As decisões de carência ou de improcedência do pedido nas ações civis públicas por ato de improbidade administrativa devem ou não serem submetidas ao duplo grau de jurisdição por meio da remessa oficial? Esta é a pergunta que instiga a reflexão no presente trabalho, notadamente porque se trata de tema submetido à sistemática de recursos repetitivos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.
De início, cumpre esclarecer que será submetido a julgamento da 1ª Seção¹ do Superior Tribunal de Justiça a questão de saber “se há - ou não - aplicação da figura do reexame necessário nas ações típicas de improbidade administrativa, ajuizadas com esteio na alegada prática de condutas previstas na lei 8.429/92, cuja pretensão é julgada improcedente em primeiro grau” (Tema 1.042²). Ou seja, estará em discussão o cabimento ou não da figura da remessa de ofício (oficial ou necessária) nas ações típicas de improbidade, ou se o juízo quanto ao cabimento do recurso é dado apenas ao autor legitimado da ação.
Em primeiro lugar, consignemos que a remessa oficial tem a finalidade de submeter ao controle jurisdicional do duplo de jurisdição as decisões proferidas pelo Órgão Julgador a quo, sem que os diretamente interessados no processo voluntariamente se insurjam contra a decisão.
Como bem ensina ANTONIO ARALDO FERRAZ DAL POZZO,
“(...) o recurso é um ato voluntário da parte, não resignada com uma decisão desfavorável. Todavia, há causas que, conforme o seu desfecho, deve necessariamente ser reexaminada, segundo disposição expressa da legislação processual. Aqui não se fala propriamente em recurso, mas em remessa necessária (art. 496 do Código de Processo Civil)”³.
A sistemática é observada no que dispõe o referido art. 496, do CPC/15:
Art. 496. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:
I - Proferida contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público;
II - Que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução fiscal.
Vale dizer, por oportuno, que a mesma regra já era prevista, com idêntico conteúdo, no CPC/73, havendo algumas alterações apenas a propósito dos parágrafos, que melhor detalham os recortes de incidência do instituto da remessa oficial, mas que não vem ao caso do presente e breve estudo.
Por sua vez, é importante consignar que o posicionamento doutrinário se assenta, de uma forma geral, na compreensão de que a remessa oficial é medida que protege o interesse público. Ocorre, porém, que a qualificação como defesa do interesse público, ao que parece ser, apresenta-se em um sentido amplo.
Neste contexto, portanto, tenho por premissa que a questão da remessa oficial tem a finalidade de resguardar, em verdade e primariamente, o interesse do Estado enquanto parte processual, e, apenas secundariamente, como curador do interesse público da sociedade. Ela revela-se, nessa linha, como uma consequência necessária de potencial resultado adverso no litígio. Parece complicado, mas não é. A remessa oficial deve ser considerada um privilégio processual dos entes fazendários, que estão a defender o erário, em última instância.
É exatamente neste contexto que são duas as hipóteses que permitem a remessa oficial: configuram remessas oficiais as decisões proferidas contra os entes federativos (inciso I) e os julgamentos procedentes, no todo ou em parte, dos embargos à execução fiscal (inciso II).
Ademais, é importante lembrar que a remessa oficial se coloca com aspectos jurídicos bastante característicos, como bem anota JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, para quem “o instrumento da remessa obrigatória tem peculiaridades de três ordens: 1ª) não é recurso, mas condição de eficácia da sentença; 2ª) beneficia entes públicos; 3ª) funda-se mais veementemente em razões de ordem política do que jurídica”4.
Daí pode surgir a seguinte indagação: e no caso das ações de improbidade, majoritariamente propostas pelo Ministério Público, as decisões de improcedência constituem decisões contra o ente federativo que se submeta a tal regime?
A nosso ver, a resposta é negativa, na medida em que dizer que a decisão é contra, pela literalidade interpretativa restritiva, diz respeito a ter uma decisão contrária aos interesses da parte que figura na lide, litigando como autor ou réu na demanda.
Logo, à primeira vista, a remessa oficial não é (ou ao menos não deveria ser) autorizada a prevalecer nas ações civis por improbidade administrativa que sejam julgadas improcedentes.
Mas, o fato é que a questão submetida à sistemática dos repetitivos prevista no Tema 1.042/STJ, está diretamente relacionado ao que preconiza o art. 19, da lei das Ações Populares, in verbis:
Art. 19. A sentença que concluir pela carência ou pela improcedência da ação está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal; da que julgar a ação procedente caberá apelação, com efeito suspensivo.
Neste sentido, colige-se do v. acórdão que afetou o REsp 1.553.124/SC, de relatoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho5 6, na 1ª Seção, esclareceu que
“Outro ponto que carece de discussão radica nos limites da interpretação jurídico-legal, uma vez que a ação de improbidade não prevê a figura do reexame necessário, sendo certo que a aplicação desse procedimento tem sede para as ações populares, ajuizadas com lastro na lei 4.717/65, em seu art. 19, mas não nas ações típicas de improbidade”7.
Ou seja, o Tema em comento tem por objetivo verificar se se aplica, ou não, basicamente, a remessa oficial (ou necessária) na seara das ações tipicamente de improbidade administrativa regidas pelo disposto na lei 8.429/92.
