Migalhas de Peso

O controle da finalidade da transferência do direito de construir

Aperfeiçoar os procedimentos da transferência do direito de construir é caminho necessário para lhe garantir efetividade e segurança jurídica.

19/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Imagine você assinar um documento se obrigando a determinado compromisso, dizendo que ele será diretamente proporcional a determinado montante em dinheiro que você receberá em breve. Só que o documento já lista suas obrigações, mesmo que você ainda não saiba exatamente quanto você vai receber. E quando você recebe, o valor exato nunca chega a fazer parte do documento que você assinou lá em cima. Agora imagina se isso acontecesse tendo o poder público como parte, com um recurso que é público? Pois é algo parecido com isso o que tem acontecido em muitas transferências do direito de construir na Cidade de São Paulo.

A transferência do direito de construir (TDC) é um instrumento urbanístico de incentivo à preservação, previsto pelo Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (PDE). Por meio dele, um empreendimento imobiliário pode adquirir potencial construtivo adicional de um tombado e, com isso, construir para além de seu coeficiente de aproveitamento básico. Afora a TDC, a regra geral para aquisição de potencial adicional é a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC), obtida diretamente da Prefeitura.

O potencial construtivo adicional é a diferença entre o utilizado e o básico, ou seja, entre o montante efetivamente construído no lote e o montante que perfaz o seu coeficiente de aproveitamento básico, correspondente ao seu direito de construir inerente. O potencial adicional descola-se, portanto, do ius aedificandi contido no direito de propriedade, sendo bem público dominical de titularidade da Prefeitura, que pode ser alienado para arrecadar recursos para custear políticas urbanísticas e socioambientais (PDE, art. 116, caput e §1º).

Os recursos provenientes da Outorga são todos encaminhados ao Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB), que é uma importante fonte de receita da Prefeitura, pois financia setores fundamentais da Cidade tais como habitação social e mobilidade urbana. Assim, com a TDC, a Prefeitura está abrindo mão de determinado recurso que iria receber, com o objetivo de que ele seja investido na preservação de edificações tombadas, que são reconhecidas como patrimônio justamente por guardarem um interesse para a coletividade. Para isso, central destacar que, para atender sua finalidade tal como prevista no artigo 123, inciso I do PDE, os recursos oriundos da TDC devem ser destinados à preservação da edificação tombada.

Indenização ou investimento público?

Há quem argumente que, pelo fato de se traduzir em recurso financeiro, a transferência do direito de construir assume caráter indenizatório ao proprietário, pelas limitações que o tombamento traz ao seu direito de propriedade. Esse posicionamento está ancorado em um debate já antigo – é sabido que muitas vezes as responsabilidades de preservação, oriundas do tombamento, se sobrepõem às capacidades administrativa e financeira de seus proprietários. Uma análise sistemática de nossa legislação urbanística municipal, no entanto, aponta em direção contrária.

Não podemos nos furtar a concluir que o recurso mobilizado pela TDC é espécie de investimento público indireto. Em primeiro lugar, porque aliena um bem que, por analogia, é de titularidade da Prefeitura. Isso porque o cálculo do potencial transferível dos tombados não leva em conta a área construída do lote, ou seja, não considera quanto do coeficiente de aproveitamento básico (aquele que o proprietário tem direito de construir gratuitamente) já foi consumido (PDE, art. 125, caput).

Toda área construída para além do CA básico é potencial construtivo adicional, portanto, de titularidade do poder público. Na imensa maioria das transferências, o que se aliena não é direito de construir, mas potencial adicional, pois se trata de edificações que já consumiram seu CA básico, tendo inclusive área construída em muito superior aos atuais coeficientes de aproveitamento máximo, porque erguidas sob legislação urbanística diversa.         

 Em segundo lugar, podemos concluir que a TDC é espécie de investimento público indireto porque retira de um fundo público – o FUNDURB – um recurso que acaba sendo negociado e gerido por particulares. E esse é um ponto central do processo da TDC: toda a negociação do potencial transferível se dá em âmbito privado, sem qualquer regulamentação quanto à sua formação de valor. Normalmente tais negociações têm como referência a regulada Outorga Onerosa – quanto custaria essa demanda de potencial adicional se obtida diretamente da Prefeitura? Mas, ao final e ao cabo, qualquer valor pode ser definido e transacionado.

Vemos, assim, um cenário em que a Prefeitura está abrindo mão de recursos que iriam para o FUNDURB sem saber quanto de fato chega para a preservação do patrimônio cultural. Essa situação é ainda mais alarmante porque, além da ausência de regulamentação sobre a composição do preço, não há no procedimento da TDC qualquer obrigatoriedade para que o proprietário comprove a que valor o potencial foi de fato vendido.

