Migalhas de Peso

Projeto de lei Ada Pellegrini Grinover e o processo estrutural

Principais inovações que importam ao processo estrutural no novo PL. 1.641/21, substitutivo aos PLs 4.441/20 e 4.778/20.

4/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O Projeto de Lei Ada Pellegrini Grinover – PL 1.641/21, substitutivo aos PLs 4.441/20 e 4.778/20, sobre uma nova Lei da Ação Civil Pública, traz inúmeros avanços, com base na melhor doutrina de processo coletivo brasileiro. Entre os diversos e positivos saldos científicos no tratamento das ações coletivas, com relação aos outros projetos, o PL 1.641/21 elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP)1 propõe também a positivação mais direta no ordenamento jurídico de técnicas e valores da teoria do processo estrutural.

Ab initio, necessário tecer um breve histórico acerca dos Projetos antecessores, o PL 4.441/20 do Deputado Paulo Teixeira e o PL 4.778/20 elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça. Esses projetos foram criticados pela doutrina que apontou aspectos de melhoria e de retrocesso na disciplina da tutela coletiva, dialogando timidamente com o processo estrutural. Com o objetivo de aperfeiçoar e unificar o atual microssistema processual coletivo e incorporar a jurisprudência consolidada pelos tribunais superiores, conferindo integridade e coerência ao sistema, o Projeto de Lei Ada Pellegrini Grinover surge.  

Razão de aplausos, esse Projeto do IBDP reúne os pontos positivos dos projetos antecessores e insere outros aspectos relevantíssimos, ausentes nos PLs 4.441/20 e 4.778/20, principalmente quanto aos processos estruturais. São numerosas as perspectivas da tutela coletiva trazidas pelo Projeto de Lei Ada Pellegrini Grinover, que certamente também poderão ser utilizadas para procedimentos estruturantes. No entanto, elenca-se a seguir algumas das centrais e novas disposições do PL 1.641/21, que dialogam mais intensamente com matéria de processo estrutural.

Necessário pontuar que os processos estruturais tramitam atualmente sem uma legislação específica para tratar da matéria, mas aparam-se em dispositivos esparsos conjugados com interpretação sistemática do direito fundamental à tutela jurisdicional adequada. A positivação de aspectos da matéria estrutural vem facilitar, esclarecer e especificar as concepções doutrinárias e técnicas já adotadas.  

Primeiro aspecto a ser apontado no PL 1.641/21 é que ele dispõe que: “a sentença poderá determinar: (i) a alteração em estrutura institucional, pública ou privada, de natureza cultural, econômica ou social, a fim de adequar seu funcionamento aos parâmetros legais e constitucionais; (ii) a adequada correção do estado de fato de violação sistemática de direitos” (art. 26, §5º do PL 1.641/21). Vislumbra-se nesse artigo a finalidade essencial dos processos estruturais, que é reestruturação2 de entidade – ou um programa público - a qual se encontra violando direitos com o intuito de transformá-la e modificar seu comportamento institucional, eliminando as causas daquela inadequação, mediante decisão de implementação escalonada3, chamada pela doutrina de “decisões em cascata”4.  

Diferente do modelo tradicional de resolução de litígios de lógica binária (demandante versus demandado) com enfoque na reparação de dano passado para readequar o status quo anterior, o processo estrutural exige um olhar para o futuro, a fim de transformar a entidade que está em desconformidade constitucional e/ou legal. E para resolver o problema estrutural, o qual muitas vezes é complexo, faz-se necessária à participação dos grupos sociais impactados por aquela estrutura violadora. Tanto que é característico dos processos estruturais a multipolaridade e diversidade de interesses (policêntricos).

 Diante desses fatores, o inciso X, do art. 2º do Projeto de Lei Ada Pellegrini Grinover, é importante ao processo estrutural por estabelecer como um dos princípios da tutela coletiva o “efetivo diálogo entre o juiz, as partes, os demais Poderes do Estado e a sociedade na busca da solução plural e adequada especialmente para casos complexos e estruturais”. O diálogo entre os atores do processo (tanto membros da sociedade civil como entidades e Poderes do Estado) é fundamental para encontrar uma solução adequada e consequente implementação desta para o litígio estrutural, principalmente se envolver políticas públicas.