No caso, portanto, parece ser efetivamente inadequado o exercício hermenêutico que permita a conclusão de que haverá a aplicação do disposto no art. 19, da lei de Ação Popular, nos casos de improbidade administrativa regidas pela lei 8.429/92.
Embora o direito seja único – e as divisões em ramos do direito decorra de um caráter pedagógico e metodológico de ensino – não há como ignorar os microssistemas e as suas peculiaridades. Com efeito, admitir a aplicação de uma norma especial (lei de Ação Popular) a uma outra norma especial (lei de Improbidade Administrativa) é defender o vale-tudo, notadamente quando se está a prestigiar outros valores, tal como o da presunção de inocência e o do devido processo legal.
Por sua vez, no que diz respeito ao Código de Processo Civil, quanto à regulação da remessa oficial, afeiçoa-nos mais acertada a compreensão de que a proteção dos interesses fazendários deve se dar sempre que o ente fazendário for parte8, efetivamente, do processo, não podendo ser atribuída a remessa oficial nos casos em que comporte apenas o interesse público em uma perspectiva quase etérea e absolutamente subjetiva.
A propósito, é importante considerar que, a exemplo, as sociedades de economia mista ou fundações públicas de direito privado não se submetem ao regime da remessa necessária, muito embora tenham interesse público envolvido. De tal situação concreta, verifica-se que o espírito da norma está muito mais relacionado ao privilégio processual do ente federativo ou órgão da administra indireta que se submeta a tal regime numa perspectiva desse referido privilégio, e não em razão do interesse público em si.
É valiosa a lição de JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, que anota que
“Além das autarquias e das fundações públicas, integram a Administração Indireta as empresas públicas e as sociedades de economia mista, ambas dotadas de personalidade jurídica de direito privado. Tendo essa fisionomia, tais pessoas também não se incluem no regime da remessa obrigatória, como ocorre com os entes públicos”9.
Ou seja, resta evidente que o privilégio processual não pode ser utilizado de forma indistinta, apenas com a finalidade de buscar, muitas vezes, a alteração das conclusões de um julgamento singular de improcedência. Neste sentido, afeiçoa necessário prevalecer o entendimento de que a remessa oficial deve ser aplicada de forma restrita, nos casos apenas em que for autorizado pelo art. 496, I e II, do CPC/15, e sem prejuízo de a Fazenda Pública figurar como parte da lide, e não apenas como interessado.
Dessa feita, demonstra-se inadequado que seja aplicado na seara da ação civil pública por improbidade administrativa que o disposto no art. 19, da lei de Ação Popular, quer seja porque não há tal previsão na lei de Ação Civil Pública, quer seja porque a regra não está na lei de Improbidade Administrativa.
Sem prejuízo e em arremate, é importante dizer que nos casos de improcedência não mais se goza da perspectiva da máxima do in dubio pro societate, mas a do in dubio pro reo, já que o estágio não permite – ainda mais diante de um decreto de improcedência do pedido condenatório – que as dúvidas que legitimaram o ajuizamento da ação no início do processo e por ocasião do recebimento da petição inicial (art. 17, § 9º, da lei de Improbidade Administrativa), voltem-se contra os implicados, aos quais além de tudo se reserva o direito da ampla defesa e do contraditório, que não serão regularmente exercidos à falta de um recurso voluntário, que delimita, inclusive, a atuação do tribunal ad quem.
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1. A quem ignora, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça é composta pelas 1ª e 2ª Turmas e tratam de matéria de direito público, nas quais, basicamente, figuram os interesses do Estado.
2. Os seguintes processos compõem o arcabouço de Recursos Especial submetidos ao regime de repetitivos: REsp 1553124/SC, REsp 1605586/DF, REsp 1502635/PI e REsp 1601804/TO, todos sob a relatoria do Ministro Manoel Erhardt.
3. DAL POZZO, Antonio Araldo Ferraz. Teoria Geral do Novo Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Contracorrente, 2016, p. 90.
4. CARVALHO FILHO, José dos Santos. O estado em juízo no novo CPC. São Paulo: Atlas, 2016, p. 168.
5. Com a aposentadoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, caberá ao Presidente da República, após a elaboração de lista tríplice pelo Superior Tribunal de Justiça, a escolha do Ministro advindo da Classe da Magistratura Federal. Por ora, incumbe ao Ministro Manoel Erhardt, Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, a relatoria do caso.
6. É importante consignar que o processo foi pautado na sessão de 09/12/2020, para julgamento, penúltima sessão de julgamento da 1ª Seção antes da aposentadoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, mas, por sua própria indicação, o processo foi retirado de pauta. Até o presente momento, ainda não há notícia de quando o Tema em comento será levado a julgamento.
7. Sem prejuízo, o Tema também leva em consideração para o “debate da remessa necessária nas ações de improbidade, indo não apenas ao ponto da presunção de inocência, cuja improcedência gera situação favorável ao acionado, como também o importante ponto das prerrogativas do órgão acusador, cujo trâmite de um eventual recurso deve se submeter à apreciação daquele que lançou o libelo, podendo se conformar ou não com o juízo sentencial. A remessa necessária, nesse espectro, suprimiria a mencionada avaliação do direito de recorrer”.
8. Ainda que se possa, de outro lado, discutir o inúmeros privilégios que regem as relações processuais decorrente do litígio com a Fazenda Pública.
9. Op. Cit., fl. 170.