medidas elaboradas pelo governo a fim de ajudar os setores atingidos, considerados para que não haja aproveitamento dos devedores que já estavam em desarmonia com as obrigações assumidas antes mesmo que pudéssemos imaginar os reflexos da pandemia, sem qualquer fundamento, como honrosamente vem sido seguido pelo judiciário.

Logo, faz-se mister observar o instituto proposto da maneira correta e não deturpar o seu uso. As avaliações dos casos concretas precisam ser levadas ao extremo para que não haja mais prejudicados do que beneficiados com as decisões.

Inegável que a todos interessa a manutenção da atividade empresarial daqueles que, sem culpa ou dolo, veem-se em situação difícil. Da mesma forma que, é inconteste que a pandemia requer medidas excepcionais e o que se espera das partes envolvidas neste tempo de incertezas é que se tenha em mente a necessidade de aplicação dos princípios do direito obrigacional e contratual que norteiam a relação em sociedade em nosso país.

Assim, em se tratando de um choque profundo, mas de natureza essencialmente transitória, as regras e obrigações continuam a existir, de modo que os prejuízos experimentados pelos credores de recuperações judiciais anteriores à pandemia não podem ser inversamente proporcionais aos sacrifícios que os devedores se impõem para cumprir as obrigações assumidas.

___________

1. Disponível aqui.

2. Em tempo de guerra, que é, mutatis mutandis, aquele que vivemos em face da pandemia do coronavírus, assim deve realmente ser" (TJSP. AI 2061905-74.2020.8.26.0000. Relator: Des. Cesar Ciampolini. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Julgamento monocrático em 05.04.2020).

3. (TJSP. Processo 1009030-93.2020.8.26.0114. Juiz: Renato Siqueira de Preito. 1ª Vara Cível da Comarca de Campinas. Julgamento em 6/4/20).

4. Plano de Recuperação Judicial

5. Disponível aqui.

6. Disponível aqui.

7. PRIMEIRA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO – TJMT

Bruna Marques Saraiva
Advogada do escritório Carmona Maya, Martins e Medeiros Sociedade de Advogados. Formada pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Está inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo.

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