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A teoria crítica dos Direitos Humanos e os custos dos direitos no Estado brasileiro

A crise de efetividade dos direitos reclama uma análise crítica, aberta a novos paradigmas da teoria geracional como a conscientização a respeito dos custos da implementação desses direitos.

15/4/2021

Quando se aborda a temática referente à efetivação dos direitos em sociedades complexas como a brasileira, não raras as vezes, o interlocutor é remetido à ideia de valores universais e extensíveis a todos cidadãos e cidadãs, como se seu conceito fosse imanente ao ser humano.

Contudo, essa concepção reducionista e abstrata, que se satisfaz com a mera previsão constitucional de direitos fundamentais, passa ao largo dos questionamentos propostos pela Teoria Crítica dos Direitos Humanos, que, há muito propõe uma visão mais ampliada a respeito de tais direitos e os mecanismos de sua concretização:

[...] direitos humanos são meios para que homens e mulheres possam ter acesso a bens ou serviços, materiais ou imateriais, aptos a satisfazer suas necessidades como integrantes de um grupo social. Ou seja, quando uma norma, nacional ou internacional, expressar que o ser humano tem direito à saúde ou à educação, trata-se de um instrumento para que a pessoa procure um posto de saúde ou uma escola e, na vida real, receba um bem ou um serviço que satisfaça a necessidade de ter uma vida saudável e uma educação adequada e satisfatória. (ALEMEIDA, 2011. p. 212)

Partindo desse pressuposto, o que se propõe é uma alternativa para tentar enxergar de maneira mais crítica os obstáculos por de trás da não efetivação de direitos, mostrando, em apertada síntese, pontos de vistas que permitem explicar o porquê de tantos abismos existentes entre o texto legal e a realidade de sociedades como a brasileira.

Os atores sociais e as instituições que formam o Estado Democrático de Direito ao se proporem como elementos de concretização dos direitos constitucionais precisam ter a consciência de que “vivemos em um mundo ou em vários mundos em que alguns têm direitos, mas a grande maioria não os têm. Mudar essa realidade é o desafio atual” (ALMEIDA, 2011. p. 212)

É preciso, portanto, quebrar as barreiras criadas pelas teorias geracionais dos direitos, na medida em que a ideia de prestação e abstenção estatal seja defendida apenas para fins didáticos e de compreensão da matéria, mas jamais para justificar uma dicotomia intransponível entre quais direitos são “mais direitos”.

Assim, é possível afirmar que:

Se os direitos humanos não são um dado, mas um construído, enfatiza-se que as violações a estes direitos também o são. Isto é, as exclusões, as discriminações, as desigualdades, as intolerâncias e as injustiças são um construído histórico, a ser urgentemente desconstruído. Há que se assumir o risco de romper com a cultura da ‘naturalização’ da desigualdade e da exclusão social, que, enquanto construídos históricos, não compõem de forma inexorável o destino da humanidade. Há que se enfrentar essas amarras, mutiladoras do protagonismo, da cidadania e da dignidade de seres humanos. (FLORES, 2009a. p. 20-21).

Nesse contexto, aborta-se a concepção clássica da teoria geracional dos direitos para entendê-los não como fins em si mesmos, mas como meios para as conquistas sociais e, como tais, não podem se afastar das ideologias e das expectativas dos que controlam seu funcionamento tanto no âmbito nacional como no âmbito internacional (FLORES, 2009a. p. 24).

Nesse viés alternativo, comungamos com a percepção apontada por Sunstein e Holmes (2011), de que todos os direitos são positivos e, por assim o ser, exigem uma figura, ainda que mínima, de Estado para que possam ser exercidos e garantidos.

Longe de ser a solução para falta de concretização dos direitos, a ideia de entendê-los como positivos e, por consequência, de exigir a presença do Estado para sua garantia, faz com que se chegue a outra conclusão: de que os direitos custam dinheiro e, invariavelmente, precisam de uma fonte de custeio.