Não havendo controle sobre o valor de fato recebido, a Prefeitura não consegue estabelecer análises e métricas para saber se a política está sendo efetiva. Ou seja, ao mesmo tempo em que deixa de investir em projetos urbanísticos por meio do FUNDURB, ela tem dificuldade em comprovar que determinado montante foi direcionado à preservação do patrimônio cultural edificado. Nesse cenário, como garantir a finalidade do instrumento?

Por Termos de Compromisso efetivos

A TDC depende da anuência do DPH/Conpresp, responsável por garantir a finalidade do instrumento. Dentre os caminhos possíveis para essa anuência, está o Termo de Compromisso, no qual o proprietário do tombado se compromete a primeiro alienar seu potencial para então acessar os recursos da TDC e com eles investir na preservação do imóvel. O Termo democratiza o acesso ao instrumento ao prescindir de investimentos prévios por parte do proprietário. O modo como ele está regulamentado neste momento, no entanto, merece atenção.

Atualmente, a legislação municipal condiciona a solicitação da Certidão de Transferência de Potencial Construtivo à anterior assinatura do Termo de Compromisso junto ao DPH/Conpresp (Decreto municipal 57.536/16, art. 8º, I, i). A Certidão formaliza, diante do poder público, a transação entre tombado e receptor do potencial. É com sua emissão que a transferência se aperfeiçoa e finaliza. É a partir dela, portanto, que o tombado pode afirmar categoricamente o valor arrecadado com aquela alienação.

Com a assinatura do Termo anteriormente à alienação de fato, há um enorme problema procedimental: termos de compromisso têm sido assinados sem qualquer horizonte de comprador interessado naquele potencial, ou seja, sem qualquer horizonte do valor que será arrecadado com sua alienação. Por outro lado, para sua assinatura, o DPH/Conpresp solicita que se declare uma estimativa de ganho com a TDC. Pergunta-se: como é possível fazer essa estimativa?

Sim, nos casos regulados pelo Plano Diretor – ou seja, excluindo-se os tombados da Operação Urbana Centro, que têm regulamentação específica – é possível, por analogia aos cálculos da Outorga Onerosa, estimar o valor daquele potencial. Mas isso não passa de referência, já que o potencial está sujeito a negociações e deságios típicos do mercado de TDC.

A despeito desse ambiente de incerteza, os termos assinados se fundamentam nesse valor estimado declarado, sem que se estabeleça uma proporção clara entre os recursos a serem de fato recebidos e os compromissos firmados. Como é possível intuir, essa situação traz grande insegurança jurídica. A Prefeitura não consegue cobrar o compromisso na proporção do recurso recebido e o proprietário não consegue limitar os compromissos ao de fato arrecadado.

Houve um tempo em São Paulo que a Prefeitura acompanhava diretamente os recursos das transferências de potencial. Eram criadas contas públicas onde o dinheiro da transação era depositado e controlado conforme andavam as ações de preservação. Ao que parece, esse trâmite trazia muita morosidade ao processo e há notícias de que ainda existam recursos não utilizados nessas contas, pelo mar de burocracia em que mergulharam.

Talvez buscando remediar essa situação, o poder público municipal chegou ao outro extremo da balança: não fazer controle algum. Não existem métricas legais de precificação do potencial e não existe obrigatoriedade de comprovação do montante obtido com sua alienação. Partindo do entendimento de que há investimento público indireto no instrumento, faz-se necessário aperfeiçoar a regulação desses processos.

Além disso, é preciso que se aperfeiçoe o procedimento do instrumento, para que o Termo de Compromisso junto ao DPH/Conpresp seja assinado após ou simultaneamente à efetivação da transferência em concreto. Com isso, o documento estará ancorado em valores de fato recebidos. Isso dá efetividade à política, dá respaldo à atuação fiscalizadora do órgão de preservação e garante ao proprietário que ele será responsabilizado no limite do que arrecadou.

Entramos em 2021 com a agenda de revisão do Plano Diretor Estratégico de 2014. Uma vez que é nele que se define que o potencial adicional é de titularidade da Prefeitura, é possível que nele próprio aperfeiçoemos a composição do preço desse bem, quando negociado no âmbito da TDC. Com isso, será possível dar transparência, segurança jurídica e efetividade ao instrumento. São muitas as formas para alcançarmos essa transformação. Cabe à Prefeitura realizar um debate democrático entre diferentes agentes para que seja modelado um caminho.

Vivian Barbour
Advogada e pesquisadora em patrimônio cultural e urbanismo. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP, é membro da Comissão de Direito Urbanístico da OAB/SP e da Association of Critical Heritage Studies. Autora do livro "O patrimônio existe? Sentidos da Vila Itororó" (2019).

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