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Meios de resolução de conflitos e diálogo competitivo na lei 14.133/21: Cultura do diálogo

Avançando na concretização da cultura do diálogo, a lei 14.133/21 positiva os meios adequados de resolução de conflitos e a modalidade de diálogo competitivo, sendo este uma de suas maiores novidades.

3/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Sem período de vacância, a lei 14.133/21, chamada nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, entrou em vigor no dia de sua publicação, 1º de abril de 2021. Buscou-se, através deste novo diploma normativo, imprimir maior transparência aos processos licitatórios, unificando e modernizando, bem como trazendo maior eficácia e agilidade, seja para a concretização ou para a execução de contratos administrativos.

Apesar da animação inerente a qualquer novidade legislativa, especialmente com o impacto que tal lei traz para a administração pública em geral, a lei pouco inova. A tendência do legislador foi consolidar leis, decretos, portarias, instruções normativas e entendimentos do Tribunal de Contas da União1.

Na temática acerca dos meios alternativos de resolução de conflitos na contratação pública, tem-se o mesmo cenário. Entre os arts. 151 e 154, a lei 14.133/21 apenas reproduz o que é razoavelmente aceito acerca destaa matéria.

Afinal, a inserção dos métodos adequados de resolução de conflitos remonta a construção normativa expressiva da última década. Cabe recordar que em 2010, o CNJ introduziu a conciliação e a mediação como política judiciária em nível nacional através da resolução 125/10.

Mais do que isso, a partir 2015, além da concretização do sistema multiportas pelo Código de Processo Civil, a Lei de Mediação é clara ao regular também a autocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública. Especificamente no que tange aos contratos administrativos, o art. 32, § 5º da lei 13.140/15, explicita como competência das Câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos aqueles que envolvam o equilíbrio econômico-financeiro de contratos celebrados pela administração com particulares.

Ainda, a própria alteração da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, promovida pela lei 13.655/18, dispõe no art. 26 acerca da possibilidade de celebrar compromisso com os interessados, a fim de eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa. Trata-se, portanto, de mais um incentivo à autocomposição entre administração pública e administrados.

Assim, a autorização geral dos métodos adequados em nada acrescenta no que tange à autocomposição. Tampouco inova no que concerne à arbitragem. Isso porque, a partir da lei 13.129/15, que alterou a lei 9.307/96, a administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Por esta lei, o princípio da publicidade já era expresso.

Mais do que isso, inúmeras outras leis esparsas já preveem tais possibilidades em contratos administrativos, como a Lei Geral de Telecomunicações, a Lei Geral do Petróleo e a lei criadora da Agência Nacional de Transportes Terrestres e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários2 e, mais especificamente, a lei das PPPs e das concessões de serviços públicos.

Maior novidade pode ser considerada a positivação da arbitragem e dos dispute boards. Quanto a este, embora já praticado em nosso país, trata-se da primeira lei federal a prevê-lo expressamente. Suas peculiaridades são ainda mais interessantes, quando observamos que a formação do board ou comitê se dá mesmo antes de qualquer conflito, mas no início da relação contratual, baseando-se em conhecimento estritamente técnico.

Além disso, a lei é genérica e ficou aquém da potencialidade existente neste ponto. Inicialmente, uma das principais dificuldades existentes em relação aos instrumentos citados, que já positivam o instituto, é a procedimentalização.

Quanto à autocomposição, não são estabelecidos quaisquer parâmetros ou diretrizes para nortear a celebração de acordos. Quanto à publicidade arbitral não há substrato prático para a efetivação. Caberia também estender a publicidade para os demais métodos, ficando a confidencialidade, em relação à mediação, restrita às sessões conjuntas e aos documentos firmados, vez que princípio de toda a administração.

