Uma vez criada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI/covid-19) na Casa Legislativa Senado da República, iniciou-se a temporada de liminares que já era esperada. No ambiente político extremamente conturbado no qual se encontra o Brasil neste último ano seria até natural se esperar que a CPI, por seus membros ou enquanto órgão do próprio Poder Legislativo, começasse a ser alvo de uma série de demandas judiciais.
O tiro de largada foi a demanda ajuizada com o fito de afastar a possibilidade de determinado Senador exercer a relatoria da CPI da covid-19. Desferido o golpe por meio de uma liminar, a questão, por intermédio de um requerimento de suspensão de segurança, foi ter com os costados na segunda instância do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que entendeu por bem deferir o requerimento de suspensão.
De fato, pode-se encontrar uma certa atecnia no pedido da ação originária (mandado de segurança) bem como na decisão ora suspendida. Não existe eleição para relator de Comissão no Senado da República.
Na verdade, e isto encontra-se estampado no art. 89, caput e inciso III do Regimento Interno do Senado, cabe ao Presidente da comissão designar relatores para as matérias.
Portanto, o pedido feito, e mesmo a liminar concedida pelo juízo de primeiro grau não possuíam efetividade jurídica alguma, menos ainda eficácia, visto que visava (a decisão) proibir algo que já não se poderia fazer.
Por outro lado, é de se notar que a questão, não somente, mas também, por estar inserida no próprio Regimento Interno da respectiva casa legislativa, cuida do que é chamado de matéria interna corporis.
Já não é de agora que a doutrina trata do tema. Com efeito, já se afirmou que deve ainda o Poder Judiciário abster-se de enfrentar questão que diga respeito a ato interna corporis de instituições legislativas1.
A definição de atos interna corporis é vetusta. Já Hely Lopes o dizia:
Interna corporis são só aquelas questões ou assuntos que entendem direta e imediatamente com a economia interna da corporação legislativa, com seus privilégios e com a formação ideológica da i ei, que, por sua própria natureza, são reservados à exclusiva apreciação e deliberação do Plenário da Câmara. Tais são os atos de escolha da Mesa (eleições internas), os de verificação de poderes e incompatibilidades de seus membros (cassação de mandatos, concessão de licenças etc.) e os de utilização de suas prerrogativas institucionais (modo de funcionamento da Câmara, elaboração de regimento, constituição de comissões, organização de serviços auxiliares etc.) e a valoração das votações2.
O próprio Supremo Tribunal Federal já se debruçou sobre o tema, por exemplo, no MS 22.494/DF, decidido pelo pleno, ao fazer consignar que o respectivo pedido não deveria ser conhecido quanto ao fundamento regimental de ofensa ao parágrafo 1º do art. 145 do RISF (indicação, no requerimento, do limite das despesas a serem realizadas pela CPI), por se tratar de matéria interna corporis do Poder Legislativo, não sujeita à apreciação pelo Poder Judiciário3. Há até quem afirme textualmente que a eficácia do controle jurisdicional sobre os poderes investigatórios das CPIs é insatisfatório inclusive porque existe sempre possibilidade da alegação de que a separação dos poderes estaria melindrada pelo Judiciário, ao intervir em questões interna corporis do Legislativo (...)4.
Este entendimento é consagrado no âmbito da jurisprudência de nossa Suprema Corte, como se pode ver inclusive de julgados mais recentes, como no caso do MS 35.581 AgR, de Relatoria do Ministro Luiz Fux, Tribunal (Tribunal Pleno, DJe 22.6.18) no qual trazemos o seguinte recorte:
1. O Poder Judiciário não possui competência para sindicar atos das Casas Legislativas que se sustentam, unicamente, na interpretação conferida às normas regimentais internas. Precedentes: MS 25.144 AgR, Relator Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 28.2.18; MS 31.951 AgR, Relator Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 31.8.16, MS 24.356, Relator Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, DJ 12.9.3.
Este foi o caminho trilhado pela decisão de suspensão de segurança, ao afirmar que não há dúvidas de que a designação de senador para assumir a função de relator da CPI da covid-19 no Senado Federal configura ato interna corporis e, como tal, no que tange ao exercício dessa prerrogativa parlamentar, tal ato não se submete ao controle jurisdicional, em virtude da necessária manutenção da autonomia do Parlamento.
É evidente que o direito evolui. Foi o caso por exemplo da tramitação de emendas constitucionais. Num primeiro momento, dizia-se que a matéria relativa à interpretação de normas de regimento legislativo é imune à crítica judiciária, circunscrevendo-se no domínio interna corporis. Em seguida, como salienta a doutrina, a Corte5 passou a entender que se a questão discutida disser respeito ao processo legislativo previsto na Constituição Federal, principalmente no que for atinente ao trâmite de emenda constitucional (art. 60), é possível a discussão judicial, uma vez que ela passa a ter estatura de controvérsia constitucional6.
Portanto, a não sindicabilidade das questões interna corporis não é um dogma. No entanto, no presente estágio de evolução do direito, não é possível que o Judiciário venha a pautar a questão da escolha do relator de uma CPI.
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1 SILVA, Francisco Rodrigues da. CPIS Federais, Estaduais, Municipais – poderes e limitações. Recife: Edições Bagaço, 2001.
2 MEIRELLES, Hely Lopes. Curso de Direito Administrativo. 2003.
3 Mandado de Segurança 22494/DF, Pleno, DOU 27/6/97, com citação de precedente: MS 22.503-2/DF.
4 De acordo com Raimundo Carlyle de Oliveira Costa (Costa, Raimundo Carlyle de Oliveira. Controle jurisdicional sobre os poderes de investigação das comissões parlamentares de inquérito. São Paulo: Dialética, 2005).
5 MS 20.471/DF, rel. Min. Francisco Rezek, RTJ 112(3)/1031-1041
6 Mendes, Gilmar Ferreira. Branco, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Saraiva. 15ª ed.).