O crítico cenário causado pela pandemia da covid-19 fez com que os Governos Municipais e Estaduais editassem normas extraordinárias visando conter a propagação do coronavírus, restringindo a circulação de pessoas e determinando a restrição de funcionamento de diversas atividades empresariais consideradas como não essenciais, e em alguns casos, até mesmo seu fechamento temporário.
Em consequência das medidas adotas pelos entes públicos, diversos setores empresariais impedidos de desenvolver normalmente suas atividades estão sendo drasticamente afetados.
Com efeito, essas empresas têm se deparado com a necessidade de buscar a manutenção de diversas obrigações contraídas antes da pandemia, que passaram a ser executadas em um cenário que, à época da contratação, era imprevisível e que modificou significativamente suas realidades financeiras.
Diante deste contexto, surgem vários questionamentos a respeito da possibilidade dos efeitos da pandemia afetarem as relações privadas, de modo a ocasionar a resolução ou revisão dos contratos de aluguel, e com referência aos contratos de aluguel para uso comercial, especificamente, é que serão feitas algumas considerações no presente artigo.
Sobre as relações contratuais, incide, em regra, o princípio do pacta sunt servanda, que visa dar segurança jurídica à autonomia da vontade das partes declarada em determinada relação jurídica. Segundo esse princípio, o contrato faz lei entre as partes, devendo as obrigações assumidas serem respeitadas e cumpridas em sua integralidade.
Ocorre que a força cogente do princípio do pacta sunt servanda não é absoluta, podendo ser relativizada em razão de situações específicas e pontuais.
Nesse sentido, considerando a possibilidade de fatores externos às relações contratuais e alheios à vontade das partes, o Código Civil estabeleceu a chamada teoria da imprevisão, também denominada de cláusula rebus sic standibus, que permite a resolução ou revisão dos contratos de execução continuada ou diferida, em razão de situações extraordinárias e imprevisíveis e que tornem a prestação excessivamente onerosa a uma das partes contratantes.
A referida teoria está consubstanciada na redação dos artigos 317, 478, 479 e 480, do Código Civil, os quais seguem transcritos:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. [...]
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva. (Grifos e negritos da transcrição)
Sendo conceituada da seguinte forma, nos ensinamentos de Gagliano e Pamplona Filho:
[...] A “Teoria da Imprevisão” é o substrato teórico que permite rediscutir os preceitos contidos em uma relação contratual, em face da ocorrência de acontecimentos novos, imprevisíveis pelas partes e a elas não imputáveis. [...] (GAGLIANO E PAMPLONA FILHO, 2017, p. 486)
Verifica-se, portanto, que as empresas atingidas pela crise econômica causada pela pandemia da covid-19, que tiveram suas atividades prejudicadas com o fechamento, ainda que temporário, de seus estabelecimentos comerciais, podem sim valer-se da teoria da imprevisão adotada pela legislação pátria, para que seja suscitada a resolução ou revisão dos contratos de locação de imóveis comerciais.
Não obstante, para que seja possível a aplicação da teoria da imprevisão nos referidos contratos, faz-se imprescindível que a empresa comprove que a execução do contrato se tornou excessivamente onerosa.
Além disso, é necessário que o contrato de locação não contemple a renúncia ao direito de revisão, consoante a norma inserta no art. 54-A, §1º[1], da lei 8.245/91 (lei de locação de Imóveis Urbanos).
Neste sentindo, transcorrido mais de um ano desde o início da pandemia causada pela covid-19, a jurisprudência pátria, em algumas oportunidades, se deparou com pedidos de empresas de seguimentos variados, que buscavam com urgência a tutela jurisdicional para equilibrar a relação contratual mediante a aplicação da teoria da imprevisão.
