A tramitação do Projeto de Lei 504, de 2020, em trâmite na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, tem despertado o interesse e chamado a atenção do mercado publicitário nos últimos dias. Em razão dele, várias agências de publicidade e propaganda, diversas entidades associativas do setor e inúmeros representantes do movimento LGBTQIA+ manifestaram-se.1
As redes sociais foram inundadas por posicionamentos contrários ao referido projeto de lei. Quase que a totalidade das manifestações foi no sentido de que o seu conteúdo afeta as liberdades individuais, sobretudo aquelas relacionadas às questões de gênero e de orientação sexual.2
O polêmico projeto de lei possui apenas três artigos, são eles:
Artigo 1º - É vedado em todo o território do Estado de São Paulo, a publicidade, por intermédio de qualquer veículo de comunicação e mídia que contenha alusão a preferências sexuais e movimentos sobre diversidade sexual relacionado a crianças.
Artigo 2º - As infrações ao disposto no artigo primeiro desta Lei serão, a princípio, multa e o fechamento do estabelecimento que atuar na divulgação até a devida adequação ao que dispõe esta lei.
Artigo 3º - Esta Lei entrará em vigor dentro de trinta dias a contar de sua publicação.
O artigo primeiro veda a veiculação, no âmbito do território do Estado de São Paulo, de publicidade que contenha alusão a preferências sexuais e movimentos sobre diversidade sexual relacionado a crianças.
O artigo segundo, a seu turno, estabelece as sanções impostas aos veículos de comunicação e de mídia que descumprirem a vedação. De acordo com o referido dispositivo, as sanções a serem aplicadas são de multa e/ou fechamento do estabelecimento do veículo que efetuou a distribuição do conteúdo publicitário defeso, até que haja a devida conformidade ao quanto disposto na vedação prevista no artigo 1º.
O artigo terceiro, por fim, versa apenas do início da vigência do ato normativo, contemplando 30 (trinta) dias de vacatio legis.
Na exposição de motivos, a Deputada Estadual Marta Costa (PSD), autora do projeto, enuncia que o objetivo da regra proposta é proibir a publicidade “que contenha alusão a preferências sexuais e movimentos sobre diversidade sexual relacionados a crianças no Estado de São Paulo”.
Acrescenta que:
[...] o uso indiscriminado deste tipo de divulgação trariam [SIC] real desconforto emocional a inúmeras famílias, além de estabelecer prática não adequada a crianças que ainda sequer possuem, em razão da questão de aprimoramento de leitura (5 a 10 anos), capacidade de discernimento de tais questões.
Conclui, afirmando que a sua intenção “é limitar a veiculação da publicidade que incentive o consumidor” do Estado de São Paulo “a práticas danosas”.
A proposta é datada de 4 de agosto de 2020, mas somente agora no mês de abril de 2021 foi submetida à votação no Plenário da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
Deve ser destacado também que as sanções previstas nos termos do Projeto de Lei 504/20 não alcançam as agências de publicidade e propaganda, nem as produtoras que tenham participado na produção da peça publicitária, nem muito menos os atores/artistas que eventualmente tenham nela trabalhado. São aplicáveis somente em relação aos veículos que fizerem a distribuição do conteúdo, conforme dispõe o seu artigo 2º, que, por trazer regra sancionatória, não pode comportar interpretação ampliativa.
A polêmica gerada em torno do referido projeto de lei diz respeito ao seu conteúdo, pois, segundo as manifestações dos principais atores do ecossistema publicitário e dos representantes do movimento LGBTQIA+, ao proibir a publicidade nos termos em que propostos no projeto, estar-se-ia firmando ato discriminatório e que seria atentatório à dignidade da pessoa humana.
Em outras manifestações foi possível colher o posicionamento segundo o qual deve sim ser pensada a proteção da criança, mas de forma geral e mais ampla possível, sem fazer distinção em razão de orientação sexual ou de gênero.
Todavia, independentemente de o seu conteúdo ser considerado discriminatório ou não, o Projeto de Lei 504/20 viola flagrantemente o nosso Texto Constitucional.
É que o artigo 22 da Constituição da República de 88, ao listar o rol de competências privativas da União, estabeleceu no seu inciso XXIX a competência do ente federal para legislar, privativamente, sobre a propaganda comercial.
A competência privativa pode ser delegada aos Estados, é verdade. Mas, para tal, é necessária que haja a edição de lei complementar autorizativa, além do que esta autorização somente poderá ser concedida para questões específicas, nos termos do parágrafo único do mesmo artigo 22.
Diga-se, ademais, que não há nosso ordenamento jurídico lei complementar federal que confira aos Estados autorização específica para legislar acerca da propaganda comercial.
Estas são as regras que constam dos dispositivos constitucionais aqui estudados:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
[...]
XXIX - propaganda comercial.
Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.
Nos parece que não há margem para interpretação diversa, senão aquela segundo a qual falta competência aos Estados para legislarem sobre propaganda comercial.
