Raro é o dia em que o noticiário jornalístico do século XXI não veicula matérias sobre os danos e decepções causados pelo não funcionamento ou o funcionamento reputado defeituoso de serviços destinados ao atendimento da população, sejam os prestados diretamente pelo estado ou aqueles cuja execução este delega a particulares, mediante concessão, permissão ou outras espécies de contratos e parcerias.
O noticiário traduz, de um lado, e fomenta, de outro, uma cultura de cobrança cada vez mais intensa, dirigida às autoridades estatais e paraestatais, por todas as mazelas e frustrações que afligem o cotidiano dos serviços públicos nas sociedades contemporâneas. A tal ponto que as estatísticas das demandas levadas ao Judiciário em maior número apontam, em posição destacada, as ações cujos autores, incluindo o Ministério Público e os particulares patrocinados pela Defensoria Pública - órgãos do próprio estado, o que eleva o teor de contradição e ironia no tema -, exigem da administração pública, de seus agentes, delegatários e parceiros, a reparação solidária daqueles danos ou a adoção de medidas que os precatem, sob os mantras da censura à impunidade e da isonomia no tratamento devido a todos.
Nas entrelinhas dos pleitos e cobranças jurídicos, culturais, políticos e econômicos aninha-se a esperança – ou a desesperança – de a responsabilização vir a ser o caminho para forçar-se, pelo temor das consequências, uma atuação por parte daqueles entes e seus agentes ou parceiros que os obrigue a planejar suas ações, especificando-lhes previamente os resultados de interesse público a alcançar, bem como a controlar e avaliar a respectiva execução a custos razoáveis, de modo idôneo e probo.
A lei 14.133, de 1/4/21 (Nova Lei de Licitações e Contratos) vem de estabelecer novos princípios e normas regentes das licitações e contratações da administração pública brasileira. Por sua extensão e proposições – algumas inovadoras, outras nem tanto -, parece buscar uma resposta para a impaciente perspectiva com que se olha para essas relações que movimentam quase 10% do PIB brasileiro, a cada ano. A nova lei emprega mais de 40 mil palavras e de 1400 normas (somados cabeças, parágrafos, incisos e alíneas de seus 192 artigos) para projetar as expectativas de que as licitações e contratações da administração pública brasileira produzam, afinal, resultados eficientes (adequada relação custo-benefício) e eficazes (aptidão para alcançar os resultados planejados).
Diante desse quadro, que reflete as expectativas da cidadania republicana no primeiro quinto do novo século, apresentam-se destacáveis, na estrutura da nova lei, quatro pontos promissores: (a) a multiplicação de espaços discricionários a serem preenchidos por decisões motivadas e conformes à principiologia; (b) a expressa segregação de funções no exercício das variadas funções que povoam o cotidiano da gestão das licitações e contratos; (c) a criação do diálogo competitivo como modalidade de licitação: (d) o critério de julgamento segundo a melhor proposta, e, não, em face do menor preço.
Quanto ao primeiro ponto, perceba-se que a nova lei segue o modelo normológico das Constituições brasileiras, habituadas a estabelecer normas gerais cuja implementação necessitará de leis e regulamentos a serem editados posteriormente. Basta citar, para ilustrar com o mais importante artigo da vigente Constituição da República em relação à estrutura, à gestão e à operação da administração pública brasileira, qual seja, o art. 37, cujas 44 normas (32 incisos e 12 parágrafos) aludem à regulação da lei em 17 oportunidades, ou seja, a aplicação de quase 40% das normas constitucionais regentes da administração pública brasileira depende da edição de normas infraconstitucionais.
A lei 14.133/21 faz uso reiterado do mesmo estratagema, por meio de expressões tais como “conforme critério da administração”, “na forma da lei”, “nos termos do edital”, “preferencialmente”, dentre outros condicionamentos cuja consequência jurídico-administrativa é remeter à decisão dos agentes públicos respectivamente competentes a escolha da solução a adotar a cada caso, sempre que a lei lhes abra espaço de opção.
A orientação – à primeira vista comprometedora da segurança jurídica - soa positiva, desde que os agentes compreendam que cada escolha há de ser precedida de pertinente e fundada justificativa, ou seja, todo ato assim exarado há de explicitar os motivos (razões de fato e de direito que embasam a decisão), que hão de ser reais, comprovados nos autos e aptos a indicar que a escolha feita é a melhor nas circunstâncias e se mostra apta a produzir os resultados planejados, à vista dos meios disponíveis.
Escolha assim formulada valoriza sobremodo o apoio técnico de estudos, pareceres, levantamentos e análises elaboradas pelos órgãos de assessoramento, perscrutando todos os aspectos relevantes do caso concreto e ministrando à autoridade competente os elementos necessários e suficientes à escolha da melhor solução dentre as possíveis, nas circunstâncias. O preenchimento desses espaços discricionários, presentes em grande número na lei 14.133/21, tende a exigir rigorosa e meticulosa instrução dos processos respectivos, atraindo a responsabilidade dos gestores, pareceristas e consultores que induzam a erro ou desvio, culposa ou dolosamente.
