Muitos consumidores e fornecedores ainda não se deram conta do quanto a Lei Geral de Proteção de Dados impacta a relação consumerista. Quando o Código de Defesa do Consumidor (CDC) entrou em vigor, há 30 anos, em sintonia com a atual Constituição Federal (CF), também foi assim. Levou um tempo até que todos compreendessem e aplicassem as regras ali insculpidas. Hoje, entretanto, já é possível olhar para trás e enxergar seu amadurecimento e importância na regulação de direitos e deveres de uma sociedade capitalista como a nossa.
Não à toa, o CDC tornou-se um marco de cidadania, consagrando princípios e valores éticos, de boa-fé, transparência, informação, segurança, entre outros, reforçados, agora, na nova Lei Geral de Proteção de Dados.
Esse arcabouço principiológico confere à sociedade um direito poroso, com a oportunidade de oxigenar as leis e aplicá-las às condutas de acordo com a época e os valores sociológicos e filosóficos de cada período. É por isso que não só o CDC, mas também o Código Civil/15, muito mais existencialista que o anterior, permitem uma análise metajurídica voltada ao conteúdo, aos deveres anexos e não apenas à forma e à letra fria da lei.
Nesta linha de raciocínio, inclusive, estão as palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald1 ao afirmar que: “o direito existe para pacificar e disciplinar a vida em sociedade e, por outro lado, tem de espelhar as necessidades dessa sociedade. É normatização da conduta humana, com vistas à garantia da vida em sociedade. Os valores do direito não são criados abstratamente, representam a expressão da vontade social. Logo, o Direito não está à disposição de conceitos eternos, imutáveis. Ao revés, tem de se adaptar aos avanços da sociedade”.
Em razão disso, os sujeitos de uma relação consumerista devem se debruçar em absorver os novos ditames da LGPD como um predicado do CDC. Ou seja, a sociedade tem à disposição, agora, uma Lei que conceitua, direciona, determina e define como cada um dos objetivos (finalidades) consumeristas devem ser pautados (por uma base legal da LGPD) ao se depararem com a necessidade de tratar dados pessoais.
Mas, o que isso significa na prática? Significa, por exemplo, que os dados pessoais coletados de um consumidor (pessoa física), antes já protegidos pelo CDC, nos arts. 43 e 44, precisarão ter atenção especial, haja vista as novas necessidades do fornecedor de preparar-se para oferecer um armazenamento adequado e seguro (art. 6º, VII, LGPD); de ser transparente sobre a realização do tratamento e sobre quem são os respectivos agentes (controlador e operador) a executá-lo (art. 6º, VI, LGPD); e de entender que não pode mais haver a coleta de dado pessoal sem a indicação de uma respectiva finalidade, conferindo a ela uma das bases legais previstas nos arts. 7º e 11, da LGPD.
É como um jogo de quebra-cabeça, na qual as peças “princípios-coleta-finalidade-base legal” precisam se encaixar para uma correta adequação, mas, via de regra, não há uma receita de bolo nessa dedução lógica, o que faz sua aplicação ser um imenso desafio, porque: (i) a LGPD ainda está sendo colmatada e depende de esclarecimento sobre muitos conceitos e aplicações práticas, sobretudo ao se conectar à outras Leis e regulamentos; e (ii) as atividades que coletam dados pessoais inovam diariamente e buscam, cada vez mais, correlacioná-los em bases de dados inteligentes para extrair metadados. Não há dúvida de que a nova moeda mundial é o dado.
Dito isso, ao realizar uma análise jurídica sistêmica, é possível compreender a sinergia entre o CDC e a LGPD, mas nem sempre é fácil impingi-los coordenadamente. Por exemplo, se compararmos uma oferta (publicidade) do fornecedor, que é prévia ao ato negocial em si, mas que já o vincula (art. 30, CDC), à coleta de dados pessoais prévia (presencial ou online) à celebração do contrato, fica nítida essa disparidade, vejamos:
- a aplicação do CDC em atos prévios ao consumo já é compreendida pelos atores que a circundam (fornecedores-consumidores-sociedade), tanto que muitos anúncios publicitários passam por regulações e podem sofrer punições sem que nenhum consumidor tenha de fato adquirido o bem ou serviço anunciado, em razão do perigo de dano.
- quando pensamos na LGPD, contudo, ainda não está claro para todos, fornecedores e consumidores, que os atos prévios de coleta de dados pessoais, por qualquer meio, presencial (ficha pré-cadastral) ou online (acesso e tempo de permanência no site, cookies, localização de IP ou qualquer indicativos da jornada do internauta no ambiente web) já integram um arcabouço informacional valioso, mas que, na grande maioria das vezes, não estão, nem de longe, enquadrados aos ditames da nova lei e nem são demonstrados, com clareza, a esse consumidor.
Ou seja, esse “namoro inicial”, já obriga o fornecedor à luz do CDC, mas ainda não o encoraja a compreender e a praticar os fundamentos previstos na LGPD sobre privacidade e autodeterminação informativa (art. 2º, I e II, LGPD) ab initio. Lembremos, caro leitor, que esses clientes (pessoas naturais) são os titulares soberanos de seus dados pessoais e que são eles que devem exercer decisões quanto à coleta, armazenamento e até de oposição, conforme o caso, a determinados tipos de tratamento.
É exatamente por isso que os princípios que correlacionam ambos os diplomas são importantes, pois se o fornecedor já entende a importância da boa-fé, da transparência, da informação e da segurança pelo viés do CDC, pode ser através desses mesmos princípios que essa conscientização ocorra para a correta adequação à LGPD.
Portanto, injetar nas legislações doses desses princípios e cláusulas gerais equivale, por exemplo, a fornecer à pele outras funções, que vão além de proteger o corpo do ambiente externo, como a de regular a temperatura, reagir a estímulos, metabolizar a troca de vitaminas e eliminar toxinas. Um verdadeiro jogo de química tal qual o dos enamorados, sensíveis a perceber que uma ação em falso pode colocar tudo a perder e esse aprendizado, se não for pelo amor, será, sem dúvida, pela dor.
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1 FARIAS, C.C.; Rosenvald, N.; Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB. 14.ed., Salvador, Ed. Juspodivum, 2016, pg.31.