Ainda, a lei vale-se de conceitos indeterminados, que perpetuam a insegurança na utilização dos institutos, tais quais “direito disponível”, “critérios isonômicos, técnicos e transparentes”. Por isso, observa-se que a lei perdeu a oportunidade de dar clareza nos tópicos ainda controvertidos na doutrina e jurisprudência.

Uma maior precisão e aprofundamento é imprescindível para a consolidação dessas outras maneiras de solucionar conflitos no âmbito público. Afinal, a vontade administrativa é institucional, objetiva e externa, de modo que deve ser procedimentalizada visando o controle3.

Nesse sentido é que CRISTÓVAM e EIDT, sugerem que seja previsto em lei:

a) da admissibilidade do caso para tentativa de autocomposição;

b) de oportunidade de participação das partes interessadas;

c) do esclarecimento em relação às funções que são desempenhadas pelos participantes por parte do Poder Público (agentes públicos e suas respectivas funções, mediador, assessoria jurídica etc.);

d) de transparência dos atos administrativos praticados ao longo do procedimento;

e) de publicidade à decisão final, com a devida motivação.4

Nada disso, porém, está previsto na nova lei. Mais do que isso, o próprio nome do capítulo XII, destinado ao tema, já comete um erro conceitual. Como já assente na doutrina, a expressão “alternativos” apresenta-se em uma oposição ao Poder Judiciário, isto é, com uma atuação subsidiária. Muito embora permaneça a discricionariedade da Administração na utilização das vias exemplificadas na nova lei, como efetiva facultatividade, a busca pelo interesse público exige que a Administração opte pelo meio mais adequado.

É nesse sentido que atualmente a mediação, a arbitragem e o dispute boards não podem ser considerados meios alternativos, mas meios extrajudiciais5 ou, ainda mais corretamente, meios adequados de resolução de conflitos, obviamente amparado em efetiva motivação, expondo as razões pelas quais uma via foi preterida em relação a outra6.

Nova imprecisão comete a lei ao entender pela “resolução de controvérsias”, destoando do que a própria Lei de Mediação já previu no art. 36. Isso em geral, entende-se como controvérsia jurídica, isto é, interpretações legais, formas de execução da decisão judicial e concorrência de teses doutrinárias divergentes7. O mais adequado seria a utilização de “conflito”, pois é conceito mais amplo, que, além da controvérsia, abrange o resultado das relações sociais de forma complexa.

Apesar disso, sendo o imaginário público muito calcado em uma legalidade estrita, a positivação é, sem dúvidas, muito benéfica. Até porque os meios adequados de resolução de conflitos apresentam, se aplicados com estratégia, inúmeras vantagens, dentre as quais: a celeridade, a economicidade e a revaloração da autonomia das partes, o que é absolutamente relevante, vez que ninguém conhece o caso tão bem quanto às partes, além de exigir inúmeros conhecimentos técnicos específicos. Pode ser ainda uma forma de efetivação da autotutela, enquanto pode-dever do Estado controlar a si mesmo, com a máxima efetividade possível.

No dispute board, outra vantagem é a minimização da paralisação ou inviabilização da continuidade em obras públicas, vez que, comumente, os comitês são formados antes do conflito ocorrer, tendo incumbência, inclusive, de prevê-lo quando na modalidade permanente.

Estas características contribuem tanto para o administrado, que vê o contrato alcançando seus objetivos, com maior agilidade, quanto para a Administração Pública, que pode economizar recursos materiais ou temporais públicos e dar andamento a projetos muitas vezes travados por disputas judiciais. Favorece também à sociedade, que antes ou melhor pode usufruir dos serviços e bens contratados.

Além disso, evita desgastes emocionais entre as partes envolvidas, sendo primordial em contratações de longo prazo. Para a sociedade em geral, como coloca Lília Sales, especialmente a mediação, permite a passagem da “cultura do conflito” para a “cultura do diálogo”8.