A lei 14.133/21 – se comparada com a lei 8.666/93 – engessa menos a atuação do gestor público e confere espaços de liberdade para as escolhas administrativas. As contratações públicas apresentam cada vez mais complexidades e a fórmula das opções serem previamente eleitas pelo legislador não resolve os problemas da vida real. A fórmula da lei 14.133/21 pressupõe maior discricionariedade que, por sua vez, demanda maior ônus argumentativo e reforço da motivação. Motivação deve ser o mantra dos agentes públicos.
Quanto ao segundo ponto, consagra, como normal legal, orientação que os tribunais de contas, sobretudo o da União, já vinham de há muito traçando para a administração pública, no sentido de evitar cumular de funções díspares os mesmos agentes, fosse pela exiguidade dos quadros de pessoal ou pela falta de agentes qualificados.
Note-se, a título ilustrativo, a impropriedade de designar-se o mesmo agente para exercer funções de assessoramento e de tomada de decisões, em matéria de licitações e contratos. Ou se perde a qualidade do assessoramento, ou se compromete a autonomia da decisão. Por isto que se há de aplaudir o disposto nos artigos 5º, II, e 7º, § 1º, que, nomeando a segregação de funções como diretriz, vedam “a designação do mesmo agente público para atuação simultânea em funções mais suscetíveis a riscos, de modo a reduzir a possibilidade de ocultação de erros e de ocorrência de fraudes na respectiva contratação”. Daí a importância de expandir-se a atuação das escolas de governo na formação e no aperfeiçoamento de servidores, tal como recomenda o art. 39, $ 2º, da Constituição Federal.
A aplicação do princípio da segregação das funções deve, entretanto, levar em consideração as distintas realidades dos entes federados, em especial dos Municípios de menor porte. Daí a necessidade de um certo temperamento na sua aplicação à luz da realidade local, evitando se exigir o impossível em estruturas públicas excessivamente carentes de quadros para atuar no segmento da contratação pública.
Quanto ao terceiro ponto, revela a aceitação, pela lei 14.133/21, da mais significativa recomendação da administração dialógica que caracteriza o estado democrático de direito, qual seja aquela que reconhece a importância da participação da cidadania na tomada de decisões que a todos possam interessar e sobre muitos possam repercutir concretamente.
Proscrevendo antigas e anacrônicas modalidades de licitação, tais como a tomada de preços e a carta-convite, a nova lei cria a modalidade do diálogo competitivo, figura desconhecida da legislação brasileira anterior, porém praticada no direito alienígena com reconhecido êxito, na conformidade do que se tem convencionado chamar de “administração consensual”.
A nova lei configura as modalidades de licitação já nas definições arroladas em seu art. 6º, que, a exemplo do que ocorria com a lei 8.666/93, em artigo do mesmo número, também consolida conceitos operacionais, ou seja, os que valem para fins de aplicação da lei. Em seu inciso XLII, define o diálogo competitivo: “modalidade de licitação para contratação de obras, serviços e compras em que a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento dos diálogos”.
O art. 32, caput, adverte que a novel modalidade é de uso restrito a contratações de objeto a que corresponda o cenário factual descrito no inciso I: “a) inovação tecnológica ou técnica; b) impossibilidade de o órgão ou entidade ter sua necessidade satisfeita sem a adaptação de soluções disponíveis no mercado; e c) impossibilidade de as especificações técnicas serem definidas com precisão suficiente pela Administração”.
O “e” que precede o terceiro requisito significa que se trata de exigências cumulativas, ou seja, para que seja cabível a modalidade do diálogo competitivo se impõe a presença concomitante dos três requisitos enumerados no inciso I, do art. 32, devidamente comprovados nos autos do respectivo processo administrativo. Comprovados, não apenas alegados. Tenha-se em mente que o uso dessa modalidade implica que a Administração leve em conta a contribuição dos particulares interessados na definição das características que deverá ter o objeto a ser contratado, bem como a estimativa de seu custo específico, vale dizer que esse diálogo influenciará, previamente, a definição da equação econômico-financeira do futuro contrato. Isto porque os futuros licitantes somente poderão compor suas propostas de preço e/ou técnicas, para apresentá-las à Administração, depois de definido o objeto a ser licitado através desse diálogo.
A mesma linha de raciocínio preside a interpretação e a aplicação do inciso II, do art. 32, que restringe a modalidade do diálogo competitivo à pertinente identificação dos meios e das alternativas capazes de satisfazer as necessidades administrativas, destacando, em suas alíneas: “a solução técnica mais adequada; os requisitos técnicos aptos a concretizar a solução já definida; a estrutura jurídica ou financeira do contrato”.
Basta tal perfil normativo para se deduzir que a modalidade do diálogo competitivo é absolutamente incompatível com qualquer traço de aproximação das modalidades da concorrência e do pregão, constituindo modalidade efetivamente distinta e inovadora no direito brasileiro, a exigir instrução processual e rito procedimental peculiares. Daí o § 1º, do art. 32, desenhar, em doze incisos, o perfil de como a modalidade deve ser operada, enunciando prazos, vedações, cautelas e deveres dos agentes públicos.
