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A criação das Sociedades Anônimas é um primeiro passo, mas não é a salvação do nosso futebol

O regime tributário das SAFs for menos benéfico do que é o dos clubes associativos, muitos desses últimos poderão ignorar os benefícios concedidos à SAF em favor de um tratamento tributário mais vantajoso e de poder ser proponente da LIE, uma vez que boa gestão.

3/5/2021

Muito se tem falado do projeto de lei 5.516/19, de autoria do Sen. Rodrigo Pacheco, hoje Presidente da casa, que cria a Sociedade Anônima do Futebol - SAF. O atual relator do PL, Sen. Carlos Portinho, advogado especializado em Direito Desportivo, vem adotando um procedimento democrático ao ouvir a sociedade por meio dos stakeholders da indústria do futebol. De acordo com o Sen. Portinho, até final de abril deveremos ter a versão final do PL.

Certamente o PL 5.516/17 é um avanço no ecossistema desportivo brasileiro, mas não devemos, e nem podemos, esperar que o PL seja a salvação do nosso futebol. A despeito de sua importância, o simples ato de constituição ou transformação de clubes associativos em SAFs não terá o condão de representar essa salvação. Tampouco será garantia de boa prática de governança e boa gestão. Vide exemplos em Portugal, Espanha, Itália e Chile.

Isto posto, acerta o Sen. Portinho ao dispor no PL 5.516/19 questão relativa, exclusivamente, à criação das SAFs, sem adentrar em questões outras do nosso futebol que também precisam ser regulamentadas para a busca do sucesso, da boa governança e da boa gestão. Acerta o Sen. Portinho, igualmente, em preservar o texto original no sentido de tornar facultativa a criação e transformação dos clubes associativos em SAFs.

Entendo que algumas disposições do PL 5.516/19 deveriam ser melhor discutidas. E cito algumas. A primeira refere-se aos direitos de propriedade intelectual. Será que esses direitos não deveriam ser transferidos/cedidos às SAFs, o que pode ser feito, por exemplo, por meio de integralização do capital social? Evitar-se-ia, assim, que uma SAF, falindo, deixasse seus credores sem a possibilidade de recuperar seus créditos com eventual alienação de um dos principais ativos do clube de futebol, sua marca.

Evitar-se-ia, também, que viesse a ocorrer casos como o do Belenenses em Portugal, onde houve uma cisão entre clube associativo e sociedade anônima. A marca (que não havia sido cedida à SAD) e o estádio ficaram com o clube associativo, que voltou a disputar a 4ª divisão, e a licença desportiva nos torneios e jogadores ficaram com a SAD, que disputa a 1ª divisão nacional.

É claro que deverá haver alternativa para os clubes associativos que competem em outros esportes. Nessa hipótese, a SAF poderá dar uma licença de uso de marca ao clube associativo. Outras medidas de proteções aos clubes associativos também podem ser previstas no contrato de cessão de marca, no estatuto social da SAF ou num eventual acordo de acionistas.

De qualquer forma, é preciso criar mecanismos para que situações como a do Belenenses não ocorram no Brasil, de modo a preservar credores, clubes associativos e SAFs.

Entendo também que as SAF's deveriam obrigatoriamente responder pelas obrigações pretéritas dos clubes associativos. Não há como não haver sucessão. Da maneira que o PL 5.516/19 trata dessa questão sucessória, os credores dos clubes associativos correm o risco de ficarem um longo tempo sem ter seus créditos satisfeitos integralmente, ou nem mesmo tê-los satisfeitos.

Quanto ao regime tributário sugerido pelo PL 5.516/19, entendo que deva haver maior estímulo à criação das SAFs. A prática tem mostrado que poucos clubes adotam uma formatação jurídica diferente da associativa nos dias atuais, muito em razão dos benefícios tributários concedidos às associações. E aqui não estou defendendo a criação de mais um Refis para o futebol, muito pelo contrário, pois entendo que não há mais argumentos que justifiquem novos planos de refinanciamento de dívidas de clubes. O que defendo é que haja, no mínimo, isonomia tributária entre SAF's e clubes associativos, ainda que exista um período de adaptação para que as duas formatações legais cheguem numa regra única.

Aliás, entendo que o PL 5.516/19 também deva equiparar SAFs e clubes associativos quanto a programas de incentivo ao esporte. Se não houver mudança, a SAF não poderá ser proponente da Lei de Incentivo ao Esporte (LIE), em seus estritos termos. Um desestímulo à sua criação. 

É bem verdade que o PL 5.516/19 procura estimular a criação de SAFs oferecendo segurança jurídica a investidores (na medida em que as mesmas deverão seguir, subsidiariamente, a lei 6.404/76 e, por consequência, as regras estabelecidas pelaCVM, por exemplo), inovando na criação das "debêntures-fut" como forma de captação de recursos, tornando indiscutível a possibilidade de se requerer a recuperação judicial e oferecendo a possibilidade de dedução do imposto de renda devido por meio do Programa de Desenvolvimento Educacional pelo Futebol - PDE.

Mas também é verdade que se o regime tributário das SAFs for menos benéfico do que é o dos clubes associativos, muitos desses últimos poderão ignorar os benefícios concedidos à SAF em favor de um tratamento tributário mais vantajoso e de poder ser proponente da LIE, uma vez que boa gestão e boa governança também podem estar presentes em clubes associativos, não sendo, portanto, monopólio das SAFs (até mesmo porque, repita-se, a criação da SAF, por si só, não é garantia de boa gestão e boa governança).

Em razão disso, entendo que, no campo do regime tributário, seja preciso dar mais estímulo às SAFs, ou, no mínimo, tornar isonômico o regime tributário entre clubes associativos e SAFs.

Não obstante as considerações acima, entendo que o PL 5.516/19 seja um primeiro passo, dentre outros tantos necessários, para que o futebol brasileiro pare de perder para o futebol europeu, dentro e fora de campo. Em geral, ele traz importantes benefícios àqueles que se constituírem ou se transformarem em SAF. De qualquer modo, não devemos esperar que o PL seja a salvação do futebol brasileiro.

A busca pela salvação do futebol brasileiro passa também, mas não só: (I) por mudanças na já remendada lei 9.615/98, seja por meio de adequações à Lei Pelé, seja pela criação de uma lei geral de esporte - não nos esqueçamos do PL 68/17 que cria a Lei Geral do Esporte (por exemplo, a cláusula compensatória precisa ser revista, há que se ter claro a distinção entre direito de arena e direito de transmissão, ainda mais nesse momento em que muito se discute a "lei do mandante" e a gravidez e licença-maternidade das jogadoras e treinadoras precisam de tratamento especial, como fez a FIFA e CBF); (II) em mais rigor na aplicação do Regulamento de Licenças de Clubes da CBF; (III) num Regulamento de Fair Play financeiro nos moldes adotado pela UEFA; e (IV) por uma mudança cultural de como enxergamos e gerimos o nosso futebol.

Felipe Lobo Faro
Especialista em Direito Desportivo do escritório Choaib, Paiva e Justo Advogados Associados.

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