Si los derechos fueran meras inmunidades a la interferência pública, la virtude suprema del gobierno (em relación com el ejercício de los derechos) sería la parálisis o la invalidez. Pero um Estado incapacitado no puede proteger las libertades individuales, ni siquiera las que perecen totalmente negativas, como el derecho a no ser torturado por agentes de policía o guardias penitenciarios. (SUNSTEIN; HOLMES, 2011. p. 64)

A verdade é que essa forma de enxergar os direitos como positivos denota uma mudança de paradigma em relação a concepção clássica e universalista dos direitos fundamentais e sociais. Quando enxergamos a ideia de que a proteção à propriedade e o próprio direito à liberdade – defendidos com ênfase pelos liberais adeptos do Estado de Natureza das Coisas – exigem a figura do Estado para garantir a sua efetividade, nos faz repensar a forma de questionar a ineficiência institucional que culmina com a falta de concretização dos direitos constitucionais.

Sem a figura estatal, ainda que mínima, não há como garantir direitos em sociedades complexas como as atuais. Sunstein e Holmes (2011), citando Hans Kelsen, apontam o direito ao voto como um exemplo dessa concepção. Em linhas gerais, é preciso de toda estrutura estatal para garantir o exercício do voto – servidores públicos, urnas e todo o aparato formado para realização do período eleitoral: “Al derecho del ciudadano a votar corresponde el deber del funcionário electoral” (SUNSTEIN; HOLMES, 2011. p. 135).

Assim, se os direitos são positivos e, por consequência, essa prestação se dá por intermédio da figura estatal e dos atores que o compõem, a decorrência lógica a se seguir é de que cada direito previsto pressupõe um custo para sua implementação.

Definir, portanto, as fontes de custeio e as escolhas de como esses recursos serão empregados – para a implementação de quais direitos – é o desafio dos governos atuais, na medida em que a escolha a respeito de determinado direito ou o direcionamento de recursos para concretização de um grupo de direitos implica, em sua essência, na renúncia em relação a outro direito – na medida em que os recursos são escassos (AMARAL; MELO, 2010)

Dessa forma, é possível aproximar a discussão a respeito da efetivação dos direitos à formação/utilização racional do orçamento estatal.

Nesse caso, somos chamados a nos manifestar acerca de como escolher os atores que compõem o Estado, de modo a encontrar quem faça as melhores escolhas para uma gama básica de direitos a partir do quanto se quer gastar – é preciso que a sociedade tenha consciência disso e cumpra com seu papel eleitoral e de fiscalização dos custos do direito – na medida em que nossos direitos dependem do quanto e como se pretende gastar em favor deles – a prioridade de gastos terá reflexos diretos nos direitos prioritários. (SUNSTEIN; HOLMES, 2011).

A partir do momento que se admite essa percepção ampliada de que direitos possuem custos e que as escolhas de determinados grupos de direitos excluem a efetivação de outros, abre-se o espaço para uma maior coerência do sistema constitucional de direitos fundamentais.

Estados como o brasileiro padecem de uma crise de efetividade dos direitos constitucionais. Isso porque, algumas camadas sociais sequer possuem mecanismos para compreender a gama de direitos que poderiam ter acesso pelo simples fato desses direitos não existirem além do texto constitucional. Assim, é preciso reconhecer a situação dessas camadas, analisar os custos da implementação desses direitos e procurar saídas coerentes com as escolhas políticas realizadas, sem que o socorro ao judiciário seja a panaceia de concretização de preceitos constitucionais.

Isso não implica escolher direitos menos custosos ao Estado, mas saber, de fato, quanto o Estado deverá dispor para tornar aquele determinado direito, efetivo. No final, não se trata de escolhas pura e simples, mas de direcionamento racional acerca do que deve ser feito ao longo dos anos (AMARAL; MELO, 2010).

Por isso a necessidade de entender os direitos como algo vinculado ao Estado e, por consequência ao orçamento.

A conclusão que se chega é que a exigibilidade dos direitos em sociedades complexas como a brasileira está intrinsecamente ligada à gestão dos gastos públicos acompanhada da habilidade em produzir tipos legais que promovam esse uso racional dos recursos públicos – seja na identificação da fonte, como na destinação dos gastos (SUNSTEIN; HOLMES, 2011).