O diálogo competitivo inaugura a flexibilidade durante a realização da licitação, se opondo a tradicional rigidez nos procedimentos licitatórios brasileiros. Em certa medida, o diálogo concorrencial, o Procedimento de Manifestação de Interesse e a própria contratação integrada assumem, como ponto de partida, um afastamento de uma certa prepotência estatal que suponha ser possível o ente público predefinir ex ante todas as características do objeto. Em um mundo com cada vez mais tecnologias sofisticadas e em permanente inovação, natural que em objetos complexos a Administração Pública não consiga definir o objeto sem dialogar com a iniciativa privada. A inovação da nova modalidade é que o diálogo se trava durante a licitação, seguindo o modelo europeu já consolidado desde as Diretivas de 2004.
Seguramente, o diálogo competitivo não será uma modalidade corriqueira e nem usual. A curva de aprendizado é longa, mas certamente poderá ser um instrumento relevantíssimo para contratações complexas e sofisticadas.
Quanto ao quarto ponto promissor, a nova lei enfim substitui, no direito positivo brasileiro, o nefasto prevalecimento do critério de julgamento de propostas segundo o menor preço.
O art. 33 alinha como critérios de julgamento de propostas: menor preço; maior desconto; melhor técnica ou conteúdo artístico; técnica e preço; maior lance, no caso de leilão; e maior retorno econômico. A leitura do art. 34 transmite, desde logo, a mudança de método de avaliação de propostas até mesmo em relação ao vetusto critério do menor preço, que deverá passar a levar em conta “o menor dispêndio para a Administração, atendidos os parâmetros mínimos de qualidade definidos no edital de licitação”. Ou seja, sequer o critério de maior objetividade – menor preço – se satisfaz com a só comparação entre valores, para que prevaleça o menor, se este desatender aos parâmetros de menor dispêndio em termos de qualidade.
O julgamento segundo o critério do menor preço, sob o regime da Lei nº 8.666/93, sempre padeceu de inadequada simplificação, ao passar-se do texto da lei à sua aplicação prática. Na maioria dos casos, porém, os editais, sob a regência da lei 8.666/93, não enunciavam requisitos objetivos de qualidade que as propostas devessem cumprir, satisfazendo-se com o menor preço independentemente da qualidade do objeto, embora o seu art. 40, VII, requisitasse que o edital incluísse, como item obrigatório, “critério para julgamento, com disposições claras e parâmetros objetivos”. E a despeito, ademais, de o verbete 177, da Súmula do Tribunal de Contas da União, enfatizar que a definição precisa e suficiente do objeto licitado constitui regra indispensável da competição, fato é que o menor preço sempre foi utilizado de forma distorcida, gerando contratações ineficientes e antieconômicas.
Em outras palavras, no regime da lei 8.666/93, a especificação do objeto, quanto às características necessárias para a Administração, estaria satisfeita com o só cumprimento pelo edital da ordem legal e sinalizasse qual seria a proposta vencedora: a de menor preço, independentemente da qualidade do objeto, desde que este atendesse às especificações definidas.
Para a lei 14.133/21, de outro lado, será necessário averiguar, antes de consagrar o menor preço, o menor dispêndio segundo “parâmetros mínimos de qualidade definidos no edital”. É de esperar-se que de licitação assim estruturada e conduzida resulte a contratação de objetos de qualidade pelo menor preço, abolindo-se a cultura do menor preço por si só, que sempre prevaleceu na Administração pública brasileira, em detrimento do dispêndio, ou seja, despesas com manutenção, correção, troca, adaptação, reposição que, entre outras providências, acompanham, em regra, a contratação de produtos de qualidade inferior, com a decorrente prevalência do conhecido adágio de que “o barato sai caro”. Para que bem se cumpra a nova orientação, os agentes públicos de execução e de controle dos contratos administrativos deverão empenhar-se na aplicação da regra do “menor dispêndio” como tradutora de qualidade e condicionante do “menor preço”.
Daí o art. 34 acrescentar, em seu § 1º, orientação sobre a consideração, para a definição do menor dispêndio, dos chamados custos indiretos, “relacionados com as despesas de manutenção, utilização, reposição, depreciação e impacto ambiental do objeto licitado, dentre outros fatores vinculados ao seu ciclo de vida, desde que objetivamente mensuráveis".
A identificação do menor preço com o menor dispêndio também dependerá de os agentes públicos praticarem, com rigor metodológico, as regras do art. 23. A verificação do menor preço se fará, destarte, em compatibilidade com o preço de mercado corretamente apurado pela Administração, para objetos com as especificações e o padrão de qualidade previamente definidos, com o fim de evitar que a proposta de preço cotado, diante do praticado pelo mercado, vicie a escolha da proposta de menor preço do objeto qualificado.
É chegada a hora de mudar, de uma vez por todas, a cultura do menor preço como eixo central das contratações públicas brasileiras. Economicidade não significa o dispêndio do menor valor, mas a melhor relação custo/benefício na obtenção da proposta vantajosa, o que pressupõe maior apreço aos padrões de qualidade mínimo aceitáveis para a Administração Pública.