Migalhas de Peso

Manifestação em defesa da advocacia criminal

Advocacia Criminal é exercício de compreensão dos dramas humanos; é servir quem sem coloca na condição de necessitado de justiça, seja vítima ou acusado; é ajudar na cura de feridas profundas e dar voz e vez a quem não as possui.

9/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

“Se um pecado cometi na profissão, foram as poucas vezes em que acusei. Das defesas não me arrependo de nenhuma". (Evandro Lins e Silva).

Com essa inspiradora frase do saudoso criminalista Evandro Lins e Silva iniciamos essa necessária defesa. Cuida-se de defesa especial: figura como patrocinada, nesta ocasião, a própria Advocacia Criminal, essa incompreendida e muitas vezes mal vista profissão, já cansada de se sentar injustamente no banco dos réus sob a leviana acusação, sustentada por incautos acusadores, de ser favorável ao crime.

Como manifestação inicial, cabe relembrar que todo advogado, ao receber o documento que lhe autoriza o exercício profissional, presta um juramento perante a Ordem dos Advogados do Brasil, consistente na sonora repetição das seguintes palavras: “Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.

No mesmo tom, preconiza o artigo 2º do Código de Ética e Disciplina da OAB que “O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado democrático de Direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce”.

O artigo 2º da lei Federal 8.906/94 é igualmente esclarecedor ao estabelecer que o advogado é indispensável à administração da justiça; no seu ministério privado, presta serviço público e exerce função social; no processo judicial, contribui, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público e, no exercício da profissão, é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites da lei.

Semelhante conteúdo, dada a sua singular relevância, foi alçado a patamar constitucional. Prescreve, com efeito, o artigo 133 da Constituição Federal que “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.

Tais regras, levadas a sério pela classe, a rigor esvaziariam a necessidade de continuação desse texto, na medida em que revelam de maneira muito elucidativa qual é o verdadeiro papel da Advocacia Criminal em um Estado Democrático de Direito.

Não obstante, vivenciamos um momento em que ainda é necessário reafirmar o óbvio, daí a necessidade de prosseguirmos com o trabalho defensivo para desmistificar alguns factoides que, por má fé ou ignorância, ainda são veiculados na imprensa e nas redes sociais em detrimento da Advocacia Criminal.

A título de exemplo e ilustração, o próprio defensor subscritor foi atacado recentemente em uma rede social por uma pessoa que vociferou, indignada, que “este é o país das bananas os advogados enriquecem em cima de um supremo totalmente corrompido q v6 só ganham dinheiro e o povo de bem só se fodem com a pilantragem imensa pra soltar bandidos (sic)”.

Esse tipo de comentário deselegante, equivocado e ofensivo, não ofende somente este subscritor individualmente, mas insulta a dignidade da Advocacia Criminal como um todo e, pior, tem ganhado corpo e infelizmente representa o pensamento irrefletido e desinformado de grande parcela da sociedade civil.

As pessoas que fazem parte desta parcela certamente ignoram que o ato de defender um investigado ou acusado da prática de crime – sendo ele inocente ou culpado - não significa estar de acordo com a conduta criminosa a ele atribuída, muito menos de ser conivente com a impunidade.

Talvez essas pessoas não saibam que é prerrogativa do advogado - não um benefício próprio, mas uma garantia do representado -, “assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração apresentar razões e quesitos” (art. 7º, XXI, “a”, da lei Federal 8.906/94).

Eventualmente essas pessoas não conhecem o art. 21 do Código de Ética e Disciplina da OAB, o qual determina que “É direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado”; nem o art. 31, § 2º, da lei Federal 8.906/94, que prescreve que “Nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão” (art. 31, § 2º, da lei Federal 8.906/94).

Quiçá essas pessoas desconhecem que, sem a presença da Advocacia Criminal, não é possível sequer a inaugurarão de um processo criminal; não sabem que um culpado de cometimento de crime não pode ser processado e menos ainda condenado criminalmente se não houver ampla e efetiva defesa em seu favor, consoante determina o artigo 261 do Código de Processo Penal: “Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”.

Noutras palavras, essas pessoas ainda não se deram conta de que, na verdade, é na hipótese de ausência de defesa criminal que estaria escancarada a porteira da impunidade e instaurado o caos social e o arbítrio. A Advocacia Criminal nunca foi cúmplice do delito; ela é, isso sim, fiel aliada do Estado Democrático de Direito e da Justiça.

Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, diz o art. 6º da lei Federal 8.906/94. Todos devem trabalhar na busca da realização de julgamentos justos.