A ideia de efetivação dos direitos perpassa pela realização de um orçamento participativo, que tenha reflexos lógicos nos anseios sociais em um determinado período de tempo e de modo progressivo, permitindo, cada vez mais, a ampliação da gama de direitos concretizados.

Las finanzas públicas constituyen una ciência ética porque nos obligan a llevar cuentas publicamente de los sacrifícios que como comunidade decidimos hacer y explicar a qué estamos dispuestos a renunciar para alcanzar metas más importantes. Para poder compreender cómo um régimen de derechos estruturan y gobierna el comportamento real, la teoria de los derechos debería contemplar esa realidad. Los tribunales que deciden sobre la exigibilidad de los derechos razonarán de manera más inteligente y más transparente si reconocen com toda honestidad que los costos afectan el alcance, la intensidade y la consistência de la exigibilidad de los derechos. Y la teoría de los derechos sería más realista si examinara sin ambages la competencia por los recursos escasos que necesariamente se produce los distintos derechos básicos, y también entre esos mismos derechos básicos y otros valores sociales. (SUNSTEIN; HOLMES, 2011. p. 120)

O que se propõe, portanto, é uma análise prospectiva do que pode ser feito para ampliar a gama de efetividade dos direitos em sociedades como a brasileira, reclamando a maior participação não só do Estado, como da própria sociedade na formação e destinação dos gastos públicos, remetendo a uma ideia de consciência democrática acerca dos custos de implementação de determinados direitos, renúncias sociais a respeito de outros e, por consequência, a criação de caminhos de transposição o texto constitucional.

Para tanto, é preciso responder aos seguintes questionamentos: 1 – Quanto queremos gastar em cada direito?; 2 – Qual é o melhor pacote de direitos, considerando que os recursos destinados a proteger determinado direito não estaria disponível para proteger outro? Quais são as melhores formas de buscar a máxima proteção dos direitos ao custo mais baixo?; 4 – Os direitos redistribuem a riqueza de alguma forma publicamente justificável? (SUNSTEIN; HOLMES, 2011. p. 249).

As respostas às perguntas acima devem ser constantemente perseguidas de modo a promover uma maior racionalidade nos mecanismos de implementação dos direitos, de modo a permitir a “[...] abertura de processos de luta pela dignidade humana” (FLORES, 2009b. p. 27).

Longe, portanto, de ser a solução dos problemas de efetividade dos direitos, o reconhecimento de seus custos contribui para abertura de espaços de diálogos entre sociedade e Estado e, por consequência, permite uma conscientização a respeito de uma democracia mais participativa, em específico, na realização do orçamento e no direcionamento dos gastos públicos.

Nas palavras de Sunstein e Holmes (2011, p. 249): “sólo podremos empezar a considerar uma proteción más eficiente de los derechos cuando hayamos reconocido que los derechos tienes costos”.

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ALMEIDA, Ramiro Rockenbach da Silva Matos Teixeira de. Direitos Humanos, Reserva do Possível e Ônus da Prova: uma leitura crítica com ênfase na participação social, na aplicação transparente dos recursos orçamentários e em contraposição a argumentos retóricos, carentes de conteúdo probatório e dissociados da realidade. In: MANETE, Ruben R.; DIAS, Jefferson A.; SUXBERGER, Antônio H. G. (Org.). Instituto de Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento - Teoria Crítica dos Direitos Humanos: das lutas aos direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

AMARAL, Gustavo; MELO, Danielle. Há Direitos Acima dos Orçamentos? In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais, orçamento e reserva do possível. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

FLORES, Joaquín Herrera. A Reinvenção dos Direitos Humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.

Teoria Crítica dos Direitos Humanos: os direitos humanos como produtos culturais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. El costo de los derechos: Por qué la libertad depende de los impuestos. 1ª ed. Buenos Aires: Siglo Veinteuno Editores, 2011.

Tiago Borges Fonseca
Servidor Público Federal do Superior Tribunal de Justiça. Analista Judiciário - Área Judiciária. Mestrando em Direito, Regulação e Políticas Públicas - Universidade de Brasília-UnB. Especialização em Ordem Jurídica e Ministério Público - FESMPDFT. Especialização em Direito Público - Faculdade Projeção. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB.

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