O tema específico da impossibilidade de os Estados legislarem sobre propaganda comercial já foi alvo de inúmeros debates no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 4.761, de Relatoria do Ministro Roberto Barroso e cujo acórdão foi publicado em 14 de novembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal concluiu que Lei do Estado do Paraná não poderia impor às operadoras de telefonia celular, nem aos fabricantes de aparelhos celulares, a inclusão, em suas propagandas veiculadas naquele Estado, da informação de que o uso excessivo daqueles aparelhos poderia gerar câncer, uma vez que estaria invadindo a competência privativa da União prevista no art. 22, XXIX, da Constituição de 1988:
Ementa: COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. SERVIÇO DE TELECOMUNICAÇÕES. PROPAGANDA. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO. 1. Lei do Estado do Paraná que impõe às operadoras de telefonia celular e aos fabricantes de aparelhos celulares e acessórios a obrigação de incluir em sua propaganda advertência de que o uso excessivo de aparelhos de telefonia celular pode gerar câncer. 2. Violação à competência privativa da União para legislar sobre telecomunicações e sobre propaganda comercial (art. 22, IV e XXIX, CF). Precedentes da Corte. 3. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. (ADI 4761, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 18/8/16, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-241 DIVULG 11-11-2016 PUBLIC 14-11-2016) - negritamos
Em outra oportunidade mais recente, na ADIn 5.432, de Relatoria do Min. Dias Toffoli e que teve o seu acórdão publicado em 3 de dezembro de 2018, a nossa Suprema Corte julgou procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade de Lei do Estado de Santa Catarina que vedada a veiculação de propaganda de medicamentos e similares nos meios de comunicação sonoros, audiovisuais e escritos no âmbito do território do Estado, também por violar a competência privativa da União (art. 22, XXIX, CRFB/88):
EMENTA Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 16.751, de 9 de novembro de 2015, do Estado de Santa Catarina. Vedação de propaganda de medicamentos e similares nos meios de comunicação sonoros, audiovisuais e escritos do Estado. Propaganda comercial. Matéria de competência legislativa privativa da União. Violação dos arts. 22, inciso XXIX, e 220, § 4º, da Constituição Federal. Procedência da ação. [...] 2. A lei 16.751/15 do Estado de Santa Catarina, ao vedar a propaganda de medicamentos e similares nos meios de comunicação sonoros, audiovisuais e escritos daquele estado, usurpou a competência privativa da União para legislar sobre propaganda comercial (art. 22, inciso XXIX, da Constituição), especificamente em tema de medicamentos (art. 220, § 4º, da CF/88), além de ter contrariado o regramento federal sobre a matéria, que permite que medicamentos anódinos e de venda livre sejam anunciados nos órgãos de comunicação social, “com a condição de conterem advertências quanto ao seu abuso, conforme indicado pela autoridade classificatória” (Lei Federal 9.294/96, art. 12). 3. Ação julgada procedente. (ADIn 5432, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 19/9/18, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-257 DIVULG 30-11-2018 PUBLIC 3-12-18) – negritamos.
Por fim, merece destaque o julgamento da ADIn 2.815/SC, de Relatoria do Min. Sepúlveda Pertence, haja vista versar sobre lei estadual que vedava propaganda com cunho erótico e pornográfico, situação fática que guarda certa similitude com a polêmica trazida pelo Projeto de Lei 504/20 da ALESP.
Com efeito, discutiu-se nos autos da ADIn 2.815/SC a inconstitucionalidade da lei 11.377, de 18 de abril de 2000, editada pelo Estado de Santa Catarina e que vedava publicidade, no âmbito daquele Estado, que divulgasse fotos de natureza erótica ou pornográfica.
Não houve discussão acerca do conteúdo da lei em si, mas o Supremo Tribunal Federal foi taxativo ao declarar a sua inconstitucionalidade em razão da interferência daquele Estado na esfera da competência privativa da União, in verbis:
EMENTA: Competência legislativa privativa da União: propaganda comercial: inconstitucionalidade de lei estadual que veda, em anúncios comerciais, fotos de natureza erótica ou pornográfica (ADIn 2815, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 8/10/3, DJ 07-11-2003 PP-00083 EMENT VOL-02131-03 PP-00498) - negritamos
Em todos os três julgados cujas ementas ora foram transcritas, o Supremo foi taxativo ao declarar inconstitucional as leis estaduais que tratavam de propaganda comercial, independentemente de aqueles atos normativos criarem regras de vedação ou de imposição de determinado tipo de conteúdo publicitário.
O que importa para a Suprema Corte é identificar se há atividade legiferante do Estado que tangencia a propaganda comercial e, em havendo, a norma deve ser declarada inconstitucional em razão do vício formal de incompetência.
Assim, a despeito do quanto consignado na Exposição de Motivos pela Deputada Estadual que subscreve o projeto de lei, que afirma tratar-se de lei que versa sobre a responsabilidade por dano ao consumidor, o que atrairia a competência concorrente das unidades da federação, percebe-se que, na realidade, ao dispor expressamente sobre o conteúdo da publicidade a ser veiculada, o Projeto de Lei 504/20 tangenciou especificamente a propaganda comercial, cuja atividade legiferante é de competência privativa da União.
Em outras palavras, independentemente do conteúdo do Projeto de Lei 504/20 e da celeuma em que ele se encontra imerso, trata-se de proposta legislativa eivada de vício formal de constitucionalidade, por violar o artigo 22, XXIX, da CRFB/88 e, por conseguinte, por invadir de forma escancarada a competência privativa da União, tal como já reconhecera inúmeras vezes o Supremo Tribunal Federal.
Ante a sua flagrante inconstitucionalidade, o Projeto de Lei 504/20 não poderá ser aprovado pela ALESP, mas, caso venha a sê-lo, caberá ao Supremo Tribunal Federal reafirmar a sua jurisprudência e declarar a inconstitucionalidade da lei que será criada a partir daquele projeto.
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1 Fonte: clique aqui, acesso em 21 de abril de 2021 às 22hs07min.
2 Fonte: clique aqui, acesso em 21 de abril de 2021 às 22hs15min.