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Bitcoin é moeda? Uma análise a partir da teoria do fundador da Escola Austríaca

O Bitcoin analisado sob o olhar da Teoria de Carl Menger, escritor de “A Origem do Dinheiro” e considerado um dos fundadores da Escola Austríaca

10/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1. O que é moeda para Carl Menger?

A teoria de Carl Menger define moeda como a mais vendável (saleable) das commodities1.

Para o autor, diferentes commodities possuem diferentes graus de vendabilidade, sendo a mais vendável aquela que, em determinado lugar e momento, possui a menor diferença entre o preço de compra e o preço de venda, bem como pode ser fácil e certamente vendida a preço de mercado.

De um lado, ao analisar os limites espaciais de vendabilidade de uma commodity, Menger sugere cinco condicionantes: a) dispersão do desejo pela commodity; 2) facilidade/custo de transporte; 3) desenvolvimento dos meios de transporte e comércio; 4) extensão dos mercados e sua intercomunicação; 5) restrição da intercomunicação dos mercados para cada commodity.

De outro, ao analisar os limites temporais de vendabilidade, Menger sugere outras sete condicionantes: 1) continuidade no desejo pela commodity; 2) sua durabilidade; 3) o custo de preservação/estocagem dela; 4) taxa de juros; 5) periodicidade do mercado; 6) desenvolvimento de especulação; 7) restrições políticas e sociais em relação a transferências temporais.

Por fim, Carl Menger deixa claro que a moeda tem sua origem no mercado e não no Estado. Cada indivíduo, impulsionado por seus interesses, opta por manter a commodity mais vendável em seu controle enquanto se livra de outras menos vendáveis que possui. O Estado, ao regular a moeda, apenas enfatiza tal distinção prática já percebida e utilizada pelos indivíduos.

2. Como o Bitcoin é classificado no marco teórico definido por Menger?

A pergunta inicial que deve ser feita é: em determinado lugar e momento, os indivíduos optaram por vender outras commodities e manter/comprar Bitcoin? Em suma, o Bitcoin se tonou a commodity mais vendável? A resposta curta é não.

O ponto de partida para a resposta longa, com base na teoria de Menger, é tomar o Bitcoin como uma commodity2. Para isso, é preciso adotar uma definição mais ampla de commodity3 não se limitando a matérias-primas e incluindo também ativos digitais, como minutos de celular. 

Em seguida, visto que não é preciso o reconhecimento Estatal para caracterizar uma moeda, cabe analisar sua vendabilidade e, posteriormente, como ela se posiciona em relação às limitações espaciais e temporais.

Quanto à primeira, a elevada volatilidade do Bitcoin impede que a criptomoeda possua a menor diferença entre o preço de compra e o preço de venda. Ademais, ela não pode, até o presente momento, ser fácil e certamente vendida a preço de mercado4. Ainda que seja possível, trata-se de exceção a regra geral - isto é, utilizar as moedas nacionais.

Quanto à limitação espacial, é preciso certa abstração para analisar as condicionantes de Menger por se tratar de uma commodity virtual. Pode-se dizer que há a) dispersão do desejo pela commodity, sendo ela mais forte em alguns lugares, como Venezuela e China5. Não existem grandes b) dificuldades ou custos de transporte, justamente por sua natureza virtual.

No entanto, o desenvolvimento de c) meios de comercialização do Bitcoin ainda toma caminho incerto: apesar do desejo inicial de ser uma moeda descentralizada, a comercialização do Bitcoin tem sido limitada a corretoras6. Faltam critérios específicos para analisar d) a extensão do mercado de Bitcoins, limita-se, portanto, a dizer que se trata de um mercado com elevado valor7, porém com poucas transações8.

Por fim, e) ainda existe restrição de intercomunicação dos mercados para cada commodity, não sendo possível adquirir outros produtos apenas com Bitcoin, devendo antes realizar o câmbio para moedas nacionais.

Quanto à limitação temporal, ainda é cedo para afirmar que existe a) continuidade no desejo pela commodity, pois, apesar de crescente, se trata de uma commodity nova (13 anos). Sua b) durabilidade depende, simplificadamente, da manutenção do funcionamento da internet e do trabalho computacional dos mineradores.

