1. Introdução
Após grande expectativa de toda a população acerca da autorização, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), para utilização dos imunizantes contra o novo coronavírus (SARS-CoV-2) em território brasileiro, se tornou imprescindível a regulamentação das responsabilidades por eventuais efeitos atípicos das vacinas.
A urgência sanitária pelo imunizante, única cura globalmente reconhecida, acarretou uma série de mudanças no procedimento administrativo de autorização para uso de uma vacina, para que a aprovação se desse de forma mais breve, com vistas a acelerar o restabelecimento sanitário, econômico e social do Estado Nacional.
Admitir a existência de eventos adversos de medicamentos, longe de confundir-se com o discurso negacionista, tem implicação direta na atribuição, a alguém, de responsabilidade por tais atos, já que toda e qualquer manifestação de atividade humana traz consigo consequências fáticas e jurídicas.
A partir da constatação de que a fabricação de imunizantes tão rapidamente produzidos aumentam potencialmente a existência de efeitos não previstos, sobreveio a urgência em regulamentar as normas de responsabilidade. O presente artigo tem como objetivo examinar a lei 14.125/21, que dispõe sobre a responsabilização civil por efeitos adversos da imunização contra a covid-19.
2. Breves considerações acerca da responsabilidade civil
No campo jurídico, responsabilidade nada mais é senão o dever de assumir as consequências de ato praticado decorrente de uma obrigação violada1. Em outras palavras, o não cumprimento de uma obrigação gera o dever de responder pelo prejuízo causado.
O conceito de responsabilidade, portanto, não se restringe ao campo civil, mas alcança todos os ramos do direito, como o direito penal, tributário e administrativo, de forma que, em cada campo acrescenta-se suas peculiaridades, e, ao mesmo tempo, garante a perpetuação do conceito básico e similar em todas as searas, qual seja, a violação de uma ordem jurídica2.
Sendo assim, a responsabilidade jurídica se traduz na violação de norma jurídica, por meio de atividade danosa, que acarreta o dever de responder pelos prejuízos gerados. Sendo esse, portanto, o próprio conceito de responsabilidade civil.
Esclarecidos os pontos basilares a respeito do conceito de responsabilidade civil, bem como seus pilares (conduta, dano e nexo causal), torna-se necessário chamar a atenção para a Responsabilidade Civil Administrativa ou Estatal, cuja previsão constitucional está no art. 37, § 6º3, configurando-se como mandamento básico da responsabilidade civil do Estado. Vejamos:
Art. 37, CF. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Por força deste dispositivo, a pessoa jurídica de direito público sempre responderá pelos danos causados a terceiro, independentemente de culpa ou dolo do agente público, quando houver nexo de causalidade entre a atividade da Administração e o prejuízo sofrido.
Entretanto, faz-se necessário registrar que, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), a responsabilidade civil do Estado não se esgota no referido dispositivo, de modo que, existindo relevante interesse público ou possibilidade de grave dano à sociedade, o Estado pode chamar para si a responsabilidade, inclusive por lei ordinária, e arcar com os eventuais prejuízos e dividindo o ônus com toda a sociedade, ainda que a conduta lesiva não tenha sido diretamente realizada por um agente público4.
Sendo assim, diante do cenário pandêmico enfrentado, é nítida a necessidade de o Estado Brasileiro trazer para si a os riscos inerentes aos imunizantes adquiridos, em detrimento da responsabilização das agências farmacêuticas nacionais e estrangeiras.
Saliente-se que, tal cenário não é exclusivamente brasileiro, trata-se de situação globalmente recorrente, tendo em vista que as indústrias produtoras dos imunizantes, que se viram pressionadas a produzir em larga escala, realizar testagens e concluir estudos com etapas suprimidas, dada a urgência da situação, logicamente impõem sua escusa na responsabilidade pelos efeitos atípicos do medicamento.
3. Lei 14.125/21 e a normatização da Responsabilidade Estatal pelos eventos adversos da imunização
Inicialmente, importa esclarecer que a vacinação em massa é a principal, senão a única, esperança para a estabilização definitiva e, consequentemente, o fim da pandemia pela covid-19. A comunidade científica empenhou-se para produzir imunizantes em tempo recorde, com o objetivo de salvar vidas e recuperar a economia nacional e internacional. Todavia, um dos grandes obstáculos atualmente é fazer com que as vacinas sejam disponibilizadas em doses suficientes para toda a população, no menor período.
Em contrapartida, há também uma urgência para se estabelecer normas acerca da utilização e responsabilização pelas vacinas adquiridas, já que muitas empresas fornecedoras têm se negado a responder pelos efeitos dos imunizantes. Nesse ponto, torna-se fundamental o engajamento do Ente Público em prol da normatização da responsabilidade civil, bem como os seus limites.
Isso porque, uma das principais discussões envolvendo as vacinas contra a covid-19 diz respeito a segurança dos imunizantes e quais efeitos colaterais elas podem acarretar. Exatamente por este motivo, muitos dos laboratórios vêm pressionando os Estados adquirentes, a fim de obter uma isenção de responsabilidade Civil, acaso as vacinas apresentem efeitos potencialmente perigosos ou inesperados.