Outro princípio valioso aos procedimentos estruturantes é o disposto no inciso XI, do art. 2º do PL 1.641/21: “flexibilidade do processo e pragmatismo, devendo ser consideradas por todos as consequências práticas e jurídicas das decisões judiciais e das soluções consensuais”. A realidade dos processos estruturais costuma ser mutável durante o tempo. O procedimento não pode ser rígido, caso contrário não conseguirá atender a variação fenomênica. Por exemplo, o caso das vagas em creches no Município de São Paulo, que dentre outras medidas, culminou com a determinação judicial de criação de no mínimo 150.000 vagas no período entre 2013-2016. Entretanto, foram criadas efetivamente somente 106.743. Diante do não cumprimento da meta e da alteração fática da necessidade de vagas, foi celebrado acordo incrementando-se a criação 85.500 novas vagas, para a população de zero a três anos até 20205.

A intrínseca flexibilidade do procedimento - considerada por alguns como característica essencial do processo estrutural6 - também encontra respaldo em mais um artigo do PL Ada Pellegrini Grinover. Prevê-se que o juiz de ofício ou a requerimento das partes, sempre observando o contraditório prévio, pode alterar o modo de proteção do bem jurídico na fase de cumprimento ou na execução, a fim de se ajustar às peculiaridades do caso concreto e às alterações fáticas supervenientes. Inclui-se também a possibilidade de modificação nas hipóteses de o ente público ou seu delegatário promover políticas públicas que se afigurem mais adequadas do que as determinadas na decisão, ou se esta se revelar inadequada ou ineficaz para o atendimento do direito (art. 32, §7º do PL 1.641/21).

Merece destaque também a previsão no PL 1.641/21 que a decisão de saneamento deve se dar preferencialmente em “audiência de saneamento compartilhado”, na qual as partes participarão, podendo estabelecer calendário processual. Essa audiência de saneamento em cooperação com as partes já constava no art. 357, §3º do CPC/15. No entanto, esse novo projeto de lei dispõe um comando mais amplo do que se pode ser definido nesse ato processual, consistindo em valioso ao processo civil estrutural na medida em que a reunião e a cooperação entre os atores do processo é, na maioria dos casos, indispensável para encontrar a melhor maneira de solucionar o litígio. Nessa audiência será identificado o grupo titular do direito objeto do processo, controlada a adequação da legitimação do autor, identificada as principais questões de fato e de direito a serem discutidas no processo, definido poderes do amicus curiae e de eventuais terceiros, bem como a necessidade de realização de audiência ou consulta pública, fixando-lhes as respectivas regras (art.22 do PL 1.641/21).

Aliás, o projeto de lei 1.641/21 não apenas dispõe que a autocomposição será estimulada na mencionada audiência de saneamento como será incentivada em todas as fases do processo. A consensualidade, muito valorosa aos processos estruturais, aqui caminha na mesma esteira do CPC/15. No mais, o projeto prevê, ainda no art. 22, que o juiz pode encaminhar o litígio para Centros Judiciários de Solução Consensual de Conflitos ou para entidade extrajudicial ou à profissional qualificado, reputado adequado pelas partes.  

Pertinente ressaltar também outra previsão do novo projeto é a de que “o acordo ou a sentença deve prever a forma de execução, preferencialmente desjudicializada, inclusive, se necessário, com a constituição de fundo ou de entidade de infraestrutura específica” (art. 26, §4º do PL 1.641/21). Possível depreender deste artigo dois movimentos que vem ganhando relevo no cenário processual brasileiro: a desjudicialização da execução e a utilização das claims resolution facilities7 – entidades de infraestrutura específica, como exemplo a Fundação Renova constituída a partir do termo de ajustamento de conduta envolvendo reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, à foz do rio Doce em Mariana (MG)8.

Por fim, um último aspecto selecionado, que certamente será muito útil aos processos estruturais, consiste na disciplina que o Projeto substituto do IBDP traz sobre audiência e consulta públicas. A participação da sociedade, de grupos potencialmente afetados pelo problema estrutural, e também de especialistas, cujo conhecimento seja pertinente para a decisão, é importante para a compreensão da questão estrutural e relevante para elaboração de um plano de ação. Com isso, o projeto prevê inserir no CPC/15 o artigo 368-A, com o propósito de estabelecer regramento sobre a convocação de audiência pública.

