Impressiona o quão conivente somos com práticas que desumanizam pessoas. Durante séculos a sociedade assistiu aos diversos episódios de crueldade e desumanidade, que embora tenham adquirido outra roupagem, seguem com força total. Um mergulho na história é o quanto basta para constatarmos o nosso fracasso civilizatório.
A desumanização tem legitimado, durante diferentes períodos históricos, a prática de tortura e de morte.
Jesus Cristo, alvo máximo da crueldade, ousou defender sua humanidade. Foi proclamado santo, Messias, o salvador, e esse fato foi o quanto bastou para que a sua condição de ser humano fosse afastada. A santidade retirou-lhe a humanidade.
Durante a Inquisição diversas mulheres foram queimadas vivas, porque lá, ao contrário de Jesus, a humanidade delas foi retirada não pela santidade, mas pela malignidade conferida por Satã.
Tempos depois a igreja propagou a ideia de que pessoas negras não eram detentoras de alma, o que possibilitou a equiparação de pessoas a coisas. Parcela da comunidade médica endossou o absurdo entendimento e sustentou a inferioridade de negros. Sem humanidade, o mundo não se importou com o sequestro de povos para serem escravizados em outros continentes. E neste ponto vale um alerta, a desumanização de negros persiste até hoje e o extermínio da juventude negra é a consequência.
Os horrores do nazismo ainda são latentes. Ideias eugenistas de pureza de raças desumanizaram judeus, pessoas LGBTQIA+, portadoras de necessidades especiais, conduzindo-as ao extermínio em campos de concentração.
Pois bem, nas arenas da história, ao pretexto de eliminar pessoas sem humanidade, muitos crimes foram praticados. E na atualidade, ainda pautada na política de pão e circo, as arenas do entretenimento seguem o mesmo curso.
É o caso do reality Big Brother Brasil, em que a audiência sedenta se delicia com as desavenças e conflitos estimulados pela proposta do programa, mas nisso não há problema algum. A problemática reside na aceitação pela emissora de condutas discriminatórias, que acabam por conduzir, assim como nos processos históricos narrados acima, à desumanização.
As respostas do público por meio de cancelamentos, críticas, manifestações de apoio, sem a contrapartida da emissora, não são suficientes. O altíssimo lucro adquirido com a audiência exige como contrapartida o posicionamento responsável e comprometido com à dignidade humana.
Assim como as desculpas não apagam as dores sentidas por vítimas, sermões proferidos ao vivo, com atraso e somente após repercussões negativas, também não podem ser interpretados como satisfatórios. A resposta das emissoras precisa ser mais contundente e ágil, para que ações desumanizadoras sejam efetivamente cessadas.
Pessoas marcadas pela dor que a discriminação traz não suportam mais a exposição de suas feridas nas telas da TV sem nenhuma consequência. O dano causado por essas práticas ultrapassa à vítima direta e alcança o coletivo formado por pessoas pertencentes ao grupo ofendido.
A imprensa é agente de informação, mas também de transformação social e nessa segunda função precisa ser tão exitosa quanto na primeira. Ainda hoje, grupos minoritários (em espaços de poder e não em números) são sub-representados nas mídias televisivas, ou pior, são representados a partir de estereótipos negativos.
É comum assistirmos às pessoas negras serem relacionadas à criminalidade, pessoas LGBTQIA+ sendo relacionadas a escândalos, indígenas às pessoas que necessitam de educação, enfim, estereótipos que diminuem a importância desses grupos no mundo, e isso possibilita a retirada ou a relativização de suas humanidades.
À Rede Globo não cabe, portanto, o papel de administradora da arena de gladiadores que participam do Big Brother Brasil, mas sim o de utilizar de seu espaço de privilégio e de responsabilidade para se posicionar, com a agilidade e o rigor necessários, contra toda e qualquer ação discriminatória. A máxima de Rui Barbosa de que “a justiça tardia não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta” se amolda ao ponto aqui defendido.
Episódios como o ocorrido com o João Pedrosa (BBB21) podem configurar crime de racismo, ou de injúria racial; Episódios de violência psicológica, como os havidos com o participante Lucas Penteado (BBB21), podem configurar lesão corporal, já que a concepção de saúde abrange a integridade física e mental e o abalo a qualquer delas configura lesão; Episódios como o de Guilherme (BB20) poderia configurar LGBTfobia, equiparado ao racismo. Todos, portanto, refletem práticas eventualmente criminosas, que não podem ser naturalizadas como se entretenimento fossem.
Essa é uma chamada pública não só à Rede Globo, mas a todas as emissoras, para que assumam a sua gigantesca responsabilidade de serem agentes de transformação social, com a reprovação de práticas que atentem contra a dignidade humana em seus programas, sob pena de, ainda que por omissão, deixem sangrar os seus gladiadores, que tem sido fonte de tanto lucro.