Ficar sozinho em casa, deitado no sofá, ouvindo suas músicas preferidas no smartphone, por meio de um aplicativo de streaming, parece ser o exemplo clássico do aproveitamento da privacidade, especialmente, em tempos de pandemia. O Superior Tribunal de Justiça, no entanto, vem, gradativamente, transformado esse cenário da privacidade em “espaço público”.
Isso porque, no ano de 2017, em sede de julgamento do Recurso Especial 1.559.264-RJ, perfilhou-se o entendimento de que a transmissão de obras musicais via streaming configura “execução pública”, e que a internet, por sua vez, sempre será local de “frequência coletiva”. O referido julgado legitimou a atuação do Ecad na gestão coletiva das obras musicais executadas via streaming.
Mais recentemente, em março do corrente ano, o STJ julgou os Recursos Especiais 1.870.771, 1.880.121 e 1.873.611, representativos da controvérsia firmada no Tema 1.066, fixando as seguintes teses: (i) a disponibilização de equipamentos em quartos de hotéis, motéis ou afins para transmissão de obras musicais, literomusicais e audiovisuais permite cobrança de direitos autorais pelo Ecad; (ii) a contratação por empreendimento hoteleiro de serviços de TV por assinatura não impede a cobrança de direitos autorais pelo Ecad, inexistindo bis in idem.
Trocando em miúdos, o STJ entendeu, lá em 2017, que há “execução pública” a justificar o recolhimento de direitos autorais pelo Ecad, ainda que uma pessoa – sozinha – escute música através de uma plataforma de streaming, constante em seu smartphone, por exemplo, pois a internet sempre será um local de frequência coletiva. Agora, em 2021, o Tribunal firmou o entendimento que, por mais que quartos de hotéis e de motéis sejam ocupados por hóspedes que, obviamente, esperam privacidade e segurança, onde podem – sozinhos – ouvir músicas, as unidades de hospedagem não são locais de frequência individual, mas sim coletiva, haja vista a rotatividade de seus hóspedes.
Como visto, as novas plataformas audiovisuais e suas respectivas discussões judiciais alusivas à gestão dos direitos autorais têm instado o STJ a repensar as divisas que separam o espaço público do privado. Na sociedade informacional, o sujeito sozinho, no interior da sua casa ou hospedado em um quarto de hotel, passou a ser espaço público.
Embora esse entendimento, por ora, venha lastreando a atuação do Ecad, no futuro, pode nortear um caminho jurisprudencial perigoso, com a flexibilização dos direitos fundamentais à privacidade (art. 5º, X, da Constituição Federal) e à inviolabilidade domiciliar (art. 5º, XI, da Constituição Federal), ou, simplesmente, configurar um anacronismo em relação ao ambiente legislativo atual, em que se festeja a lei Geral de Proteção de Dados e a lei que criminaliza o stalking (perseguição que ocorre, na maioria das vezes, pela internet).