Em março de 2020, tivemos a publicação do acórdão do Supremo Tribunal Federal (STF) que tratou da tributação do PIS e da Cofins sobre as receitas financeiras auferidas por empresas não financeiras sujeitas à sistemática não cumulativa (Recurso Extraordinário 1.043.313/RS - Tema 939 da Repercussão Geral; e da ADIn 5.277/DF), tendo em vista o aumento da carga tributária por regulamento infralegal e a ofensa ao princípio da estrita legalidade tributária (artigo 27, § 2º, da lei 10.865/041, no caso do RE, e pelo artigo 5º, parágrafos 8º e 11 da lei 9.718/982, com a redação da lei 11.727/08, na ADIn).
Nos casos em discussão, o legislador ordinário outorgou ao Poder Executivo a competência para (I) deduzir despesas financeiras e reduzir/restabelecer as alíquotas do PIS e da Cofins incidentes sobre a receita financeira, dentro do limite estipulado em lei (RE) e (II) fixar coeficientes para reduzir as alíquotas do PIS e da Cofins incidentes sobre a receita bruta auferida na venda de álcool, inclusive para fins carburantes, e as alíquotas incidentes sobre os regimes especiais de cobrança do PIS e da Cofins (ADIn).
Os contribuintes defendem a inconstitucionalidade da delegação imposta, uma vez que todos os aspectos da incidência tributária deveriam estar previstos em lei, tal como exige o artigo 150, inciso I, da Constituição Federal de 1988 (CF/88). De acordo com o sistema tributário previsto na nossa CF e disciplinado no Código Tributário Nacional, somente os tributos considerados iminentemente extrafiscais, a saber, Imposto de Importação, Imposto de Exportação, Imposto sobre Operações Financeiras e o Imposto sobre Produtos Industrializados poderiam ter suas alíquotas manejadas por decreto do Poder Executivo (artigo 153, § 1º) e, ainda, desde que atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei.
Percebam que somente os tributos dos incisos I, II, IV e V do artigo 153 foram indicados no rol das exceções aos princípios da legalidade e da anterioridade anual (artigo 150, § 1º). Ou seja, a nossa Constituição desceu a pormenores para apontar ao Poder Tributante em quais situações seria permitida a flexibilização dos limites por ela impostos ao poder de tributar. Tudo isso em prol do interesse público, já que se trata de tributos considerados eminentemente extrafiscais, ou seja, que induzem comportamentos ao contribuinte.
Apesar disso, a Suprema Corte concluiu que “é constitucional a flexibilização da legalidade tributária constante do § 2º do art. 27 da lei 10.865/04, no que permitiu ao Poder Executivo, prevendo as condições e fixando os tetos, reduzir e restabelecer as alíquotas da contribuição ao PIS e da Cofins incidentes sobre as receitas financeiras auferidas por pessoas jurídicas sujeitas ao regime não cumulativo, estando presente o desenvolvimento de função extrafiscal” (tese fixada no RE).
O voto do relator ministro Dias Toffoli parte do pressuposto de que a legalidade tributária prevista constitucionalmente teria sofrido mutações e não seria mais estrita, mas sim “suficiente”. Para reforçar seu entendimento, afirmou que essa flexibilização já estaria sendo aplicada pelo STF e, para tanto, citou os seguintes julgados:
- RE 343.446/SC, em que a Corte decidiu que não ofenderia o princípio da legalidade o fato de a lei 9.732/98 ter delegado ao regulamento a complementação de conceitos para a cobrança da contribuição para o SAT.
- RE 704.292/PR, em que foi decidida a constitucionalidade da lei 11.000/04, que autorizava os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas a fixarem, independentemente de qualquer teto legal, as contribuições anuais devidas por pessoas físicas ou jurídicas.
- ADI 4.697/DF, ao tratar também dos conselhos de fiscalização de profissões, em que a Corte julgou constitucional a lei 12.514/04, que a eles possibilitava fixar, conforme teto legal, as contribuições anuais devidas por pessoas físicas ou jurídicas.
- RE 838.284/SC, por fim, em que restou constitucional a lei 6.994/82, que delegou ao CONFEA a possibilidade de fixar a taxa referente à Anotação de Responsabilidade Técnica (ART), observando limite determinado.
Com base nesses precedentes, o ministro relator concluiu que o diálogo entre a lei e o regulamento deveria se dar em relação à complementariedade, não cabendo a legalidade estrita de modo uniforme sobre todos os elementos da regra matriz de incidência tributária. Ainda, o voto do ministro justifica a possibilidade de manipulação das alíquotas do PIS e da Cofins pelo Poder Executivo devido ao fato de que são tributos extrafiscais por serem contribuições sociais que visam ao financiamento da seguridade social.
Com exceção do ministro Marco Aurélio, que aplicou o princípio da legalidade tributária em sentido estrito, os demais ministros seguiram o entendimento do relator. Destacamos o voto do ministro Edson Fachin afirmando que a aplicação da legalidade estrita inviabilizaria a tributação; e o voto do ministro Ricardo Lewandowski entendendo que a delegação seria constitucional, pois haveria razoabilidade e proporcionalidade nas alíquotas aplicadas.
No nosso entendimento, a flexibilização da legalidade tributária aceita pela maioria dos ministros do STF ataca diretamente umas das limitações ao poder de tributar, reiterada no capítulo dedicado ao Sistema Tributário Nacional, justamente para impedir ingerências diretas da Administração Tributária. Ainda que os patamares estejam previstos em lei e ainda que razoáveis, o fato é que a CF/88 excepcionou a legalidade tributária apenas para determinados tributos, com características mais acentuadas de extrafiscalidade e que mereceriam tratamento diferenciado em prol de valores assegurados constitucionalmente. Não é o caso do PIS e da Cofins, que, embora tenham uma carga de extrafiscalidade, tais como outros tributos, não estão entre os tributos indicados no rol da exceção e não induzem comportamentos.
