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Crimes militares: Aplicabilidade da lei 13.491/17 aos fatos criminosos ocorridos antes de seu advento

Com efeito, a temática debatida é importantíssima em virtude da situação acima delineada estar acontecendo inúmeras varas militares de diversos tribunais, sem qualquer reflexão sobre o inafastável o debate da competência.

13/4/2021

Embora possa parecer kafkaesco, mais de trinta anos após a entrada em vigor da Magna Carta brasileira os mais comezinhos princípios e garantias por ela instituídos ainda são pontos nevrálgicos de debates nos tribunais brasileiros, em verdadeira sanha punitivista tão arraigada ao nosso processo penal.

Nesse contexto, o nó de górdio do presente artigo é demonstrar que não é possível ao magistrado castrense aplicar a legislação penal militar (no que for mais gravosa do que a comum) às ações penais que, em razão do advento da lei 13.491/17, tiveram a competência para processo e julgamento declinada para justiça castrense, embora os fatos criminosos tenham ocorrido antes de sua entrada em vigor, sob pena de violação ao comezinho princípio da irretroatividade da lei penal maléfica (art. 5º, inciso XL da CF).

Com efeito, a temática debatida é importantíssima em virtude da situação acima delineada estar acontecendo inúmeras varas militares de diversos tribunais, sem qualquer reflexão sobre o inafastável o debate da competência, sob o enfoque do caráter manifestamente híbrido da lei 13.491/17.

Pois bem.

No dia 13 de outubro de 2017 foi sancionada pelo então Presidente da República Michel Temer a lei 13.491/17, que alterou sensivelmente o art. 9º do Código Penal Militar, dispositivo legal que prevê as circunstâncias em que ocorrem os crimes militares em tempos de paz.

Para que seja possível compreender melhor a substancial mudança, é necessário colacionar a antiga1 redação do art. 9º, inciso II do Código Penal Castrense:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;

b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil;

d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar; 

Após o advento da lei 13.491/2017 assim restou a redação do referido dispositivo legal:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados: 

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;

b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil;

d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;

Infere-se, portanto, que com a novel redação do art. 9º, inciso II do Código Penal Militar, passou a ser considerado crime militar, a ser julgado na justiça castrense, os crimes previstos no próprio Diploma Repressivo Militar, bem como aqueles estabelecidos na legislação penal lato sensu – seja no Código Penal, seja na legislação extravagante – desde que praticados por militares no exercício de suas funções ou em razão destas.

Sucede que, considerando imediata vigência da mencionada lei 13.491/17 e, ainda, que a competência em razão da matéria teria índole puramente processual, passou-se a questionar se o novel regramento teria aplicação aos inquéritos policiais em andamento, instaurados em delegacias de polícia, assim como aos processos ainda não sentenciados na justiça comum, em observância ao princípio tempus regit actum.

Após diversos Conflitos de Competência, por efeito dos juízos estaduais terem declinado de suas competências para processo e julgamento dos feitos em trâmite à justiça castrense, o c. Superior Tribunal de Justiça, por meio da v. Terceira Seção, no Conflito de Competência 160.902/RJ2, de Relatoria da e. Min. Laurita Vaz, sedimentou a controvérsia, concluindo pela aplicação imediata da norma, em observância ao princípio tempus regit actum, restando o r. acórdão assim ementado:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA A LEI DE LICITAÇÕES PRATICADO POR MILITAR EM SITUAÇÃO DE ATIVIDADE CONTRA PATRIMÔNIO SOB A ADMINISTRAÇÃO MILITAR. SUPERVENIÊNCIA DA LEI 13.491/17. AMPLIAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA CASTRENSE. APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO. PRINCÍPIO DO TEMPUS REGIT ACTUM . SENTENÇA DE MÉRITO NÃO PROFERIDA. NÃO APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PERPETUATIO JURISDICTIONIS. CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR COMPETENTE O JUÍZO SUSCITANTE.

1. Hipótese em que a controvérsia apresentada cinge-se à definição do Juízo competente para processar e julgar crime praticado, em tese, por militar em situação de atividade contra patrimônio sob a administração militar antes do advento da lei 13.491/17.

2. A lei 13.491/17 promoveu alteração na própria definição de crime militar, o que permite identificar a natureza material do regramento, mas também ampliou, por via reflexa, de modo substancial, a competência da Justiça Militar, o que constitui matéria de natureza processual. É importante registrar que, como a lei pode ter caráter híbrido em temas relativos ao aspecto penal, a aplicação para fatos praticados antes de sua vigência somente será cabível em benefício do réu, conforme o disposto no art. 2.º, § 1.º, do Código Penal Militar e no art. 5.º, inciso XL, da Constituição da República. Por sua vez, no que concerne às questões de índole puramente processual - hipótese dos autos -, o novo regramento terá aplicação imediata, em observância ao princípio do tempus regit actum.

