Atualmente o Brasil, quiçá o mundo, vive um momento de extremos e radicalismos, onde as posições antagônicas são objeto de violentos confrontos, principalmente nas redes sociais.
O direito, como uma das principais ferramentas de regulação da sociedade e de pacificação da convivência social, está intimamente envolvido em tais inflamadas celeumas.
No direito das famílias, em especial, um exemplo de tais posições extremas e radicais se dá através da passional discussão envolvendo a Lei de Alienação Parental, lei federal 12.318/10, que culminou no surgimento de três grupos sociais antagônicos: um em prol da revogação total, “do cancelamento” da lei, outro que busca a sua manutenção integral, sem modificações ou ajustes, e um terceiro, de linha moderada e pragmática, que defende o aperfeiçoamento e a correta aplicação das normas constantes em tal legislação, através da constante atualização e capacitação de todos os atores envolvidos.
A Lei de Alienação Parental, como ocorre com a maioria das leis, apresenta defeitos e qualidades, variando estes conforme o ponto de vista pessoal de cada cidadão, dos grupos, coletivos, tribos sociais, etc.
Os indiscutíveis defeitos da lei 12.318/10 se encontram, topicamente, em sua ementa e no artigo 1º, uma vez que, de forma equivocada, passam a ideia de que tal normativo introduziu de forma originária o fato alienação parental no cotidiano nacional, no ordenamento jurídico, assim como que referida legislação trata tão somente do fenômeno (psicológico, social e jurídico) que é a alienação parental.
O fenômeno da alienação parental, que é uma das espécies de assédio familiar e moral, configurando violência psicológica1, existe desde os primórdios do mundo civilizado, carregando forte bagagem cultural e transgeracional.
A ementa da lei em testilha, para retratar os verdadeiros objetivos e o real conteúdo das disposições contidas na legislação em questão, deveria dizer que essa dispõe sobre mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares2, objetivando dar proteção especial às famílias, bases da sociedade,3 assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade4, de forma integral5, o direito ao respeito e à convivência familiar, colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, a fim de lhes proporcionar o completo desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade6.
A lei 12.318/10, por integrar, complementar e aperfeiçoar, visando alcançar o objetivo da proteção integral, o sistema protetivo legal iniciado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei federal 8.069/90, encontra seu norte interpretativo nas disposições contidas nos artigos 100 e 153 do referido ECA, devendo o hermeneuta ter em mente que o fim das normas insertas na Lei de Alienação Parental é buscar a criação, a manutenção e o fortalecimento de saudáveis vínculos familiares e comunitários, sendo expressamente vedado o afastamento da criança ou do adolescente de suas famílias de origem, sem que haja previsão legal para tanto, devendo, em todas as hipóteses, ser observado, em quaisquer das fases, o devido processo legal7.
O anseio pela busca da criação, da manutenção e do fortalecimento dos saudáveis vínculos familiares e comunitários, tem como escopo principal permitir o sadio desenvolvimento, psíquico e moral da criança e do adolescente, dando a tais cidadãos, sujeitos de direito, a chance de conhecerem e preservarem todas as suas origens, de construírem suas imagens, personalidades e identidades, com autonomia para, respeitado seu estágio de desenvolvimento, formarem seus próprios valores, ideias e crenças, enfim, encontrarem seu lugar no mundo.
Tal assertiva é confirmada pela lei 13.327/16, que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância, o Marco Legal da Primeira Infância, que, complementando e aperfeiçoando o ECA, a Lei de Alienação Parental e outros normativos, reforça que para o desenvolvimento infantil integral, se faz necessário políticas públicas de fortalecimento das famílias, materna e/ou paterna, no exercício compartilhado de suas funções de cuidado e educação de seus filhos8.
Visando o fortalecimento das famílias, o Marco Legal da Primeira Infância introduziu dois dispositivos no ECA, especificamente, parágrafos únicos nos artigos 3º e 22, que, conjugados, determinam o seguinte:
“Em relação a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem, mães, pais e responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança, devendo ser resguardado o direito de transmissão familiar de suas crenças e culturas.”
Fica claro que para as crianças e adolescentes desenvolverem seus valores, ideias e crenças, é necessário que conheçam todas as famílias das quais se originaram, que convivam com as eventuais diversidades culturais, de crença e de origem, aprendendo a ter tolerância com as diferenças e particularidades existentes, pois só assim poderão desenvolver, de forma autônoma, sua própria imagem, personalidade e identidade.
Ter ciência de suas origens, de sua ancestralidade, é tão importante, se revelando até mesmo uma necessidade inarredável do ser humano, que o próprio legislador federal, ciente disso, deixou estampado no art. 48 do ECA que “o adotado tem direito de conhecer sua origem biológica”, podendo o acesso a tal informação ser concedido, inclusive, aos cidadãos com idade inferior a dezoito anos.
Conhecer o passado de seus ascendentes é uma forma de prevenção, de correção de rumos, de quebra de ciclos, pois, adaptando a frase de Edmund Burke, “aquele que não conhece a sua história, está condenado a repeti-la”.
Garantir a convivência familiar saudável, em um arranjo no qual mães e/ou pais, que vivam ou não sob o mesmo teto, ainda que não tenham mais qualquer tipo de convívio ou relação entre si, a não ser a sociedade parental, de forma madura, compartilhem9 os cuidados e a educação do filho10, ensinando e incentivando que esses respeitem e obedeçam a todos os seus ascendentes11, permitindo a transmissão familiar de suas respectivas crenças e culturas, também é um remédio apto a franquear que todos os genitores, lato senso, biológicos e/ou socioafetivos, possam exercer sua autoridade parental, quebrando a ultrapassa visão de funções estereotipadas de homens e mulheres12, ajudando a eliminar eventuais discriminações contra a mulher em todos os assuntos relativos ao casamento, às relações familiares, à maternidade e à paternidade13.