Essa é a posição da doutrina mais balizada sobre o assunto. A brilhante e sempre incansável defensora dos princípios constitucionais, ministra Regina Helena Costa, ao dispor sobre os tributos extrafiscais constantes no rol taxativo assevera “(...) Esses impostos, como sabido, ostentam natureza extrafiscal – revelada na possibilidade de atuarem como instrumentos destinados a regular o comércio exterior, a indústria nacional e o mercado financeiro, respectivamente – e, desse modo, demandam agilidade na modificação da intensidade de sua imposição, que restaria comprometida caso obrigatória a edição de ato de natureza legislativa a viabilizá-la.”3. Do mesmo modo, ao aplicar tal entendimento às contribuições sociais, em recente livro publicado pelo professor Luís Eduardo Schoueri, Diogo Olm Ferreira e Victor Lyra Guimarães Luz4, conclui-se que, apesar de admitir-se a existência de função extrafiscal nos tributos, “a Contribuição ao PIS/PASEP e a Cofins não foram excepcionadas como ferramenta de uso de normas com função indutora. Isso não significa que não possa o legislador utilizá-las para tal função, mas simplesmente que o conteúdo da Legalidade Tributária não poderá ser, de forma alguma, mitigado, por opção do próprio constituinte”. Ou seja, reitera-se que, apesar de qualquer tributo poder exercer função extrafiscal, a atuação do Poder Executivo é limitada aos casos previstos constitucionalmente em relação aos tributos extrafiscais.
Ainda, ressalta-se que, é a primeira vez em que o STF admite a caracterização do PIS e da Cofins como tributos extrafiscais, de forma a permitir que suas alíquotas sejam modificadas pelo Poder Executivo. Tradicionalmente, em oposição a esse entendimento, a jurisprudência afirma que “(...) o rol de tributos de que tratam os incisos do artigo 153 da CF/88 são todos NÃO VINCULADOS, o que evidencia ainda mais a impossibilidade de se transformar as contribuições sociais em comento, em instrumentos de política econômica, modificando a sua natureza parafiscal em extrafiscal5”.
O que se observa pela recente decisão do STF é que, sob o argumento de que a legalidade estrita seria ineficiente para o sistema tributário, os ministros permitem que limitações ao poder de tributar sejam subjugadas e, consequentemente, que os contribuintes tornem-se reféns de situações de arbitrariedade do Poder Executivo, seja no manejo das alíquotas, seja na imposição de critérios que, indiretamente, aumentam a carga tributária dos tributos sem lei e, além disso, sem a observância ao princípio da anterioridade. Ao legitimar as duas situações postas sob julgamento, o STF mais uma vez faz “reforma tributária silenciosa”6.
Esse precedente representa, infelizmente, um marco aos contribuintes, na medida em que escancara a postura da Suprema Corte acerca da flexibilização do princípio da legalidade tributária, em uma postura que, a nosso ver, ofende direitos e garantias constitucionais considerados como cláusulas pétreas, como da separação dos Poderes, e a segurança jurídica. Vivemos tempos estranhos!
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1. Art. 27. O Poder Executivo poderá autorizar o desconto de crédito nos percentuais que estabelecer e para os fins referidos no art. 3º das leis 10.637, de 30 de dezembro de 2002, e 10.833, de 29 de dezembro de 2003, relativamente às despesas financeiras decorrentes de empréstimos e financiamentos, inclusive pagos ou creditados a residentes ou domiciliados no exterior.
(...)
§ 2º O Poder Executivo poderá, também, reduzir e restabelecer, até os percentuais de que tratam os incisos I e II do caput do art. 8º desta Lei, as alíquotas da contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS incidentes sobre as receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime de não cumulatividade das referidas contribuições, nas hipóteses que fixar.
2. “Art. 5º A Contribuição para o PIS/Pasep e a Cofins incidentes sobre a receita bruta auferida na venda de álcool, inclusive para fins carburantes, serão calculadas com base nas alíquotas, respectivamente, de:
§ 8º Fica o Poder Executivo autorizado a fixar coeficientes para redução das alíquotas previstas no caput e no § 4o deste artigo, as quais poderão ser alteradas, para mais ou para menos, em relação a classe de produtores, produtos ou sua utilização.
(...)
§ 11. O preço médio a que se refere o § 10 deste artigo será determinado a partir de dados colhidos por instituição idônea, de forma ponderada com base nos volumes de álcool comercializados nos Estados e no Distrito Federal nos 12 (doze) meses anteriores ao da fixação dos coeficientes de que tratam os §§ 8º e 9º deste artigo.”
3. Costa, Regina Helena. Curso de Direito Tributário - Constituição e Código Tributário Nacional. Editora Saraiva. Ano 2009. Página 63.
4. SCHOUERI, Luís Eduardo; FERREIRA, Diogo Olm; LUZ, Victor Lyra Guimarães S3661 Legalidade tributária e o Supremo Tribunal Federal: uma análise sob a ótica do RE 1.043.313 e da ADI n. 5.277. – São Paulo, SP: IBDT, 2021.
5. TRF 1ª Região - AMS 0009784-14.2015.4.01.3200 / AM, rel. desembargador Federal Hercules Fajoses, Sétima Turma, Publicado em 28.10.2016
6. Disponível aqui.70003623512
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