3. Tratando-se de competência absoluta em razão da matéria e considerando que ainda não foi proferida sentença de mérito, não se aplica a regra da perpetuação da jurisdição, prevista no art. 43 do Código de Processo Civil, aplicada subsidiariamente ao processo penal, de modo que os autos devem ser remetidos para a Justiça Militar.

4. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Auditor da 4.ª Auditoria da 1.ª Circunscrição Judiciária Militar do Estado do Rio de Janeiro, ora Suscitante. (Grifei)

Ocorre que no julgado acima mencionado, malgrado tenha-se definido acertadamente a questão de índole meramente processual do novel normativo  – competência absoluta ratione materiae – deixou-se de analisar o caráter integral da lei 13.419/17 que é manifestamente híbrida, quero dizer, alterando-se o conceito do que vem a ser crime militar, nos casos cujo cometimento do delito deu-se antes de 13 de outubro de 2017 (entrada em vigor da referida norma), a alteração da competência enseja consequências que repercutem diretamente no jus libertatis, inclusive de forma mais gravosa ao réu e que demandam reflexão.

E tanto é assim que, posteriormente ao citado precedente, em fevereiro de 2019, um novo Conflito de Competência foi julgado pela eg. Terceira Seção do c. Superior Tribunal de Justiça, justamente por conta da necessidade de exame da questão, ou seja, aplicabilidade imediata da lei 13.419/17 aos fatos cometidos antes de seu advento, sob a perspectiva integral da mencionada norma, que ostenta inquestionável caráter híbrido.

Trata-se do Conflito de Competência 161.898/MG3, cuja relatoria foi do e. Min. Sebastião Reis Júnior, que em sapiente voto seguido à unanimidade pela r. Terceira Seção do c. STJ, dirimiu a vexata quaestio justamente em favor da tese que aqui se defende: para os fatos cometidos antes de 13 de outubro de 2017, embora o juízo competente para julgamento seja a justiça militar (em obediência ao princípio tempus regit actum), é necessário observar e aplicar aos mencionados casos "a legislação penal (seja ela comum ou militar) mais benéfica ao tempo do crime", sob pena de malferimento à irretroatividade da lei penal maléfica.

Em tempo, dúvidas não pairam que a modificação da competência ratione materiae com a atração imediata para processo e julgamento na justiça castrense daqueles processos cujos fatos deram-se antes do advento da lei 13.419/17, enseja consequências que repercutem diretamente no jus libertatis do acusado, inclusive de forma mais gravosa, tendo em conta que, verbi gratia, o Código Penal Militar, em certos institutos, é muito mais gravoso que o Código Penal Comum.

Destaca-se como exemplo de gravame ao jus libertatis, por ser o Código Penal Militar mais gravoso: (1) a possibilidade de cúmulo material das penas, mesmo em crimes perpetrados em continuidade delitiva (art. 80 do Código Penal Militar); (2) o afastamento das medidas despenalizadoras previstas na lei 9.099/95 (ante a vedação prevista no art. 90-A da lei 9.099/95); e (3) a inaplicabilidade da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos (nos moldes previstos no art. 44 do CP)4, dentre outros.

Por todas essas razões é que se pode concluir que é dever do magistrado castrense – quanto aos fatos cometidos antes do advento da lei 13.419/17 que tiveram a competência para processo e julgamento declinada à justiça castrense em razão do princípio tempus regit actum – quando for prolatar sentença, observar, sob pena de violação à irretroatividade da lei penal mais severa (art. 5º, inciso XL da CF; art. 2º do CP; e art. 2º, §1º do CPM), a legislação penal (seja ela a comum ou militar) mais benéfica ao tempo do crime, sendo tal ressalva inafastável ao debate da competência.

_________________

1 Antes do advento da lei 13.491/17.

2 CC n. 160.902/RJ, Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, DJe 18.12.18.

3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. CC 161898 MG 2018/0285748-8, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 13/02/2019, S3 - TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 20/2/19 REVJUR vol. 497 p. 139.

4 Idem.

Mathaus Agacci
Advogado Criminalista, Doutorando em Direito Penal, Sócio Fundador do Escritório Agacci & Almeida Advocacia Criminal e Cofundador do canal Conversa de Criminalista @conversadecriminalista.

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