Muitas outras novidades do Projeto do IBDP poderão ser utilizadas também para os processos estruturais, como (i) o controle jurisdicional da adequação da legitimidade - dispondo requisitos para sua aferição no decorrer do processo; (ii) novos legitimados ativos – sindicatos, Ordem dos Advogados do Brasil, partidos políticos, comunidades indígenas, quilombolas e povos tradicionais; e, (iii) explicitação quanto ao momento da celebração de convenções processuais - que poderão ocorrer inclusive no cumprimento de sentença e na execução.

O processo estrutural vem ganhando relevância pela forma inovadora de condução, com conjugação de diversos atores, na resolução de conflitos multifacetados. Por meio dele, presta-se tutela mais ajustada para a concretização e efetividade de direitos fundamentais envolvidos. Assim, o projeto apresenta importantes contribuições normativas à matéria, inclusive com positivação de temas consagrados na doutrina e jurisprudência.

Muito ainda será discutido e novas contribuições surgirão para desenvolvimento do processo estrutural. Mas o PL 1.641/21 avança, fornecendo novas ferramentas para ampliar e qualificar esses processos que objetivam tratar as causas da violação sistemática de direitos da entidade em pauta. O uso adequado dessas técnicas previstas poderá aprimorar a prestação da tutela coletiva. Encerrando, pelos temas de processos estruturais trazidos, saúda-se o novo projeto de lei da Ação Civil Pública elaborado pelo IBDP, o qual, aliás, presta justa homenagem ao ser nominado: Projeto de Lei Ada Pellegrini Grinover.

__________________

1 Comissão de Juristas nomeada pelo IBDP para elaboração do Projeto de Lei Ada Pellegrini Grinover tem a seguinte composição: Presidente - Paulo Henrique dos Santos Lucon; Coordenador - Kazuo Watanabe; Integrantes - Camilo Zufelato, Carlos Alberto de Salles, Daniel Mitidiero, Dierle Nunes, Edilson Vitorelli, Elton Venturi, Felipe Bragantini de Lima, Fredie Didier Jr., Gisele Fernandes Góes, Gustavo Osna, Hermes Zaneti Jr, José Herval Sampaio Jr, Júlio Camargo de Azevedo, Luana Pedrosa de Figueiredo Cru, Luiz Henrique Volpe Camargo, Marcelo Sodré, Marco Félix Jobim, Rafael Vinheiro Monteiro Barbosa, Ricardo de Barros Leonel, Sérgio Cruz Arenhart, Susana Henriques da Costa e Trícia Navarro.

2 VITORELLI, Edilson. Processo Civil Estrutural Teoria e Prática. Editora JusPodivm, Salvador. 2ª ed.. 2021.p 26-91.

3 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes; OLIVEIRA, Raphael Alexandria. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. Revista de Processo, São Paulo, Vol. 303. Maio 2020, p. 45-81.

4 ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no direito processual civil brasileiro. Revista de Processo, n. 225, ano 38, jul./2013, v. eletrônica.

5 GALDINO, Matheus Souza. Processos Estruturais Identificação, funcionamento e finalidade. Editora JusPodivm, Salvador. 2020. p.102-104. COSTA, Susana Henriques da. Acesso à justiça: promessa ou realidade? Uma análise do litígo sobre creche e pré-escola no Município de São Paulo. In: PUOLI, José Carlos Baptista (Org.). Direito Processual Constitucional. Brasília. Editora Gazeta Jurídica, 2016.

6 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes; OLIVEIRA, Raphael Alexandria. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. Revista de Processo, São Paulo, Vol. 303. Maio 2020, p. 45-81.

7 CABRAL, Antonio do Passo; ZANETI JR., Hermes. Entidades de infraestrutura específica para a resolução de conflitos coletivos: as claims resolution facilities e sua aplicabilidade no Brasil. Revista de processo. Vol.287. Janeiro, 2019. P.445-483.

8 Disponível clicando aqui.Acessado em 305.21.

Beatriz Achôa Palhares
Advogada. Graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP.

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