I - INTRODUÇÃO
A lei complementar 116, de 13 de julho de 2003, nos termos do inciso II do §3º do artigo 156 da Constituição Federal, dispõe em seu artigo 2ª, inciso I, que o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) não incidirá nas exportações de serviços para o exterior do país:
Art. 2º O imposto não incide sobre:
I – As exportações de serviços para o exterior do País; [...]
Parágrafo único. Não se enquadram no disposto no inciso I os serviços desenvolvidos no Brasil, cujo resultado aqui se verifique, ainda que o pagamento seja feito por residente no exterior.
O parágrafo único do mesmo dispositivo, por suja vez, institui como requisito para a isenção do imposto que os resultados dos serviços desenvolvidos no Brasil, com vistas à exportação, não sejam verificados em território nacional, ainda que o pagamento por sua contratação seja realizado por residente no exterior.
Contudo, a falta de uma definição legal do que configura "resultado" do serviço abriu campo para a defesa de interpretações divergentes, opondo contribuintes e autoridades fiscais.
O cerne dessa controvérsia está na fixação do conceito de "resultado" atrelado à materialização do serviço (execução) ou no local aonde o mesmo gera os efeitos pretendidos pelo tomador (utilidade-consumo).
Em autuações fiscais e processos administrativos e judiciais, os Fiscos municipais defendem que a materialização do serviço (execução) em território nacional implicaria na inexistência de exportação, impedindo o gozo da isenção por parte do prestador.
Os contribuintes do ISSQN, por sua vez, defendem a interpretação de que "resultado", para fins de aplicação da ressalva à norma isentiva, implica na situação em que, além da execução do serviço se dar em território nacional, a consecução da sua utilidade, considerada como sendo a sua efetiva fruição pelo tomador, também ocorre no território nacional.
E mesmo se considerando "resultado" como fruição, não é totalmente indene de dúvidas quais os critérios que definem se determinado serviço foi ou não fruído no exterior, tendo em vista a enorme multiplicidade de situações que podem se apresentar, nos mais diversos serviços.
Consolidada a controvérsia, os contribuintes se veem numa situação de insegurança jurídica, que se mantém mesmo após mais de 17 anos da promulgação da LC 116/03. O que traz prejuízos à estruturação dos seus negócios, já que a incidência ou não do ISSQN é fator determinante para a formação do valor do serviço que prestam.
Não sendo possível, em várias situações, a certeza e segurança da não incidência dessa tributação, insere-se um fator de imprevisibilidade que prejudica a dinâmica empresarial e a própria competitividade internacional das empresas brasileiras que atuam buscando a captação de serviços por tomadores estrangeiros.
O presente artigo visa explicitar que, atualmente, já se vislumbra a construção de um arcabouço jurisprudencial que, se mantido, dará maior segurança na aplicação da norma de isenção para a exportação de serviços.
II – Atual contexto da evolução jurisprudencial
Há quase duas décadas contribuintes e autoridades fiscais se veem às voltas com a falta de pacificação sobre qual é o conceito de "resultado" para a configuração ou não de exportação de serviços.
A divergência se encontra na caracterização do termo através da materialização do serviço ou a sua utilidade. Se, por um lado, a materialização se traduz na execução/consumação do serviço contratado, reduzindo o campo da aplicação da isenção fiscal; por outro, o critério utilidade/fruição traz uma maior abrangência à norma isentiva, ao vinculá-la à situação em que, apesar do serviço ter sido executado no Brasil, a fruição da sua utilidade ocorreu no exterior.
O que permite a diferenciação entre a atividade do prestador (execução do serviço) e as específicas situações do tomador (importador de serviço) é a natureza da relação negocial, concernente na contratação de serviço de prestador brasileiro, mas cuja fruição (utilizada ou benefício) será gozada pelo tomador no exterior.
A evolução desse tema pela Secretaria Municipal de Finanças de São Paulo é bastante significativa da dificuldade de pacificação de entendimento, com a edição no ano de 2016 de dois Pareceres Normativos com o objetivo de esclarecer o posicionamento do fisco paulistano sobre o conceito de "resultado".
Em 26/04/16, o Parecer Normativo 2¹ definiu "resultado" como sendo "a própria realização da atividade descrita na lista de serviços do artigo 1º da lei 13.701, de 24 de dezembro de 2003, sendo irrelevante que eventuais benefícios ou decorrências oriundas dessa atividade sejam fruídos ou verificados no exterior ou por residente no exterior.", dispondo, ainda, que "o resultado aqui se verifica quando a atividade descrita na referida Lista de Serviços se realiza no Brasil."