Mais complicada é a análise de seu c) custo de preservação e estocagem. Apesar de ser aparentemente nulo para o usuário, ele depende da manutenção da rede. Ao mesmo tempo, portanto, tem-se que a transmissão e o armazenamento dos Bitcoins dependem do trabalho dos mineradores e, portanto, demandam gasto computacional e energético.

A d) periodicidade se assemelha a de metais preciosos – independem de circunstâncias climáticas, mas tão somente da mineração. Nos últimos anos, o aspecto das criptomoedas que tem mais se desenvolvido é a e) especulação9.

Por fim, quanto a f) restrições políticas e sociais, ainda é cedo para dizer. De um lado, o Bitcoin, por conta de sua natureza virtual e tecnologia empregada, ainda é pouco regulado por atores políticos; de outro, a criptomoeda é vista de forma distinta por diferentes grupos sociais10.

3. Conclusão - o Bitcoin ainda não pode ser considerado uma moeda

A teoria de Carl Menger sobre a origem da moeda pode ser empregada para analisar o Bitcoin e outras criptomoedas. Por meio dela, é possível perceber que o Bitcoin ainda não é se tornou a commodity mais vendável em determinado lugar e momento, bem como, em função de sua elevada volatilidade, o preço de compra e de venda podem possuir grande diferença.

Apesar disso, possui características promissoras quando se analisam as condicionantes espaciais e temporais propostas pelo autor.

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1 MENGER, Carl; LUDWIG VON MISES INSTITUTE (ORGANIZATION), On the origins of money, Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 2009.

2 Nada fora do comum, visto que até mesmo a Commodity Futures Trading Commission tomou esse posicionamento quanto ao Bitcoin ENYI, Jin; LE, Ngoc, The Legal Nature of Cryptocurrencies in the US and the Applicable Rules, SSRN Electronic Journal, 2017..

3 JASON, Fernando, How Commodities Work, Investopedia, disponível clicando aqui, acesso em: 21 mar. 21.

4 É possível argumentar que existiu um lugar e um momento em que isso ocorreu. Foi na Silk Road, mercado de produtos e serviços ilícitos que iniciou suas atividades sem 2011 e foi derrubado em 2013 pelo FBI. No entanto, a experiência é demasiadamente curta e restrita DALLYN, Sam, Cryptocurrencies as market singularities: the strange case of Bitcoin, Journal of Cultural Economy, v. 10, n. 5, p. 462–473, 2017..

5 MCGINNIS, John O.; ROCHE, Kyle, Bitcoin: Order without Law in the Digital Age, Indiana Law Journal, v. 94, n. 4, p. 1497–1554, 2019.

6 DALLYN, Cryptocurrencies as market singularities.

7 A comparação não é perfeita, mas pode se dizer que o “valor de mercado” de todos os Bitcoins está em torno de US$ 665 bilhões, em janeiro de 2021 KELLY, Jemima, No, bitcoin is not “the ninth-most-valuable asset in the world”, disponível clicando aqui, acesso em: 21 mar. 21..

8 DALLYN, Cryptocurrencies as market singularities.

9 MCGINNIS; ROCHE, Bitcoin.

10 DALLYN, Cryptocurrencies as market singularities.

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DALLYN, Sam. Cryptocurrencies as market singularities: the strange case of Bitcoin. Journal of Cultural Economy, v. 10, n. 5, p. 462–473, 2017.

ENYI, Jin; LE, Ngoc. The Legal Nature of Cryptocurrencies in the US and the Applicable Rules. SSRN Electronic Journal, 2017. Disponível em: <_https3a_ _www.ssrn.com2f_abstract="2995784">. Acesso em: 18 fev. 21.

JASON, Fernando. How Commodities Work. Investopedia. Disponível clicando aquiAcesso em: 21 mar. 21.

KELLY, Jemima. No, bitcoin is not “the ninth-most-valuable asset in the world”. Disponível clicando aquiAcesso em: 21 mar. 21.

MCGINNIS, John O.; ROCHE, Kyle. Bitcoin: Order without Law in the Digital Age. Indiana Law Journal, v. 94, n. 4, p. 1497–1554, 2019.

MENGER, Carl; LUDWIG VON MISES INSTITUTE (ORGANIZATION). On the origins of money. Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 2009.

Fernando Barroso Filho
Graduando em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto- USP. Diretor executivo do Núcleo de Arbitragem. Mediação da FDRP. Pesquisador do Habeas Data (FEARP).

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