Nosso último artigo tratou a questão da constitucionalidade do lockdown. Lá, também, afirmei, talvez de maneira profética: “Não sou o primeiro a escrever sobre isso. Não tem problema. O problema é que, desde já lamento, não serei o último.” Só não esperava eu mesmo ter que voltar ao tópico do lockdown, mas parece ser tão inevitável como discutir a compreensão da laicidade pelo STF. Já pesquiso sobre laicidade, publicando artigos e mesmo um livro, há vários anos. Quem tiver interesse, algumas das referências estão no final deste artigo. Minhas outras publicações não serão difíceis de encontrar. O espaço aqui é bastante curto e precioso, então abordaremos apenas alguns dos aspectos principais, para chegar a uma conclusão breve, porém nada precipitada. É, em grande parte, o mesmo problema que foi enfrentado na ADIn 4439, que trato na obra Laicidade e Hermenêutica. Vejamos.
A ADPF 701 afirma que “os aludidos decretos atentam contra a liberdade de locomoção (art. 5º, inc. XV, da CF/88), a laicidade do Estado brasileiro (art. 19, inc. I, da Constituição Federal) e o direito fundamental à liberdade religiosa (art. 5º, inc. VI, da Carta Magna).” Sobre a primeira suposta violação, da liberdade de locomoção (direito de ir e vir), veja artigo anterior. Sigamos então os demais argumentos, começando sobre o direito fundamental à liberdade religiosa.
A questão poderia ser simplesmente resolvida com a afirmação de que não há direitos absolutos, que a constituição é um sistema. Essencialmente o que foi dito sobre a liberdade de locomoção pode igualmente ser dito sobre a liberdade religiosa. No artigo anterior, onde está “direito de ir e vir” substituía por “liberdade religiosa”. Mas, em face da invocação da laicidade do Estado, bem como as peculiaridades da decisão do ministro, não podemos nos satisfazer apenas com isso.
Para entendermos laicidade, precisamos primeiro definir o contexto no qual estamos trabalhando. Nosso horizonte. O que interessa é a laicidade para o Direito. Mais: para o Direito Constitucional. Além disso, para o Direito Constitucional no Brasil contemporâneo, na vigência da Constituição de 1988. O sentido de algo está ligado à sua mundeidade, e só é em determinado tempo e determinado lugar. A laicidade pode ter muitos sentidos e muitas formas (BARBOSA; SILVA FILHO, 2018), mas o significado da laicidade para os Estados Unidos no ano de 1920 em nada adianta. Ou a diferença entre laicidade e secularidade na dicotomia dos países latinos e anglo-saxônicos. Tais discussões têm espaço, porém não aqui. Também as preliminares suscitadas sobre a ADPF, embora de extrema relevância, inclusive a relação da uma ministra com a entidade, não encontram espaço no presente artigo, merecendo discussão aprofundada em espaço próprio.
Também a questão de se dois erros fazem um acerto, vez que o ministro recorre ao argumento que essencialmente remonta a “se outro pode, concluo que esse também pode” não será presentemente abordado, exceto para deixar claro que comunicabilidade de doenças infectocontagiosas é uma operação de soma e não alternativa. Tem-se a comunicabilidade oriunda da outra atividade e mais, adicionalmente, à desta.
No julgamento, o ministro inicia com uma premissa errada, de que (concordando com a tese da autora): “trata o serviço religioso como algo supérfluo, que pode ser suspenso pelo Estado, sem maiores problemas para os fiéis.” Tal posição não se sustenta, o que se pode observar com fácil analogia: foram proibidas também aulas presenciais nas escolas. Teriam os estados afirmado que o serviço educacional é “algo supérfluo, que pode ser suspenso pelo Estado, sem maiores problemas para os” alunos? Obviamente que não. Tanto que estão sendo feitos grandes esforços para possibilitar que o ensino prossiga, utilizando-se de outros meios disponíveis, como o ensino à distância. O fato de alguns serviços serem classificados como “essenciais” parte sempre da análise para a sociedade, e não para os indivíduos. Se forem pensados os indivíduos, enquanto unidades, todo e qualquer serviço será eventualmente classificado como essenciais, causando uma situação impossível, devido à imperatividade da situação sanitária. Tal argumento, portanto, não se presta senão para tentar retabular a discussão onde ela não é, insinuando que os fiéis estão sendo menosprezados. Um apelo emocional que passa longe de qualquer Direito, muito menos do “melhor Direito”.