Ainda nesse caminho, merece destaque a nova modalidade de licitações introduzida no ordenamento jurídico brasileiro, o diálogo competitivo. Inspirado nas diretrizes de Contratações Públicas da União Europeia que desde 2004 preveem a figura do diálogo concorrencial. O Diálogo Competitivo é um mecanismo de otimização das complexas contratações realizadas pela administração pública por meio do diálogo do ente administrativo com a iniciativa privada.

Por meio do diálogo competitivo a Administração define os critérios a serem utilizados na pré-seleção dos licitantes e define suas necessidades, ou seja, aquelas que motivaram o processo licitatório. O objetivo é obter informações dos privados, bem como alternativas a fim de definir a solução mais adequada ao problema do Estado, a que será contratada por meio do processo licitatório. Dessa forma, o diálogo se estende até a definição da melhor alternativa e, ato contínuo, os licitantes apresentam suas propostas dentro do escopo definido pelo diálogo.

A importância da nova modalidade é a redução da assimetria de informações entre o ente público e os particulares, que passa, obrigatoriamente, pela flexibilização do processo licitatório, de modo que os particulares ofereçam diferentes e criativas soluções às complexas contratações da Administração.

Nesse sentido, vale trazer a lição de Marçal Justen Filho:

“Há uma única alternativa para resolver o problema da licitação: ampliar a competição. Isso envolve não apenas alterar radicalmente a disciplina da habilitação (que se encontra onde, mesmo? Na 8.666). É necessário consagrar o chamado ‘diálogo competitivo’, permitindo que os competidores controlem-se entre si. Nessa linha, os recursos e as impugnações dos competidores não são um problema, são a solução. As críticas da Administração aos recursos e impugnações refletem a postura equivocada em face da sociedade.”9

Resultado do diálogo competitivo é a tendência de abertura e flexibilização da administração pública, eis que passa a considerar as opiniões e propostas dos particulares – fase diálogo - antes de publicar o edital final, contendo a solução específica a que se chegou por meio do diálogo e os critérios a serem utilizados para a seleção da proposta – fase competitiva.

Nesta esteira, cumpre asseverar que a nova modalidade é reflexo da maior adoção dos meios alternativos de resolução de conflitos nas mais distintas áreas do direito. Desta sorte, a Administração Pública, seguiu esse movimento e trouxe maior abertura e flexibilização de seus procedimentos e sua atuação.

Por fim, ressalta-se aqui a relevância da nova lei de licitações quanto ao contexto de segurança jurídica que confere ao ordenamento jurídico nacional. Não é novidade o fato de que a insegurança jurídica é um dos grandes fatores que atua como óbice à atração de investimentos estrangeiros no Brasil. Um judiciário caro, lento, com decisões instáveis e controversas é, com toda a certeza, um desincentivo ao investimento no país, inclusive nos contratos de grande monta celebrados entre privados (abertos às empresas estrangeiras) e a Administração Pública.

Em entrevista ao Um Brasil, em parceria com a Expert XP 2018, a economista chefe da XP Investimentos, Zeina Latif, afirma que a insegurança jurídica e a elevada carga tributária, entre outros fatores, prejudicam a entrada de novos negócios no país. "Quem vai investir no Brasil não sabe, no ano seguinte, quais vão ser as leis que vão estar regulando seu setor."10 Na mesma toada, o professor em pós-graduação de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Samuel Pessôa, também acredita que a questão ambiental, embora importante, é apenas mais um fator em um país onde ainda reina a insegurança jurídica e um ambiente de negócios ruim11.

Neste ínterin, o capítulo XII da lei 14.133/21, que trata dos meios alternativos de resolução de controvérsias, é um importante estímulo às empresas estrangeiras que buscam diversificar seus investimentos em outros países. Isso, pois havendo qualquer conflito que tenha gênese no contrato celebrado com a Administração Pública, o particular não fica refém, necessariamente, do judiciário brasileiro. Com a publicação da nova lei de licitações, abre-se margem para a utilização da conciliação, mediação, dispute boards e arbitragem, de modo a “confortar” o investidor estrangeiro que considera aportar recursos no Brasil.

