A opinião definitiva não é minha, jamais teria tal pretensão, mas sim do médico sanitarista Gonzalo Vecina, fundador da ANVISA, e reconhecida autoridade nacional em Saúde Pública. Gonzalo Vecina está na minha lista pessoal de “Grandes Brasileiros” e acompanho sempre com interesse a sua coluna no Jornal “O Estado de São Paulo”. Em seu texto de 13 de maio de 2021, ele tratou da quebra de patentes, que é o termo usual que se utiliza para designar a licença compulsória.
Desde o começo da pandemia tenho publicado artigos e participado de um imenso número de debates, seminários, “lives”. Recentemente, participei oficialmente de audiência pública no Congresso Nacional, representando a ABPI – Associação Brasileira da Propriedade Intelectual, alertando a quem quiser ouvir para o risco da “legislação oportunista da pandemia”, entre as quais se inclui a proposta de uma licença compulsória generalizada em relação a medicamentos relacionados à prevenção e tratamento da covid-19.
A questão das patentes farmacêuticas gera paixões, sempre foi assim. Aliás, a mistura de uma visão ideológica ou romântica (“o acesso à saúde deveria ser gratuito”) com interesses privados (de empresários que querem copiar livremente, sem pagar, as inovações alheias) levou nosso país a abolir as patentes farmacêuticas, por mais de meio século, entre 1945 e 1996. Mas a saudosa indústria da cópia continua ainda hoje ativa, não apenas no Brasil, e aproveita qualquer oportunidade para demonizar as patentes, com uma narrativa falaciosa, que apela ao sentimento de solidariedade da sociedade, e professa que as patentes seriam, de alguma forma, um óbice ao atendimento universal de saúde.
O exemplo europeu demonstra que uma forte proteção patentária não é incompatível com o acesso à saúde pela população. O que realmente impede o acesso à saúde são políticas públicas deficientes. Entre nós, a situação se agrava pela falta de uma política industrial eficiente e prolongada, um mal que nos acomete há muitas décadas, e que gerou o desmantelamento do parque produtivo nacional, não apenas na área da saúde.
Como qualquer iniciante no ramo da propriedade intelectual sabe, o verdadeiro “gargalo” para disseminar a produção e distribuição de vacinas e medicamentos está no acesso a insumos, na infraestrutura de fabricação, e na logística de distribuição. Todos esses desafios podem perfeitamente ser resolvidos por um país rico e continental como o nosso: basta planejamento e consistência nas políticas públicas. As patentes não fazem parte do problema, mas sim da solução, pois, sem elas, não haverá inovação que traga melhorias para a sociedade.
Em 2007, foi decretada a única licença compulsória até hoje, no Brasil, da droga Efavirenz. Mas o competente laboratório estatal a quem ele foi encomendado demorou quase três anos para iniciar a fabricação local, devido aos naturais dificuldades para iniciar uma linha de produção sem a cooperação do titular da patente.
É neste ponto que entra a palavra definitiva sobre o tema. Em sua coluna de 13 de maio, Gonzalo Vecina explica: “Quebrada a patente, pode-se produzir? Não. O processo de produção de uma patente sempre tem segredos não depositados; e só com esforços importantes de engenharia reversa será possível deslindar o processo para obtenção do produto. Assim, a quebra de patentes sem a colaboração do detentor é um ato heroico e vazio.”
Com efeito, entendo que a primeira opção há sempre de ser a compra, por preço baixo, do produto original fabricado pelo titular da patente, que domina a tecnologia e garante a qualidade. Para tanto, a “ameaça” da licença compulsória já produziu bons resultados, no passado, entre 2001 e 2006, no caso das drogas Nelfinavir, Lopinavir, Tenofovir, Atazanavir, e Ritonavir, todos medicamentos usados para o combate da AIDS.
Não sendo possível o abastecimento do mercado pelo titular da patente, deve-se estimular acordos de licença voluntária, como os celebrados na atual pandemia pelo Instituto Butantan e pela Fiocruz, não por acaso, duas instituições que já se pronunciaram publicamente contra a proposta de licenças compulsórias generalizadas. Através da licença voluntária, o titular da patente auxilia a fabricação local, com transferência de know-how, envio e treinamento de técnicos, e, em poucos meses (se houver insumos e infraestrutura de fabricação), é possível iniciar a produção local.
A licença compulsória é o último recurso, que deve ser usado apenas se for inevitável. Não sou um opositor das licenças compulsórias, que são um instrumento legítimo e necessário para dar equilíbrio ao sistema de patentes, mas elas devem ser usadas caso a caso, com parcimônia, para não inibir a inovação. Reza o ditado popular que a diferença entre o remédio e o veneno é a dose: o mesmo ocorre com as licenças compulsórias. As propostas de licenças compulsórias generalizadas são uma bomba atômica contra a inovação. Podem até agradar a opinião pública, mas, se aprovadas, produzirão o efeito oposto ao desejado.