Em 11 de maio de 2020 o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da norma do Ministério da Saúde1 que vedava a doação de sangue por homens homossexuais ou bissexuais (ADIn 5.543)2. Esse dia foi, certamente, um dia atípico para a democracia brasileira, na medida em que, nos últimos anos, a LGBTFobia – apesar de crime - passou a ser banalizada no debate público, inclusive por parte de agentes do atual governo. Foi um dia feliz, uma vitória para a comunidade LGBTQIA+ que refletiu em todos os grupos marginalizados do Brasil. E, para além do resultado substantivo da decisão, apesar de o STF não ter feito nada além do seu dever de guardião da Constituição Brasileira, a instituição demonstrou comprometimento com a igualdade, dando uma segurança mínima de que ainda existe esperança para grupos minoritários no país.
Algumas semanas depois da decisão, seguro de seu Direito Constitucional, Natan Santiago dirigiu-se ao Instituto Hoc de Hemoterapia, visando doar sangue. Natan não queria nada além de contribuir para um banco de sangue, no meio de uma crise de saúde pública. Só queria ajudar, animado pela empatia e pela preocupação com o outro. Ironicamente, entretanto, de acordo com o seu relato, Natan foi recebido pelo Instituto com tudo menos empatia: a doação, segundo ele, foi vedada com base, justamente, na portaria 158/16.
Inconformado, Natan acionou o CAJU – Centro de Assistência Jurídica Saracura da Fundação Getulio Vargas e, em conjunto com o colega de FGV Direito SP, advogado e presidente do CAJU Matias Falcone, entrou com uma ação pleiteando o não impedimento de doação de sangue em razão de sua orientação sexual e indenização por danos morais. Natan entrou com uma ação em seu nome, mas, ao fazer isso, agiu por toda uma comunidade. À afirmação de que o Instituto teria agido de forma discriminatória, o réu da ação respondeu, conforme consta nos autos, que tinha apenas observado a diretriz então vigente no âmbito do Ministério da Saúde3.
A vitória de Natan parecia certa para todos que acompanharam a ação. Se não pelo argumento substantivo de que a conduta do Instituto violava Direitos Fundamentais, pelo fato de o STF já ter declarado a inconstitucionalidade da norma. Mas, contraintuitivamente, a ação foi julgada improcedente no dia 09 de dezembro de 2020 pela juíza de São Paulo, Elaine Faria Evaristo. Primeiro, sob o argumento de que não seria possível considerar que o réu teria agido por vontade própria de forma discriminatória. Segundo, porque o réu apenas cumpriu a norma do Ministério da Saúde que vedava a doação de sangue em vista da orientação sexual, que, para a juíza, deveria ser cumprida enquanto estivesse “em vigor”. Por fim, afirmou que inevitavelmente haveria um lapso temporal a publicação da ata do julgamento do STF 922/05) e o novo ofício emitido pelo Ministério da Saúde (12/6) para os trâmites burocráticos e que o tempo no caso concreto não foi excessivo.
Quanto ao primeiro argumento, devemos nos perguntar: importa a vontade de discriminar? Não há no ordenamento brasileiro previsão alguma de que deva existir elemento volitivo por parte do agente que discrimina para que haja discriminação. Seria praticamente impossível demonstrar a existência de uma intenção, não só porque esta seria subjetiva, mas também porque, em sociedades estruturalmente desiguais, é possível que um agente não queira conscientemente discriminar, mas que baseie suas decisões em ideias e estereótipos sobre grupos. É por conta disso que grande parte da doutrina especializada entende que a forma mais adequada de se auferir se houve ou não discriminação é o resultado de determinado ato.
Em segundo lugar, tanto o Instituto, quanto a juíza justificaram suas decisões com base em norma inexistente. A decisão tomada pelo STF em sede de ADIn, que não teve seus efeitos modulados, tem efeitos vinculantes, erga omnes, retroativos e imediatos. No momento da declaração de inconstitucionalidade, a norma atacada para de produzir efeitos. Em realidade, considera-se que ela nunca produziu efeitos, pois sempre teve o vício da inconstitucionalidade. E mesmo que a norma de fato existisse no mundo, certamente não se sobreporia à Constituição Federal.
No que se refere ao último argumento da juíza, ela assume que, enquanto não houvesse emissão de outra norma pelo Ministério da Saúde, a antiga deveria ser acatada. Ou seja, entende que as decisões do STF só vinculam com interpositio legislatoris. Logo, nega a eficácia erga omnes e efeito vinculante, violando a constituição frontalmente. Diz que enquanto não houver norma implementando a decisão do STF ninguém precisa respeitá-la. Se devemos aguardar a implementação, o STF não decide, apenas sugere mudanças legislativas.
No limite, com o devido respeito cabível, a decisão da juíza viola a própria separação de poderes, ao privilegiar uma norma vinda do executivo que foi banida do sistema pelo poder judiciário. O STF atuou dentro dos seus poderes, seguindo procedimentos pré-estabelecidos que garantem a legitimidade do tribunal. Qual seria o papel do STF de checks and balances se suas decisões fossem apenas uma sugestão a ser seguida pelo executivo?
A ideia de que os trâmites burocráticos teriam tido duração razoável também é incoerente. Para além do fato de ser questionável dizer que existe algum prazo razoável dentro do qual uma discriminação declarada inconstitucional é aceitável, devemos nos perguntar: o que deveria ocorrer se os trâmites burocráticos demorassem mais? O Instituto deveria passar a respeitar a decisão do STF após certo tempo? Mas se deve/pode respeitá-la motu proprio, poderia fazê-lo desde o primeiro dia!
Finalmente, é necessário destacar que a decisão do STF não abriu espaço algum para que o Ministério da Saúde definisse procedimentos a serem seguidos. A decisão do STF foi uma decisão do tipo “sim ou não”, “pode doar ou não pode doar”. No caso concreto, felizmente, um “sim” e um “pode doar”. Não houve nada mais além disso, não houve determinação de regulamentação e imposição de prazo para tal. Em outras palavras, o trâmite burocrático não só não seria permissível, mas como desnecessário, tendo em vista o que se decidiu na ação.
Logo, no mundo dos fatos, o Instituto e a juíza, de certa forma, criaram a necessidade de um trâmite burocrático inexistente, assim como fizeram os cartórios que dificultavam a união estável de pessoas do mesmo sexo, mesmo após decisão do STF que previa a sua possibilidade. Lendo a decisão do STF que permitiu a União Homoafetiva (ADPF 132), se vê que também ali não havia espaço para nenhum trâmite e avaliação. Tanto é que o ofício expedido pelo Ministério da Saúde após o “trâmite burocrático” de quase um mês apenas informava que o critério de inaptidão não deveria mais ser aplicado e que a decisão do STF teria força executória desde a data de sua publicação (22/05)4. Era o que se esperava que fosse reconhecido no caso de Natan Santiago, para quem justiça não foi servida.
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1 Art. 64, IV da Portaria 158/16
2 ADIn 5.543, publicada em 22 de maio de 2020.
3 Em 12 de junho de 2020, a instituição recebeu o ofício 39/2020 do Ministério da Saúde, referente à Portaria 158/2016 e alterou seus procedimentos em seguida.
4 Ofício Circular nº 39/2020/CGSH/DAET/SAES/MS