O bom e velho Machado de Assis, dentre tantos escritos, deixou-nos contos saborosíssimos. Um deles, intitulado “A Cartomante”, conta a história de um triângulo amoroso – bem ao gosto do bruxo do Cosme Velho – que termina em um duplo assassinato. Explico. Chamado à residência do respectivo casal por carta do esposo traído (que era seu amigo de infância), resolve parar em estabelecimento de cartomante para saber o que o esperaria. Deixando de fora matéria ligada a crenças bem como à moral, etc., é fato que o dito amante poderia ter-se acautelado mais ao invés de sair direto da consulta divinatória para a residência do casal. Resultado: teve a oportunidade de ver sua amada assassinada num sofá momentos antes dele próprio ser vítima de homicídio.
A lição é para a vida e, evidentemente, para o direito. E, em se tratando de licitações e contratos administrativos, é incontornável. Quem acompanha as mudanças na respectiva legislação, pelo menos a partir da lei 8666/93 verifica que o legislador procura ocupar mais e mais espaços antes deixados ao talante do administrador, adotando uma postura de força-lo a prever tudo o quanto o possa no âmbito contratual. Neste sentido, a presente lei é mais diretiva do que a anterior.
Nesta toada, a novel legislação passou a prever, em algumas passagens, a previsão, na matriz de riscos, dos custos de eventual desapropriação.
O art. 25 parágrafo 5º inciso II diz que o edital poderá prever a responsabilidade do contratado pela (...) realização da desapropriação autorizada pelo poder público.
O art. 46, inserido em subseção dedicada às obras e serviços de engenharia, estatui que na execução indireta de obras e serviços de engenharia, são admitidos os seguintes regimes e, após enumerá-los nos incisos I a VII, traz em seu parágrafo 4º a determinação de que nos regimes de contratação integrada e semi-integrada, o edital e o contrato, sempre que for o caso, deverão prever as providências necessárias para a efetivação de desapropriação autorizada pelo poder público, (...)1
Mais adiante, o art. 124, que cuida das eventuais possibilidades de alteração contatual, prevê, em seu parágrafo 2º, que por acordo entre as partes os contratos poderão ser alterados (com as devidas justificativas) para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial quando a execução for obstada pelo atraso na conclusão de procedimentos de desapropriação (bem como de outros, como, por exemplo, servidão administrativa, etc.)por circunstâncias alheias ao contrato.
Sabe-se que para viabilizar, principalmente, obras e serviços de engenharia, não é raro necessitar-se praticar a desapropriação. Portanto, natural que a legislação licitatória a preveja E, muito embora o termo desapropriação não compareça na lei 8666/93, a lei de concessões e permissões (lei 8987/95) refere-se ao expressamente ao instituto em três passagens diversas2.
A desapropriação, como sabido, é senão a mais, uma das mais radicais formas de intervenção do estado na propriedade e, como resulta óbvio, só é possível porque prevista constitucionalmente (principalmente, mas não só, no art. 5º inciso XXIV). Ao contrário, por exemplo do confisco tributário – expressamente vedado.
No mesmo ninho constitucional é previsto o direito à justa e prévia indenização para como integrante do devido processo legal desapropriatório (ressalvadas as outras hipóteses constitucionais, como as dos arts. 182 e 184).
No âmbito infraconstitucional temos, por seu turno, o Decreto lei 3.365/41, conhecida pela alcunha de lei geral de desapropriações. O seu art. 32, cumprindo o mandamento constitucional, prevê que o pagamento do preço será prévio e em dinheiro.
Chegamos ao ponto nodal almejado nestas linhas. Ocorre que todos quantos lidam com o tema desapropriatório sabem o quanto é corriqueiro que o valor ofertado pelo ente expropriante seja, ao final, julgado insuficiente pelo juízo.
Portanto, não é cerebrina a hipótese segundo a qual os valores acertados entre contratantes (Administração Pública e entidade vencedora da licitação) para o pagamento da indenização desapropriatória (valores estes que obrigatoriamente devem constar do edital e do contrato) não correspondam ao valor real de desembolso ao final do processo.