Exercer a Advocacia Criminal, longe de defender o crime, é defender o direito de qualquer pessoa de ter acesso aos autos de investigação e conhecimento prévio do teor da acusação e da integralidade dos elementos probatórios que a instrui; direito a um julgamento público, célere e justo; direito ao contraditório e à ampla de defesa; direito de ser presumido inocente até o trânsito em julgado da condenação; direito de não ser processado e julgado com base em leis “ex post facto”; direito à paridade entre as partes; direito de não ser processado com fundamento em provas ilícitas; direito de não ser julgado por juiz parcial; direito à observância do princípio do juiz natural; direito ao silêncio; direito à produção de prova; direito de presença e de participação ativa nos atos processuais; direito de consignar as razões defensivas em ata; enfim, direito ao justo e devido processo legal assegurado pela Constituição Federal e pelos tratados internacionais de Direitos Humanos subscritos pelo Brasil.

Mas, mais do que isso, a Advocacia Criminal é exercício de compreensão dos dramas humanos; é servir quem sem coloca na condição de necessitado de justiça, seja vítima ou acusado; é ajudar na cura de feridas profundas e dar voz e vez a quem não as possui.

Exercer a Advocacia Criminal é lutar por justiça social; é defender o funcionamento harmônico e a higidez das instituições democráticas e dos Poderes da República; é lutar contra o discurso despótico da punição a qualquer preço e do uso do Direito Penal como panaceia de todos os males; é lutar pela concretização de políticas criminais debatidas com seriedade e profundidade capazes de efetivamente garantir a melhoria da segurança pública e a redução dos altos índices de criminalidade, que não interessam a ninguém.

Em síntese, o papel da Advocacia Criminal é resistir e conter o abuso de poder, venha ele de onde vier, além de colaborar com a efetivação de direitos e com a melhoria da vida em sociedade. A Advocacia Criminal é a última barreira entre o Estado autoritário e os direitos individuais.

Por isso, cabe advertir os seus detratores sobre a gravidade que representa ser alcançado pelo tentáculo mais agressivo do Estado, que pode atingir a todos e é capaz de tirar, literalmente, tudo de uma pessoa: liberdade, convívio familiar, patrimônio, dignidade, honra, paz, direitos políticos, saúde e até mesmo a vida.  

O velho discurso de que a Advocacia Criminal é transigente com o crime é falacioso e antidemocrático. Ele nos leva a bradar, enganados, pelo fim de direito próprio e universal que assiste a todos: o sacrossanto direito de defesa, garantido pelos artigos 10 e 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, abrindo margem, ainda, para um perigoso exercício de relativização de outras garantias de índole constitucional.

Nesse particular, é relevante a lição de Vitorino Prata Castelo Branco: “não há nenhuma restrição ao advogado que defende, seja o réu qual for, até mesmo o mais brutal; pelo contrário, é um dever do advogado criminalista, mesmo porque não está ele defendendo o crime em si, está realmente defendendo o direito de todo homem defender-se. Se não fosse respeitado esse direito, não haveria nenhuma segurança para o cidadão honesto, porque cada um de nós estaria sujeito a ser condenado por ação que não cometeu. Quando o advogado está defendendo um acusado, está defendendo, na verdade, todos os brasileiros, todos os cidadãos do mundo, porque está defendendo um princípio universal, o direito de cada criatura humana defender-se. O papel do advogado, na vida social e jurídica, é, pois, nobre e importante”.1

Por fim, não se pode esquecer que a Advocacia Criminal esteve presente em todas as conquistas civilizatórias e enfrentou com galhardia e coragem a tirania das ditaduras que assolaram o Brasil, evitando muitas vezes a morte, a tortura e o desparecimento de presos e perseguidos políticos, na busca incessante pela Democracia hoje consolidada.

Diante do exposto, fica o apelo para que se compreenda, respeite e absolva a Advocacia Criminal. Além dos muitos argumentos de caráter jurídico apresentados, não há interesse social algum em condenar uma profissão que tanto lutou e ainda luta em prol da sociedade civil.

É a defesa.

_________

1. CASTELO BRANCO, Vitorino Prata, como se faz uma defesa criminal, Saraiva, 1989.

Natan do Prado Zabotto
Advogado criminalista em Ribeirão Preto/SP, especialista em Direito Penal e Processo Penal pela PUC MG, membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

O Direito aduaneiro, a logística de comércio exterior e a importância dos Incoterms

16/11/2024

Encarceramento feminino no Brasil: A urgência de visibilizar necessidades

16/11/2024

Transtornos de comportamento e déficit de atenção em crianças

17/11/2024

Prisão preventiva, duração razoável do processo e alguns cenários

18/11/2024

Gestão de passivo bancário: A chave para a sobrevivência empresarial

17/11/2024