Esse Parecer Normativo trouxe a interpretação restritiva que vincula "resultado" à mera realização da atividade de prestação do serviço, o que inequivocamente restringia de forma abusiva a isenção dada pela legislação.
A reação contrária dos contribuintes e da advocacia tributária foi bastante forte, o que certamente contribuiu para que fosse revisto o posicionamento do fisco paulistano. O que ocorreu com a edição, em 10/11/16, do Parecer Normativo 4², revogando o anterior e alterando o critério para determinar que "considerar-se-á exportado quando a pessoa, o elemento material, imaterial ou o interesse econômico sobre o qual recaia a prestação estiver localizado no exterior". Ainda, estabeleceu que "independe da entrega do respectivo produto ao destinatário final ou de outras providências complementares".
Apesar do importante reconhecimento de que o conceito correto de "resultado" se refere à fruição da utilidade decorrente do serviço, o Parecer Normativo nº 4 trouxe exceções à regra, a exemplo dos serviços de informática e pesquisas, para as quais restou mantida a controvérsia nessas áreas.
Essa evolução, de reconhecimento do conceito de resultado-utilidade, contudo, não se implementou em grande parte dos municípios, mantendo acessa a controvérsia e o contencioso entre contribuintes e fiscos.
Tratando-se de controvérsia sobre a intepretação de dispositivo de lei complementar (artigo 2ª, inciso I, parágrafo único da lei Complementar 116/03), cabe ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidar a interpretação da norma.
Entretanto, como não é incomum, a formação do entendimento do STJ não se dá com a celeridade desejada e, muito menos, de forma linear, o que demanda a análise dos principais julgados sobre a matéria e da sua repercussão nas decisões dos tribunais inferiores.
O julgamento do Recurso Especial 831.124/RJ³, pela Primeira Turma do STJ, em outubro de 2006, é considerado o marco inicial do enfrentamento da matéria pela Corte.
No caso concreto analisado, o Contribuinte impetrou mandado de segurança em face do Fisco municipal do Rio de Janeiro visando o reconhecimento da não incidência do ISSQN sobre os serviços de retificação, reparo e revisão de motores e turbinas de aeronaves, contratadas por empresas estrangeiras. Em suas razões, a empresa arguia a incidência da isenção, tendo em vista que os serviços somente se finalizavam após o cliente verificar o resultado e realizar o pagamento pela contratação, fatos que ocorrem fora do Brasil.
Contudo, a Primeira Turma do STJ, à unanimidade, negou provimento ao recurso especial da empresa e manteve o acórdão recorrido, por entender que não haveria a caracterização da exportação de serviços. Para a Turma, ainda que o serviço tenha sido contratado por empresa estrangeira, o resultado foi verificado no Brasil, pois foi concluído em território brasileiro, sendo irrelevante que os equipamentos tenham sidos enviados e montados no exterior. Veja-se trecho extraído do voto vencedor proferido pelo Ministro Relator José Delgado:
No caso examinado, verifica-se que a recorrente é contratada por empresas do exterior e recebe motores e turbinas para reparos, retífica e revisão. Inicia, desenvolve e conclui a prestação de todo o serviço para o qual é contratada dentro do território nacional, exatamente em Petrópolis, Estado do Rio de Janeiro, e somente depois de testados, envia-os de volta aos clientes, que procedem à instalação nas aeronaves.
Importante observar que a empresa não é contratada para instalar os motores e turbinas após o conserto, hipótese em que o serviço se verificaria no exterior, mas, tão-somente, conforme já posto, é contratada para prestar o serviço de reparos, retífica ou revisão.
Portanto, o trabalho desenvolvido não configura exportação de serviço, pois o objetivo da contratação, ou seja, o seu resultado, que é o efetivo conserto do equipamento, é totalmente concluído no território brasileiro. – Destacou-se
A insegurança jurídica inaugurada pela lei Complementar 116/03 foi reforçada pelo entendimento firmado no julgamento do REsp 831.124/RJ, que vinculou o resultado do serviço à sua execução, independentemente da análise de onde ocorreu os seus efeitos (utilidade).
O advento desse precedente incentivou autoridades fiscais municipais a fiscalizarem exportadores de serviços e fazerem a avaliação da existência ou não da isenção com base no binômio resultado-execução, levando à inúmeras autuações fiscais e o aumento do contencioso sobre o ISSQN exportação.
Somente dez anos depois, com o julgamento do AREsp 587.4034, uma outra composição da Primeira Turma do STJ revisitou o tema e alterou o entendimento anterior.