Apesar de suas imperfeições, a lei 14.133/21 traz consigo algumas novidades importantes ao ordenamento jurídico, a exemplo da previsão e positivação dos dispute boards e da inclusão do Diálogo Competitivo como modalidade de licitação, tendo importância também como unificadora de diplomas distintos em uma única lei.

Ademais, a entrada em vigor da lei ora sob análise é um sinal de que o ordenamento jurídico pátrio busca se manter em consonância com as tendências jurídicas e as inovações trazidas da experiência internacional e da doutrina. Isso se dá em razão não só do crescimento exponencial da utilização dos meios alternativos de resolução de conflitos, mas também da maior necessidade de diálogo e consensualidade entre Administração Pública e privados em prol de oferecer melhores serviços à sociedade.

Em suma, a nova lei pode ser considerado mais um passo na jornada para a consolidação da utilização dos meios alternativos de resolução de conflitos em contratos públicos e processos licitatórios, além da utilização do Diálogo Competitivo para reger os processos de contratações complexas que demandam maior interação com o particular para chegar à solução mais adequada. Consequência disso é a maior atração de investimentos estrangeiros ao Brasil e a melhora na prestação de serviços e fornecimento de produtos licitados que, como resultado último, servem à sociedade.

_________

1 NIEBUHR, Joel de Menezes. Nova Lei de Licitações eContratos Administrativos. 2. ed. Curitiba: Zênite, 2021. p. 6.

2 SCHMIDT, G. da R. Arbitragem na Administração Pública. Curitiba: Juruá, 2018, p.32.

3 DAVI, Kaline. A autocomposição e as pessoas jurídicas de Direito Público: o que mudou depois da Lei de Mediação? Publicações da AGU – O Código de Processo Civil de 2015 e a Advocacia Pública Federal. Questões Práticas e Controvertidas, v. 9, n. 04, Brasília-DF, out./dez. 2017, pp. 117-128

4 CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva; EIDT, Elisa Berton. A autorização legal para realização de acordos pela Administração Pública e a sua aplicaçãono âmbito das câmaras administrativas. Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná, Curitiba, n. 11, pp. 55-81, 2020. Disponível clicando aqui 

5 GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Manual dos MESCs: meios extrajudiciais de solução de conflitos. Barueri, SP: Manole, 2016.

6 CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva; EIDT, Elisa Berton. A autorização legal para realização de acordos pela Administração Pública e a sua aplicaçãono âmbito das câmaras administrativas. Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná, Curitiba, n. 11, pp. 55-81, 2020. Disponível clicando aqui 

7 PEIXOTO, José Roberto da Cunha; FERREIRA, Kaline. A autocomposição e sua identidade consensual: ensaio sobre conceitos. Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná, Curitiba, n. 11, pp. 11-32, 2020. Disponível clicando aqui 

8 SALES, Lília Maia de Morais. A mediação de conflitos: mudanças de paradigmas. ApudGUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Manual dos MESCs: meios extrajudiciais de solução de conflitos. Barueri, SP: Manole, 2016. p. 11.

9 JUSTEN FILHO, Marçal. Mas temos muito ainda a falar sobre licitação. Gazeta do Povo, Curitiba, 06/11/2015. Leia mais clicando aquiCopyright © 2021, Gazeta do Povo. Todos os direitos reservados.

10 Disponível clicando aqui. Acesso em 24/04/2021.

11 Disponível clicando aqui. Acesso em 24/04/2021.

Ana Carolina Martinez
Advogada no escritório Vernalha Pereira. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Membro do Grupo de Mediação e Negociação da Universidade Federal do Paraná.

Leonardo Dalla Costa
Trainee no escritório Braz Campos. Graduando em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Membro do Grupo de Mediação e Negociação da Universidade Federal do Paraná.

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