Em recente alteração normativa, promovida pela lei 14.112/20, restou incluído o artigo 7-A, na lei 11.101/05, que trouxe uma regulamentação específica para a verificação do crédito tributário no processo de falência.
Dentre outras novidades trazidas pela reforma está a necessidade de abertura de demandas incidentais, de oficio pelo juiz universal, específicas para cada ente federativo, para a inserção, verificação e apuração de todo o crédito tributário pendente de pagamento pela empresa falida a determinado ente, o que certamente gerará economia processual, em especial pela redução na quantidade de demandas incidentais para habilitação ou impugnação de créditos tributários.
Contudo, grande debate vem sendo estabelecido na comunidade jurídica acerca da divisão de competências estabelecida no §4º, incisos I e II, da lei 11.101/05, pois, estabeleceu o inciso I que “a decisão sobre os cálculos e a classificação dos créditos para os fins do disposto nesta lei, bem como sobre a arrecadação dos bens, a realização do ativo e o pagamento aos credores, competirá ao juízo falimentar”, ao passo que o inciso II dispõe que “a decisão sobre a existência, a exigibilidade e o valor do crédito, observado o disposto no inciso II do caput do art. 9º desta lei e as demais regras do processo de falência, bem como sobre o eventual prosseguimento da cobrança contra os corresponsáveis, competirá ao juízo da execução fiscal”.
Não obstante a divisão supra, vale destacar que o mesmo §4º, no seu inciso V, dispõe “que as execuções fiscais permanecerão suspensas até o encerramento da falência”, o que contraria o próprio sistema de divisão de competências estabelecido pelos incisos anteriores, se não for efetuada uma interpretação sistemática destas normas, o que passamos a apresentar.
Vale destacar que o ponto de partida de todo este sistema de divisão de competências é o artigo 187 do CTN, que traz muitos dilemas e controversas na praxe forense, pois, segundo aludido dispositivo, “a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento”. Com isto, autoriza-se aos entes federativos valer-se de duas vias: a tradicional habilitação do crédito tributário, por meio de demanda incidental ao processo principal de falência da empresa devedora; ou a propositura da execução fiscal, com a promoção da penhora no rosto dos autos da falência, pelo juízo da execução fiscal, do valor referente ao crédito tributário.
Neste sistema de dupla via, muitas vezes a Fazenda se vale da execução fiscal, e, num segundo momento, com a quebra da empresa, promove o incidente de habilitação do crédito. Neste momento surge a importância da nova regra de suspensão, prevista no inciso V, do §4º supracitado, pois não era incomum a duplicidade de crédito fiscal inserido no quadro geral de credores da massa falida.
Dentro do contexto apresentado, parece ficar claro, e outra conclusão não pode ser extraída, que aludida divisão de competências não foi estabelecida de modo estanque. Diríamos que não se trata de uma divisão material de competência, como pode parecer da leitura isolada dos incisos I e II, do §4º, sem a conjugação com o disposto no inciso V, e o disposto no artigo 187 do CTN.
Trata-se, em verdade, de uma divisão efetuada considerando a função exercida, por cada juízo, dentro de cada relação jurídica processual, consoante o momento em que estas são instaladas.
Podemos vislumbrar o estabelecimento de uma competência funcional horizontal do juízo da execução fiscal, antes da quebra (na media em que a quebra suspende a execução fiscal), e o estabelecimento de uma competência funcional horizontal específica do juízo falimentar, com a decretação da quebra, para a análise das questões inicialmente afetas ao juízo da execução fiscal.
Por esta interpretação sistemática, parece clara, por exemplo, a possibilidade do reconhecimento da prescrição (ou decadência) do crédito tributário também pelo juízo universal da falência, no exercício da sua competência funcional horizontal, se o contrário não houver sido decidido, anteriormente, pelo juízo da execução fiscal (até por conta da garantia constitucional da coisa julgada).
Por outro lado, partindo de uma leitura isolada do disposto no artigo 7-A, §4º, inciso II, da lei 11.101/05, poderia chegar-se à conclusão de que, com a quebra, não mais haveria a possibilidade de reconhecimento da prescrição ou decadência tributária pelo juízo universal da falência, conclusão esta que contraria toda a ordem jurídica, tendo em vista que são matérias de ordem pública (artigo 487, II, do CPC), que devem ser conhecidas de ofício, a qualquer momento e em qualquer grau de jurisdição1, estando fora da órbita de disponibilidade dos interessados. Ademais, a prescrição e a decadência tributária constituem, pelo CTN, uma das hipóteses de extinção do crédito tributário, consoante se extrai do artigo 156, inciso V2, sendo inconcebível a inclusão, no quadro geral, do crédito que não mais existe.
Vale acrescer que, uma interpretação isolada do disposto no artigo 7-A, §4º, inciso II, da lei 11.101/05 levaria a um inevitável vício de inconstitucionalidade material da norma.
Isto porque, e é importante observar, a competência do juízo falimentar para decidir questões que repercutem na falência (neste caso, na massa falida subjetiva), em prejuízo das varas e juízos especializados, em razão da pessoa e da matéria, como a Justiça Federal e as Varas Especializadas de Execução Fiscal da Justiça Estadual, encontra eco na própria Constituição Federal, que ao enunciar a competência da Justiça Federal, por exemplo, ressalva, expressamente, questões referentes à falência (artigo 109, inciso I, CRFB/88)3.
O juízo universal é dotado de competência material, logo absoluta, para análise das aludidas questões, cuja verificação não pode ser relegada, em especial para evitar prejuízo aos demais credores.
Deste modo, parece claro, em especial pelo exemplo apresentado, que a divisão de competências estabelecida no §4º, incisos I e II, do artigo 7º-A, da lei 11.101/05, não se refere a uma divisão de competência material, mas sim ao estabelecimento de competência funcional horizontal do juízo da execução fiscal, antes da quebra (na media em que a quebra suspende a execução fiscal), e o estabelecimento de competência funcional horizontal do juízo falimentar, que passa a ser exercida com a decretação da quebra, sendo que a competência do primeiro, estabelecida no inciso II, não anula a do juízo falimentar, exercendo, cada qual, a jurisdição a seu tempo.
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1 Vale destacar que tais questões são assim entendidas (de ordem pública), pois assim reconhecidas pelo legislador, que optou por definir a prescrição e a decadência como matérias cognoscíveis de ofício e em qualquer tempo e grau de jurisdição. Senão vejamos: Art. 487. Haverá resolução de mérito quando o juiz: (...) II - decidir, de ofício ou a requerimento, sobre a ocorrência de decadência ou prescrição (...) – destaque nosso.
2 Art. 156. Extinguem o crédito tributário: (...) V - a prescrição e a decadência.
3 Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho (destaque nosso).