Nessa oportunidade, a Turma negou provimento ao Recurso Especial do município de Porto Alegre, confirmando o acórdão recorrido que tinha decidido pela não incidência do ISSQN na elaboração de projeto de engenharia para tomador estrangeiro, uma vez que se referia a obrar a ser realizada em outro país (França).
A Turma acertadamente reconheceu que, apesar de o projeto ter sido concluído no Brasil, a intenção de sua execução somente poderia ocorrer na França, adotando o critério de fruição do serviço, conforme o voto do Ministro Relator Gurgel de Faria:
É que, nesse caso, embora o projeto tenha sido finalizado em território nacional, não se tem dúvidas de que o contratante estrangeiro está interessado, especificamente, na importação do serviço a ser prestado pela pessoa brasileira para, posteriormente, executá-lo.[...]
O resultado do projeto de engenharia, assim, não é a obra correlata, mas a sua exequibilidade, conforme a finalidade para que foi elaborado.
Portanto, à luz do parágrafo único do art. 2º, I, da LC 116/03, a remessa de projetos de engenharia ao exterior poderá configurar exportação quando, do seu teor, bem como dos termos do ato negocial, puder-se extrair a intenção de sua execução no território estrangeiro. – Destacou-se
O novo posicionamento do STJ reforçou a corrente jurisprudencial, já existente em vários Tribunais de Justiça, pela intepretação resultado-utilidade. Os contribuintes tiveram, também, um incremento do nível de segurança jurídica, com a vinculação do seu posicionamento à precedente mais recente da Corte Superior.
O contexto de evolução jurisprudencial para consolidação do entendimento e maior segurança jurídica foi reforçado com o julgamento, em 2019, do AgInt no AREsp 1.446.6395, pela Segunda Turma do STJ.
Esse julgado, já reconhecendo a prevalência do conceito de "resultado-utilidade", examinou a controvérsia através da análise, no caso concreto, de que se a utilidade ocorreu total ou preponderantemente no exterior ou no Brasil.
O contexto fático analisado era de um prestador de serviços de logística para eventos musicais internacionais ocorridos em solo brasileiro. O Ministro Relator Mauro Campbell consignou que "em face da natureza do serviço desenvolvido pela contribuinte, que a execução e fruição dos serviços tomados pela contratante ocorreram majoritariamente em solo brasileiro, pois a finalidade essencial da obrigação de fazer, consistia no transporte de equipamentos até os locais designados para a realização de eventos musicais, previamente definidos pela tomadora. A única etapa do serviço destinada ao exterior, consistia na entrega destes equipamentos à contratante ao seu país de origem, assim que houvesse o término dos eventos realizados no Brasil."
A dificuldade de se avaliar aonde ocorreu a efetiva utilidade do serviço, em determinados casos, está bem configurada no julgamento do AREsp 1150353/SP6, pela Primeira Turma, em maio de 2021.
A Turma analisou se haveria ou não a isenção do ISSQN no serviço de gestão de um fundo estrangeiro, por empresa brasileira. Prevaleceu o voto do Relator Ministro Gurgel de Faria de que "resultado do serviço prestado por empresa sediada no Brasil de gestão de carteira de fundo de investimento, ainda que constituído no exterior, realiza-se no lugar onde está situado seu estabelecimento prestador, pois é nele que são apurados os rendimentos (ou prejuízos) decorrentes das ordens de compra e venda de ativos tomadas pelo gestor e que, desde logo, refletem materialmente na variação patrimonial do fundo."
O Ministro Napoleão Nunes apresentou voto favorável ao contribuinte por entender que os efeitos da gestão do fundo ocorrem no exterior, aonde serão absorvidos os ganhos e perdas decorrentes.
Esse julgado, apesar de nos votos, os Ministros declararem a aplicação do conceito do resultado-utilidade, traz preocupação com relação à efetiva solidificação do entendimento do STJ. Foi dada grande relevância, na avaliação do caso concreto, ao local do estabelecimento prestador, muito pela especificidade do tipo de serviço prestado (gestão de fundo de investimentos).
Entendemos, contudo, que a solução dada não foi a melhor, já que acabou dando prevalência ao local da prestação em detrimento dos reais efeitos do serviço. O fato do resultado (ganhos e perdas decorrentes dos investimentos) decorrerem das decisões tomadas no Brasil, não elide o fato de que a materialização desse resultado se dá no exterior, com o aumento ou diminuição do patrimônio do fundo tomador dos serviços.
Aguarda-se o julgamento dos Embargos de Declaração opostos pelo contribuinte, no qual esse contexto foi destacado e o fato de que o efeito da gestão, efetivamente se dá no patrimônio do tomador, no exterior.