O aludido art. 46 da lei 14.133/21 prevê esta hipótese no seu parágrafo 4º para os regimes de contratação integrada e semi-integrada, conforme já visto, no sentido de que o edital e o contrato, sempre que for o caso, deverão prever as providências necessárias para a efetivação de desapropriação autorizada pelo poder público, bem como: IV – a distribuição objetiva de riscos entre as partes, incluído o risco pela diferença entre o custo da desapropriação e a estimativa de valor (...).
A questão é que, por mais que se possa prever a repartição – qualquer que seja a medida onerada pelas partes do contrato – não é possível a previsão exata e, muita vez, sequer aproximada, do valor final indenizatório.
Portanto, repita-se, por mais que se preveja objetivamente a divisão de ônus entre os contratantes, haverá diferenças (para mais ou para menos) a serem objeto de acerto no futuro – a conhecida álea.
Considerando, por outro lado, que, ultrapassado o depósito prévio e outras providências iniciais, o juízo determina a imissão provisória na posse, de um lado, e o tempo que as demandas desapropriatórias costumam levar em seus trâmites até os píncaros dos tribunais superiores, poderá ocorrer que o contrato já esteja extinto quando do trânsito em julgado da sentença.
Ou seja, haverá um fato posterior, previsto em edital e contrato, que renderá alterações no equilíbrio financeiro de um contrato já terminado. Esta é uma questão que, pensamos, deve ser resolvida no âmbito do edital, procurando a Administração uma solução razoável e ponderada para tais situações, com base, também, na doutrina da pós eficácia das obrigações.
Se o resultado da ação desapropriatória torna-se definitivo ainda na duração do contrato, a própria lei 14.133/21 procura solucionar o tema no art. 124. Mas aí é preciso cautela. Isto porque embora o parágrafo 2º do art. 124 fale em desapropriação ele não autoriza a revisão do contrato por questões referentes à diferença entre o preço ofertado e o valor final inscrito na decisão judicial. Ele cuida apenas da questão de atrasos na execução contratual por conta de contratempos na conclusão do procedimento desapropriatório (e que se deem por culpa não imputável ao contratado).
Ao nosso sentir, ao menos prima facie, a solução estaria no art. 124 sim, mas no inciso II alínea “d”, que trata de restabelecimento de equilíbrio econômico-financeiro inicial em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe ou em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis que inviabilizem a execução do contrato tal como pactuado.
Caso a Administração, no decorrer do contrato, não cumpra a sua parte, poderá se aplicar, enfim, o art. 137, em especial seu parágrafo 2º inciso V que trata do direito do contratado em extinguir o contrato quando a Administração atrasar ou descumprir obrigações a ela determinadas no contrato relacionadas à desapropriação. Para tanto, deverá se observar a matriz de riscos – e sua repartição objetiva – para se ver até que ponto eventualmente a Fazenda ficou responsável pelo pagamento das verbas ligadas à indenização expropriatória.
Também isto deve constar expressamente no edital e no contrato, de forma a tornar o campo da álea o menor possível.
Ao cabo destas linhas, não custa relembrar que muito ainda se tem a discutir acerca deste e de muitos outros temas trazidas pela nova lei. Mas, uma coisa é certa: pelo menos em regra, o combinado não é caro, nem barato.
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1 A referência à autorização por parte do Poder Público evidentemente decorre do fato de que o particular, per se, não pode desapropriar. Neste sentido é que o art. 3º da Lei Geral de Desapropriações diz ser possível, desde que declarada a utilidade pública pela Fazenda, e em havendo autorização expressa em lei ou contrato, que uma concessionária de serviço público ou um estabelecimento que exerça funções delegadas do Poder Público promova a demanda judicial destinada a obter a desapropriação do bem.
2 Passagens, aliás, que lembram bastante a redação da atual lei de licitações. Por exemplo, o art. 18 inciso XII determina que o edital conterá especialmente a expressa indicação do responsável pelo ônus das desapropriações necessárias à execução do serviço ou da obra pública (...). O art. 29, por sua vez, em seu inciso VIII autoriza que o poder concedente possa, mediante outorga de poderes à concessionária promover a desapropriação, sendo que, no caso de tal outorga, será a concessionária a responsável pelas indenizações cabíveis, previsão que está em consonância com o art. 31 da mesma Lei 8987 de 1995, inciso VI que determina incumbir à concessionária promover as desapropriações (...) autorizadas pelo poder concedente, conforme previsto no edital e no contrato.