O legislador federal, em sua missão constitucional, atento à necessidade de buscar e permitir a criação, a manutenção e o fortalecimento de saudáveis vínculos familiares e comunitários, ciente dos benefícios que isso traz para as crianças, adolescentes, famílias e toda a coletividade, teve o cuidado de, no corpo da Lei de Alienação Parental, evitar criar um método inquisitivo, preferindo instituir um processo terapêutico, através da realização de perícias realizadas por equipes interprofissionais ou multidisciplinares14, especializadas15, compostas por profissionais com formação acadêmica em suas respectivas áreas16, buscando entender o histórico, o cotidiano, as angustias, aflições e os desejos, o contexto de todas as famílias envolvidas, tanto das unilaterais17, na visão de mães e/ou pais (biológicos ou socioafetividade), como da nuclear, esta, imutável, na ótica do filho.
Importante ressaltar que, face à relevância dos objetivos visados por tal procedimento terapêutico, o legislador federal, sabiamente, determinou que o Estado, incluído o Poder Judiciário18, tem a obrigação de proporcionar e efetivar a formação continuada e a capacitação permanente de todos os profissionais envolvidos no curso dos respectivos processos19.
Como a psicanalista, mestre e doutora em Direito Civil, Giselle Câmara Groeninga, costuma dizer em suas palestras, a lei 12.318/10 determina no §1º, de seu artigo 5º, abaixo transcrito, que seja realizada uma perícia 360º, abordando todos os aspectos e especificidades das diversas famílias envolvidas.
“Art. 5o Havendo indício da prática de ato de alienação parental, em ação autônoma ou incidental, o juiz, se necessário, determinará perícia psicológica ou biopsicossocial.
§ 1o O laudo pericial terá base em ampla avaliação psicológica ou biopsicossocial, conforme o caso, compreendendo, inclusive, entrevista pessoal com as partes, exame de documentos dos autos, histórico do relacionamento do casal e da separação, cronologia de incidentes, avaliação da personalidade dos envolvidos e exame da forma como a criança ou adolescente se manifesta acerca de eventual acusação contra genitor.”
Concluído tal procedimento terapêutico, seguindo a diretriz de que a manutenção ou a reintegração de criança ou adolescente às suas famílias terá preferência em relação a qualquer outra providência20, o sistema legal de prevenção e proteção traz, como medidas preferenciais e pedagógicas, as seguintes, extraídas do art. 129 do ECA e do art. 6º da lei 12.318/10: advertência, encaminhamento a serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos, encaminhamento, até mesmo compulsório, a tratamento psicológico, biopsicossocial ou psiquiátrico, encaminhamento a cursos ou programas de orientação e ampliação do regime de convivência familiar.
Caso tais medidas pedagógicas não surtam efeito ou caso haja resistência dos pais, mães e demais familiares envolvidos em obedecê-las, somente a partir daí poderão ser aplicadas as outras medidas previstas nos dispositivos legais mencionados, sempre observada a gradação constante em tais normas.
Assim, após esse breve exposição, como sempre respeitando as fundamentadas opiniões em contrário, pensando no pleno desenvolvimento da criança e do adolescente, na proteção especial que as famílias devem ter do Estado, buscando que a cada dia possamos evoluir na construção de uma sociedade justa, imbuída de tolerância, de respeito às diversidades raciais, sexuais, familiares e de origem, quebrando ultrapassados estereótipos, preservando as culturas e as tradições familiares, se faz necessário que os extremos, as posições radicais, em uma demonstração de maturidade, dialoguem, evitando que o combate fratricida de posicionamentos resulte em um inconstitucional retrocesso social de todo um sistema protetivo e preventivo, representado pelo ECA, Lei de Alienação Parental, Marco de Primeira Infância e outros, que vem paulatinamente sendo construído desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o que, se concretizado, atentaria contra princípio da vedação de proteção deficiente de bens jurídicos tutelados.
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1 Art. 4º, II, “c”, lei 13.341/17.
2 Art. 226, §8º, Constituição Federal.
3 Art. 226, caput, Constituição Federal.
4 Art. 227, caput, Constituição Federal.
5 Art. 1º, lei 8.9069/90.
6 Art. 3º, caput, lei 8.906/90.
7 Art. 24, lei 8.069/90.
8 Art. 13, lei 13.257/16.
9 Arts. 1.583, §1º e 1.584, §2º, Código Civil.
10 Art. 18, Decreto 99.710/90, Convenção sobre os direitos da Criança; arts. 1.579, caput e parágrafo único, 1.634, I e 1.636, caput e parágrafo único, Código Civil.
11 Art. 1.634, IX, Código civil c/c art. 29, “c”, Decreto 99.710/90.
12 Art. 5º, “a”, Decreto 4.377/02, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher.
13 Art. 16. Decreto 4.377/02.
14 Art. 157, §1º, Lei 8.069/1990.
15 Art. 699, Código de Processo civil; Arts. 5º, parágrafo único, 12, I, II, V e §3º, lei 13.341/17.
16 Art. 473, III, Código de Processo Civil.
17 Art. 226, §4º, Constituição Federal.
18 Arts. 14, caput e parágrafos, e 15, Resolução CNJ 299/19.
19 Arts. 70, III e 88, VIII, lei 8.069/90; Art. 10, lei 13.257/16; Arts. 5º, XI, 14, §1º, II, e 20, §1º, lei 13.431/17.
20 Art. 19, §3º, ei 8.069/90.