Mas é possível se depreender dois julgados recentes, da Segunda e Primeira Turma, a pacificação do entendimento do resultado-utilidade e também a dificuldade de determinar onde se deu o gozo da utilidade em determinados contextos.
No que se refere à estabilização da jurisprudência, em que pese ainda existir divergências nos tribunais estaduais, verifica-se que cada vez mais prevalece o entendimento de resultado como utilidade, na esteira da consolidação da jurisprudência do STJ. Alguns exemplos.
Em agosto de 2020, a 18ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo ao julgar o Recurso de Apelação 1022573-89.2019.8.26.00537 fundamentou a sua decisão no critério "resultado-utilidade", arguindo que os benefícios do serviço prestado foram fruídos em país diverso. Na demanda, o Contribuinte pleiteava o reconhecimento da isenção tributária em serviços de consultoria e a Câmara entendeu que a utilidade dos estudos técnicos de viabilidade para potenciais projetos é verificada no exterior, uma vez que os benefícios do serviço são fruídos pelo tomador estrangeiro, pois tendem a subsidiar futuras decisões.
A 2º Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no julgamento do Recurso de Apelação 700843507018, ocorrido em agosto de 2020, reconheceu a isenção na prestação de serviço de conserto de aeronaves para empresas estrangeiras. Como fundamento, a Câmara julgadora destacou que, mesmo que os reparos nos aviões foram iniciados e concluídos no Brasil, a fruição dos serviços ocorreu efetivamente no estrangeiro. Inclusive porque as empresas aéreas contratantes não realizam rota no território nacional, apenas contratam os serviços brasileiros para o conserto de suas aeronaves.
Por fim, destaca-se o julgamento da Apelação 0013898-40.2016.8.16.00219 pela 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná. O Mandado de Segurança foi impetrado visando garantir o direito do contribuinte de não recolher o ISS na prestação de serviços de pesquisas e desenvolvimento de produtos à empresa estrangeira. A Câmara reafirmou a decisão do juízo a quo ao decidir pela não incidência do imposto nas exportações de serviços quando os resultados ocorrerem fora do Brasil, pois não ficou comprovado que as pesquisas foram utilizadas em território nacional.
Os citados julgados representam uma consistente amostragem de que, mesmo no âmbito dos Tribunais de Justiça, caminha-se para a consolidação do conceito do resultado-utilidade.
III – Conclusão
O atual estágio da jurisprudência das duas turmas de Direito Público do STJ permite afirmar que existe a solidificação do entendimento de que o "resultado", previsto no parágrafo único, do inciso I, do artigo 2º da lei Complementar 116/03, refere-se à fruição da utilidade decorrente do serviço e não da sua mera execução.
Na esteira da evolução no STJ, identifica-se que também se caminha para que a mesma linha de entendimento venha prevalecendo nos Tribunais de Justiça, trazendo maior segurança jurídica para os contribuintes e a pacificação da relação fisco-contribuinte.
Contudo, os contribuintes devem continuar tendo o cuidado na avaliação e documentação das suas atividades de exportação de serviços, principalmente quando se tratar de operações que abrem maior margem para dúvidas se a utilidade decorrente ocorreu no exterior ou no Brasil.
Inclusive, o recente julgamento do AREsp 1150353/SP, pela Primeira Turma do STJ, demonstra como pode ser polêmica a definição do local de fruição da utilidade, principalmente em serviços que possuem um maior grau de imaterialidade.
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1. Disponível aqui.
2. Disponível aqui.
3. REsp 831.124/RJ, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/08/2006, DJ 25/09/2006, p. 239
4. AREsp 587.403/RS, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 18/10/2016, publicado em 24/11/2016
5. AgInt no AREsp 1446639/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/09/2019, DJe 24/09/2019
6. AREsp 1150353/SP, Relator: Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, Data do Julgamento: 04/05/2021, Data da Publicação: 13/05/2021
7. TJSP; Apelação / Remessa Necessária 1022573-89.2019.8.26.0053; Relator (a): Ricardo Chimenti; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Público; Foro Central - Fazenda Pública/Acidentes - 16ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 23/08/2020; Data de Registro: 23/08/2020
8. TJ-RS - AC: 70084350701 RS, Relator: Laura Louzada Jaccottet, Data de Julgamento: 26/08/2020, Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: 01/09/2020
9. TJPR - 3ª C.Cível - 0013898-40.2016.8.16.0021 - Cascavel - Rel.: Desembargador José Laurindo de Souza Netto - J. 31.07.2018