Assim, preenchidos os requisitos da referida teoria, especialmente no que toca à queda significativa do faturamento da empresa, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais decidiu pela revisão contratual, aplicando a redução do valor do aluguel por um determinado período, em caráter liminar, com antecipação de tutela de urgência, inclusive, conforme decisões que se seguem:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - PEDIDO DE TUTELA CAUTELAR ANTECEDENTE - ARTIGOS 300 E 303 DO CPC/15 - TEORIA DA IMPREVISÃO - REDUÇÃO DE ALUGUEL COMERCIAL - PANDEMIA - COVID-19 - POSSIBILIDADE - EQUILÍBRIO CONTRATUAL - NECESSIDADE. 1. Como cediço, os requisitos legais previstos no art.300 do CPC/15 (gênero Tutela de Urgência) quais sejam: a probabilidade do direito invocado e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, são comuns a todas as espécies de tutelas, seja aquela requerida de forma incidental na petição inicial, seja aquela requerida de forma antecipada ou cautelar em caráter antecedente. 2. Para a concessão da tutela antecipada de caráter antecedente, nos termos dos artigos 300 e 303 do NCPC, mostra-se indispensável a comprovação de elementos que evidenciem a probabilidade do direito invocado pelo autor, somado ao perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. 3. Considerando a onerosidade excessiva ao locatário advindo da pandemia da covid-19, inclusive após a reabertura do comércio, faz-se necessário estabelecer o equilíbrio contratual na forma do art.478 e 480 do Código Civil, o que permite a redução do valor do aluguel, a 70% do valor contratado. 4. Assim, comprovada a probabilidade do direito invocado pelo autor/agravado e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, possível a manutenção da redução até o final do ano corrente. 5. Recurso conhecido e parcialmente provido. (TJMG - Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.20.512272-4/001, Relator(a): Des.(a) Shirley Fenzi Bertão, 11ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 2/12/20, publicação da súmula em 3/12/20) (Grifo e negrito da transcrição)
AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO REVISIONAL DE ALUGUEL -TUTELA DE URGÊNCIA ANTECIPATÓRIA - ART. 300 DO CPC- REQUISITOS - COMPROVAÇÃO - AUSÊNCIA. 1- A concessão da tutela de urgência em caráter antecedente, disciplinada no art. 300 do novo Código de Processo Civil, deve ser analisada mediante a verificação concomitante dos requisitos da probabilidade do direito invocado e do perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, ressaltando-se que a verificação do perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão impede sua concessão. 2- Diante do fechamento do estabelecimento da autora em razão de Decreto do Poder Público para o enfrentamento da pandemia de covid-19, verifica-se a probabilidade do direito da autora, fundado na teoria da imprevisão, apto a justificar a redução temporária do aluguel, apenas durante o período em que permaneceu impedida de exercer suas atividades econômicas. (TJMG - Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.20.071977-1/001, Relator(a): Des.(a) Claret de Moraes, 10ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 24/1120, publicação da súmula em 2/12/20) (Grifo e negrito da transcrição)
Infere-se que a teoria da imprevisão poderá ser aplicada às relações jurídicas em razão da pandemia causada pela covid-19, em especial aos contratos de locação voltados ao uso comercial, haja vista se tratar de um acontecimento extraordinário e imprevisível, que afetou e continua a afetar diretamente diversos seguimentos empresariais.
É importante frisar que a aplicação da teoria da imprevisão não é irrestrita, sendo condicionada a análise prévia e criteriosa do caso concreto, a fim de que seja verificado o preenchimento de todos os requisitos legais.
Por fim, ainda que seja possível a resolução ou revisão de contratos de locação de imóvel comercial com base na teoria da imprevisão pela via judicial, o mais prudente e aconselhável é o diálogo e a busca pela composição amigável entre as partes envolvidas na relação jurídica.
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1. Art. 54-A. § 1º Poderá ser convencionada a renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação.
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GAGLIANO, P. S.; PAMPLONA FILHO, R. Manual de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2017.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Agravo de Instrumento 1.0000.20.512272-4/001. Rel. Des. (a) Shirley Fenzi Bertão. J. 02 de dezembro de 2020. Disponível aqui; Acesso em: 21 mar. 2021.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Agravo de Instrumento 1.0000.20.071977-1/001. Rel. Des. (a) Claret de Moraes. J. 24 de novembro de 2020. Disponível aqui; Acesso em: 21 mar. 2021.
PLANALTO, Brasil. Código Civil. 2002. Disponível aqui. Acesso em: 7/2/21.