Nesse sentido, a Pfizer, por exemplo, que produziu uma das principais vacinas contra o SARS-CoV-2, somente aceitou comercialização da vacina se o Ente Público contratante assumir o pagamento de quaisquer indenizações que eventualmente sejam pleiteadas pelos consumidores atingidos pelos efeitos colaterais decorrentes da imunização.
Além dos esforços dos fabricantes para exigir tal isenção de responsabilidade civil também no Brasil, e como o tema é juridicamente controverso, a lei 14.125/21 sobreveio para regulamentar a responsabilidade do Estado por eventuais efeitos colaterais resultantes da vacinação contra a covid-19.
Assim, observa-se o texto da Lei:
Art. 1º, lei 14.125/21. Enquanto perdurar a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), declarada em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), ficam a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios autorizados a adquirir vacinas e a assumir os riscos referentes à responsabilidade civil, nos termos do instrumento de aquisição ou fornecimento de vacinas celebrado, em relação a eventos adversos pós-vacinação, desde que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tenha concedido o respectivo registro ou autorização temporária de uso emergencial.
Conforme visto, a referida Lei dispõe que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Munícipios estão autorizados a adquirir vacinas, mas devem assumir os riscos referentes à responsabilidade civil.
Segundo entendimento de Alexandre Aragão, o artigo 1º da mencionada lei seria mais um exemplo de responsabilidade civil com base na teoria do risco social, em que o Estado é responsável até por danos não imputáveis ao seu comportamento independente do nexo de causalidade, e sem cabimento de causas de exclusão, como caso fortuito ou força maior5.
Inclusive, o STJ já entendeu que a vacina é uma das mais extraordinárias conquistas da medicina moderna e da Saúde Pública, embora, por outro lado, cause, em parte dos imunizados, reações adversas incalculáveis. Portanto, ao mesmo Estado que se impõe o dever de imunizar em massa, há também a responsabilidade em amparar os que venham sofrer com efeitos colaterais.
O referido Julgado decidiu, ainda que, com base no parágrafo único do art. 927 do Código Civil (CC) ou no artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), é objetiva a responsabilidade civil do Estado por acidente de consumo decorrente de vacinação, descabendo falar em caso fortuito ou imprevisibilidade de reações adversas6.
Saliente-se que, guardadas as devidas proporções, este não é um tema recente. Isso porque, na Lei Geral da Copa7, fora instituída a responsabilidade do Estado em eventuais acidentes e incidentes, já que a FIFA não aceitou arcar com a responsabilidade total do evento. Na época, ainda que a Copa do Mundo fosse um evento realizado pela referida entidade, a União foi quem se responsabilizou e assumiu os riscos de incidentes ou acidentes de segurança relacionados ao festival. Sendo, inclusive, tal responsabilização considerada constitucional pelo STF8.
Assim, encarando o cenário crítico que a pandemia trouxe e a extrema necessidade de políticas públicas diretas de conscientização e de imunização, a lei 14.125 de 2021 trouxe a responsabilidade do Ente Público prestador do serviço de vacinação, em detrimento da responsabilização das indústrias farmacêuticas. Sendo, portanto, extremamente necessário e acertado que o gestor público tome para si o risco pelas reações atípicas dos imunizantes, garantindo, assim, a imunização da população nacional e a recuperação sanitária, econômica e social de todo o Estado Brasileiro.
4. Conclusão
A lei 14.125 de 2021 dispõe sobre avanços necessários que garantem a efetivação de políticas públicas emergenciais de imunização nacional, responsabilizando a União, os Estados, o Distrato Federal e os Municípios por eventos adversos decorrentes da vacinação.
Entretanto, inegável é que ainda existem diversas lacunas quanto a aplicação da responsabilidade Civil pelo gestor público e qual seria a medida da responsabilidade dos laboratórios farmacêuticos produtores da vacina.
Em que pese as lacunas, acertadamente a referida Lei veio para responsabilizar o Ente Público em casos de eventos adversos decorrentes da vacinação contra a covid-19, vez que o cidadão precisa ter sua saúde resguardada e assegurada pelo Estado, conforme previsão constitucional, além de ser a única estratégia cientificamente reconhecida para o restabelecimento sanitário, econômico e social global
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1 STOLZE GAGLIANO, Pablo. PAMPLONA FILHO, Rodolfo., Manual de Direito Civil. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017 vol. Un, p. 867.
3 Art. 37, CF. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
4 STF - ADI: 4976 DF, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 7/5/14, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-213 DIVULG 29/10/14 PUBLIC 30/10/14.
5 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 561.
6 STJ. REsp 1.388.197/PR. Rel. Min. Herman Benjamin. DJE 19.04.2017.
7 LEI Nº 12.663, DE 5 DE JUNHO DE 2012.
8 Clique aqui Acessado em 28 de março de 2021.