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Aspectos Regulatórios das margens de preferência na nova Lei de Licitações

A nova Lei de Licitações renova esse poder regulatório, trazendo novidades, as quais serão brevemente tratadas aqui no que tange especificamente às margens de preferência.

3/5/2021

O poder regulatório exercido pela Administração Pública propriamente dito trata-se do “conjunto de medidas legislativas, administrativas, convencionais, materiais ou econômicas, abstratas ou concretas, pelas quais o Estado, de maneira restritiva da autonomia empresarial ou meramente indutiva, determina, controla ou influencia o comportamento dos agentes econômicos”, como bem afirma o prof. Alexandre dos Santos Aragão1.

E a nova Lei de Licitações renova esse poder regulatório, trazendo novidades, as quais serão brevemente tratadas aqui no que tange especificamente às margens de preferência delimitadas no art. 26, da lei federal 14.133 de 1º de abril de 2021.

Inicialmente, importa ressaltar que o PL 4.253/20, que culminou na publicação da nova Lei de Licitações, acabou tendo importantes e polêmicos trechos vetados pelo Presidente da República, dentre as hipóteses de margem de preferência fixadas no texto final encaminhado pelo Congresso Nacional para sanção presidencial.

O art. 26, parágrafos 3º e 4º, do PL 4.253/20, previam as seguintes margens de preferência:

(...)

“Art. 26. No processo de licitação, poderá ser estabelecida margem de preferência para:

§ 3º Os Estados e o Distrito Federal poderão estabelecer margem de preferência de até 10% (dez por cento) para bens manufaturados nacionais produzidos em seus territórios, e os Municípios poderão estabelecer margem de preferência de até 10% (dez por cento) para bens manufaturados nacionais produzidos nos Estados em que estejam situados.

§ 4º Os Municípios com até 50.000 (cinquenta mil) habitantes poderão estabelecer margem de preferência de até 10% (dez por cento) para empresas neles sediadas.”

Diante de tais inovações legislativas, o Presidente da República2, por sugestão do Ministério da Economia e da Advocacia Geral da União, concluiu que os preceitos normativos concernentes  a possibilidade dos Estados e Municípios criarem margem de preferência para produtos produzidos em seu território “viola a vedação de criação de distinção entre brasileiros ou preferências entre si, consoantes art. 19, III, da Constituição da República”, bem como  “contraria o interesse público ao trazer percentual da margem de preferência a fornecedores sediados no Estado, Distrito Federal ou Município sendo um forte limitador da concorrência, em especial nas contratações de infraestrutura.”

Nesse sentido, com acerto, Adriana Dantas e Fernando Villela de Andrade Vianna3 já haviam afirmado que tais previsões legais constantes do projeto de lei tratavam-se de “autorização genérica que, a rigor, permite a adoção de margem de preferência para todo e qualquer produto, conferindo uma discricionariedade ampla e indesejada para o administrador público local”.

Ao que parece, num primeiro momento, os malefícios preponderam aos benefícios caso viesse à tona tal liberalidade aos Municípios e aos Estados, criando novo ambiente de guerra federativa, similar à Guerra Fiscal tão bem vivenciada no ambiente tributário através da concessão de incentivos fiscais unilaterais.

Não obstante, a sobrecarga de 10% (dez porcento) nos valores delimitados para contratação pela Administração Pública no âmbito de municípios de até 50.000 (cinquenta mil) habitantes, os quais, obviamente, possuem orçamento extremamente limitado, criaria um ambiente de legalidade para o gestor público realizar a contratação economicamente prejudicial ao Município, além de possibilitar eventual quebra de isonomia no certame licitatório quando presente agente econômico de grande porte naquela municipalidade.

Já a redação oficial da lei federal 14.133/21 prevê como novidade a “margem de preferência aos bens reciclados, recicláveis ou biodegradáveis, conforme regulamento (art. 26, II)”, que exigirão regulamentação a ser feita pelos órgãos da Administração Pública em sentido amplo, conforme Jorge Ulisses Jacoby Fernandes4 bem analisou em recente artigo publicado acerca dessa perspectiva adotada pela lei.

Excepcionando a esse regulamento amplo que poderá ser feito pela Administração Pública lato sensu, o art. 26, § 2º, prevê que competirá ao Poder Executivo Federal regulamentar a margem de preferência dos bens manufaturados nacionais e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica do País, que poderá ser de até 20% (vinte porcento), demonstrando claro objetivo do legislador no sentido de que o Poder Executivo Federal defina a política de fomento de desenvolvimento tecnológico do país através das contratações realizadas por meio de Licitação.

Entretanto, embora seja visível a busca da Administração Pública, através do seu poder regulador, buscar a melhoria tecnológica dos agentes econômicos nacionais, esta margem de preferência nacionalista vai de encontro ao pleito do Governo Brasileiro em aderir ao Acordo de Compras Governamentais (GPA - Government Procurement Agreement), que se trata de acordo plurilateral envolvido por países como Estados Unidos, China e Japão, em que os Estados signatários devem conferir tratamento isonômico a empresas nacionais e estrangeiras no setor público, conforme já bem analisado pela profa. Jéssica Acocella5.

Por outro lado, o dispositivo legal previsto no art. 26, § 1º, III, traz incentivos a retomada de negociações de acordos comerciais no âmbito do Mercosul, além de trazer segurança política e evolução normativa em relação à previsão legal constante do art. 3º, § 10º, da lei 8.666/93, ao condicionar a extensão da margem de preferência relacionada a “bens manufaturados e serviços originários de Estados Partes do Mercado Comum (Mercosul), desde que haja reciprocidade com o País prevista em acordo internacional aprovado pelo Congresso Nacional e ratificado pelo Presidente da República”.

Bom, feita essa breve análise das implicações das novidades trazidas pela lei federal 14.133/21 no aspecto regulatório da licitação, especialmente no que se refere às margens de preferência, aguardemos ansiosos se de fato tais inovações legais serão aplicadas, bem como da eventual possibilidade de derrubada dos vetos parciais realizados pelo Presidente da República, para, assim, saber quais inovações legislativas de fato tornarão efetivo o mister da licitação de “instrumento jurídico para a realização de valores fundamentais e a concretização dos fins impostos à Administração Pública”, como bem preceitua o ilustre professor Marçal Justen Filho6.

________________

1 ARAGÃO,  Alexandre Santos de. Agências Reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo Econômico. 3ª Edição. Rio de Janeiro. Editora Forense, 2002, p. 40.

6 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 13ª edição. São Paulo. Editora Dialética, 209, p.58.

Pedro Ludovico Teixeira
Advogado do escritório Bento Muniz Advocacia. Graduado em Direito pelo IDP. Pós-graduando em Direito Público pela PUC/RS. Membro do Grupo de Pesquisa em Direito Administrativo Sancionador do IDP.

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