Imprestável ainda o uso do direito comparado, particularmente de uma jurisprudência estadunidense, para o caso. De plano, tratando-se de questão de matriz constitucional, não há qualquer analogia possível entre as duas cartas. Também o sistema jurídico americano é de modelo common law, enquanto o pátrio adota a civil law. Afirmar que tal analogia seria possível pelo fato de que houve influência de um constitucionalismo, além de confundir os conceitos de constitucionalismo e Direito Constitucional, a nada leva. A Constituição da República Federativa do Brasil é soberana, não se curvando a nenhuma outra, de outro país. O Brasil não é colônia dos Estados Unidos. Ou devemos incorporar Roe v. Wade ao nosso ordenamento, também oriunda da mesma Suprema Corte norte-americana? A nossa laicidade não é a secularidade (não laicidade) norte-americana (sobre a diferença, ver: BARBOSA; SILVA FILHO, 2018). Nem mesmo neste ponto é possível uma analogia.
O ministro, em seu voto, também busca fundamentos obra de Jorge Miranda, importante constitucionalista português. Sem qualquer crítica ao professor catedrático da UCP, novamente devemos ressaltar que a resposta correta deve ser aquela adequada à Constituição pátria. Embora possa-se muito aprender com pesquisadores estrangeiros, tais lições não podem simplesmente ser importadas, sem qualquer consideração às diferenças históricas e sociais do Brasil. Nem mesmo a experiência de nossos vizinhos latino-americanos pode ser incorporada diretamente (BARBOSA, 2020, p. 71-116), motivo pelo qual mesmo as conclusões de Blancarte (BARBOSA; SILVA FILHO, 2018) não podem ser traduzidas diretamente.
O Supremo Tribunal Federal têm sido chamado para responder questões sobre laicidade com frequências cada vez maior (BARBOSA; SILVA FILHO, 2020). Sem exceção, a questão do que significa a laicidade para o Brasil contemporâneo (aqui, agora), é deixada de lado, ignorada, ou tratada como já respondida. A decisão do ADPF 701 não é diferente. A própria palavra laicidade só aparece 3 (três) vezes, e a relação Estado-Igreja é tratada como algo dado, único e universal, o que é especialmente atestado pela tentativa de se fundamentar em uma decisão estadunidense e uma doutrina lusitana. Independente do que se concluiu ao final quanto ao mérito da ADPF, tal fundamentação não pode ser aceita. A resposta adequada à constituição é um direito fundamental (STRECK, 2017, p. 646).
Qual seria, então, a resposta constitucionalmente adequada. A questão é melhor trabalhada em outro lugar (BARBOSA, 2020), onde se faz uma laboriosa reconstrução da historicidade da laicidade pátria mas, em essência, a Laicidade brasileira, diferente da secularidade americana (comparável com um muro), ou com a laicidade latino-europeia, possui duas frentes: proteção e garantia. Enquanto a garantia é oponível perante ao próprio Estado, a proteção implica no dever do Estado de defender perante à própria sociedade. Mas a origem é sempre no discriminatório, no tratamento diferenciado “por ser religião” (BARBOSA, 2020, p. 201). Na própria cláusula constitucional da laicidade, no invocado artigo 19, I, está clara a vedação da discriminação, ao afirmar que colaborações por interesse público não podem ser proibidas simplesmente por ser tratar de um grupo religioso (BARBOSA, 2020, p. 202). O Estado não pode discriminar à favor, mas também não pode discriminar contra. A laicidade do Brasil não é um muro, mas um compromisso. Da mesma forma é dever do Estado garantir que nenhum grupo seja discriminado ou atacado por ser religião, inclusive protegendo uma religião quanto a ataque de outras (notadamente religiões minoritárias). O Estado não pode favorecer uma, criando religiões de primeira ou segunda classe, nem mesmo pela indiferença (novamente, com grande diferença do modelo estadunidense). As únicas discriminação são aqueles previstas na própria Constituição, como a imunidade tributária.
O que isso significa para o caso em pauta? O direito à liberdade religiosa não é absoluto, como há muito se sabe. Não pode uma religião, por exemplo, realizar sacrifícios humanos. Religiões não podem fazer consumo de drogas (e existem religiões onde o consumo de maconha é parte do ritual). Templos religiosos devem ter projeto feito por um engenheiro e devem obedecer as normas de segurança. A Constituição é um sistema e deve sempre ser tratada como um todo coeso. A invocação de um artigo em particular, desconexo dos demais, é um indicativo de interesses ou outras motivações. Não pode o magistrado decidir simplesmente conforme sua consciência (STRECK, 2010). E, particularmente em questões ligadas à crenças (gênero do qual religião é espécie), vale o alerta de Clifford (1876): “Nor is that trully a belief at all which has not same influence upon the actions of him who holds it”.
A pergunta que resta, do ponto de vista da laicidade, é: o tratamento dispensado ocorre por ser religião? Há um tratamento privilegiado ou discriminatório, fundado no “ser religião”, ainda que de maneira indireta?
Observa-se, de plano, que não há qualquer vedação de práticas religiosas, mas apenas da realização de encontros coletivos, agrupamentos. Atividades associativas. O que é vedado, então, não é a prática religiosa, mas sim o agrupamento. Da mesma forma, não há uma exclusão, tratamento privilegiado, oferecido pelos decretos estaduais. Mais do que isso: se a religião, no caso, é essencial por oferecer “acolhimento e conforto espiritual”, e isso só acontece (pela lógica solipsista da decisão) quando o agrupamento presencial, então é igualmente provável que o acolhimento e conforto não decorra da religião, mas sim do agrupamento, da reunião de pessoas. Ainda mais que se argumenta pela necessidade do agrupamento para que o conforto espiritual aconteça. E, mais, agrupamento presencial (hoje também nos agrupamos virtualmente). Desta forma, mesmo que abandonemos a hermenêutica por um momento, nem mesmo pela ponderação alexyana é possível concluir o que o ministro concluiu. Novamente recorrendo às analogias, vez que o ministro usou como fundamento os transportes coletivos, os agrupamentos que trazem conforto podem ser comparados à clubes e associações, que também têm suas reuniões vedadas pelos decretos e que, se o fundamento da liberação é acolhimento e conforto, deveriam ser liberados.
O argumento de que 80% dos brasileiro se declaram cristãos também não pode prosperar, pois implica em um tratamento especial, diferenciado, que relega os outros 20% a um status de cidadãos de segunda classe pelo fato de não serem cristãos. As garantias constitucionais são contramajoritárias por excelência. A proximidade da Semana Santa, época de sofrimento e celebração de uma tradição religiosa específica, não se presta a fundamentar o perigo da demora. Serão as celebrações religiosas de todas as outras mais de 10000 religiões (JOHNSON; GRIM, 2013, p. 9) também motivações suficientes e válidas?
Conclui-se: a decisão do ministro está em descompasso com a laicidade do Estado, conforme sentido extraído e desvelado à partir da Constituição de 1988, e cria um tratamento especial, diferenciado, para religiões, relegando o não-religião a um status de segunda classe. Observa-se que os decretos que proíbem as reuniões religiosas não se fundamentam no “ser religião”, mas sim no “ser reunião”. As vedações se fundamentam na necessidade epidemiológica de se reduzir a propagação de agente infectocontagioso, onde contatos entre pessoas têm efeito aditivo (3BLUE1BROWN, 2020a) e exponencial (3BLUE1BROWN, 2020b). A decisão ainda traz consigo a irreversibilidade do óbito daqueles contaminados, um sistema de saúde a beira do colapso, e a contaminação de terceiros. Por outro lado, a vedação das aglomerações religiosas não traz nenhuma irreversibilidade material, mas apenas temporal, o que é característica de toda e qualquer decisão liminar e, assim, sendo de sua essência, não pode figurar como fundamentação, sob pena de se justificar tautologicamente todo e qualquer pedido de tutela antecipada.
Finalmente, não pode o poder judiciário definir os parâmetros de isolamento, como expressado na decisão, fixando em 25% da capacidade, sob pena de usurpar competência específica da autoridade sanitária. Duplamente, pois não apenas se recusa a reconhecer a validade da decisão que, fundamentada em recomendação da autoridade sanitária, proibiu a realização de cultos presenciais, afirma não apenas que devem ser permitidos, mas como e em qual limite. Caso o ministro decidisse (em descompasso com a Constituição) que não poderia haver limitação, somente poderia se limitar a fazer cessar as decisões dos entes federativos, e não modifica-las, adaptando e remodelando à sua própria consciência.
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3BLUE1BROWN. Exponential growth and epidemics. Youtube, 2020b. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 4 abr. 2021.
3BLUE1BROWN. Simulating an epidemic. Youtube, 2020a. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 4 abr. 2021.
BARBOSA, Rodrigo P.; SILVA FILHO, Edson V. da. Laicidade e o Estado: as diferentes relações Estado-Religião e as medidas da laicidade. Revista Direito e Justiça: Reflexões Sociojurídicas, [S.l.], v. 18, n. 32, p. 233-248, nov. 2018. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 4 abr. 2021.
BARBOSA, Rodrigo P.; SILVA FILHO, Edson V. da. A laicidade e o STF: um estudo das decisões do Supremo Tribunal vinculado a questões religiosas e de laicidade. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 7, n. 3, p. 132-145, 7 set. 2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 4 abr. 2021.
BARBOSA, Rodrigo P. Laicidade e Hermenêutica: compreendendo o Estado Laico no Brasil contemporâneo em busca de uma resposta adequada à Constituição. Belo Horizonte: Dialética, 2020.
JOHNSON, Todd M.; GRIM, Brian J. The World’s Religions in Figures: An Introduction do International Religious Demography. West Sussex, UK: John Wiley & Sons, 2013.
STRECK, Lenio. O que é isso – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
STRECK, Lenio. Verdade e Consenso. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.