A promulgação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico (lei 14.026/20) traz consigo a legítima expectativa de aperfeiçoar a prestação dos serviços públicos relacionados ao setor, especialmente no que tange ao imperativo jurídico da universalização até 2033 e os vultuosos investimentos, majoritariamente privados, que serão demandados para sua concretização.
Apesar da ampliação do acesso ser uma das razões precípuas que motivou a alteração legislativa, o marco promove profundas modificações com base também na qualidade do serviço que já é fornecido à população em áreas universalizadas. Afinal, conforme os dados do Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento – SNIS, em 2017, o índice de tratamento de esgoto coletado não ultrapassava 44,9%, enquanto o índice de perda de água na distribuição estava em 38,3%, o que significa que a cada 10 litros de água produtos, quase 4 litros são desperdiçados.1
Neste cenário, uma das apostas do marco legal para resolver estes problemas institucionais é a substituição dos contratos de programa, celebrados com empresas estaduais de água e esgoto à luz da lei 11.107/05, por concessões de serviços públicos, obrigatoriamente realizadas mediante licitação. A medida tem a finalidade de aumentar a presença privada no setor e angariar recursos para os investimentos necessários, e a mudança dos prestadores do serviço será cada vez mais comum.
Em 17.3.21, o Congresso Nacional votou pela manutenção dos vetos do Presidente Jair Bolsonaro (sem partido) aos trechos da legislação que permitiam que os contratos de programa fossem prorrogados por até 30 anos. Por 292 votos favoráveis e 169 contrários, entendeu-se que a renovação dos contratos adiava as soluções promovidas pela legislação, bem como limitava a livre iniciativa e livre concorrência.2
É claro que o serviço público hoje se encontra em um padrão abaixo do desejável, não sendo nenhum sobressalto imaginar que as empresas privadas que assumirão as concessões poderão enfrentar sérios problemas na infraestrutura presente, prejudicando o fornecimento imediato adequado. Naturalmente, soluções demandam tempo e investimentos, o que do aspecto técnico é usual, mas que na prática significam dificuldades no abastecimento de água e esgoto, vitais à dignidade da pessoa humana, especialmente em um cenário de pandemia como o que vivenciamos há um ano.
É razoável que o próprio edital de licitação já preveja que o futuro concessionário não poderá alegar desconhecimento da infraestrutura para o perfeito cumprimento contratual. Além disso, o edital pode, previamente e de acordo com as condições locais, estabelecer investimentos urgentes já na equação econômico-financeira inicial. Na realidade, o descumprimento contratual acarreta consequências, e, a depender do grau da sanção, poderá justificar até mesmo a sua caducidade (art. 38, lei 8.987/95). Ocorre que a solução tradicional para problemas contratuais é sancionadora, sendo muitas vezes judicializada, tornando o processo lento e pouco efetivo para o usuário, verdadeiro interessado na prestação do serviço.
Porém, um dos problemas do saneamento básico é justamente a baixa capacidade dos municípios em fiscalizar o cumprimento do contrato e preparar editais.3 Como, em regra, a titularidade é municipal, a saída da Lei nº. 14.026/2020 para solucionar entraves federativos foi o fortalecimento da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA através de normas gerais, competência atribuída à União na Constituição Federal (art. 21, XX e art. 23, IX).
No âmbito da agência, normas gerais são denominadas normas de referência, que constituem orientações a serem cumpridas voluntariamente pelos municípios, utilizando-se do spending power da União para acessar recursos federais, tanto financeiros quanto técnicos (art. 4º-B do Novo Marco). Uma parte do seu amplo escopo é ditar padrões de qualidade e eficiência na prestação dos sistemas (art. 4ª- A do referido Marco), enquanto o apoio da União na adaptação dos serviços públicos compreende a elaboração de editais, bem como a realização de prévias audiências e consultas públicas (art. 3º, IX, Decreto Federal 10.588/20).
Contudo, a instituição de normas de referência não é milagrosa, e não possui condão de, por si só, resolver as disfunções em torno da eficiência do serviço público, pois parte do pressuposto que a ANA é mais capacitada e que possui instrumentos regulatórios mais eficazes. Na realidade, entidades reguladoras federais são criticadas pela utilização excessiva de um modelo fiscalizatório e sancionador4, que muitas vezes concentra a atividade administrativa na mera imposição de multas e não produz incentivos adequados.
Em certos casos, a depender da correta avaliação do regulador, mecanismos menos intrusivos podem ser mais eficientes, sejam eles autônomos ou complementares às sanções, através da introdução ou indução voluntária de comportamentos. A essência desse modelo é proporcionar recompensas para que o privado colabore com políticas públicas de determinado setor.5
Uma das formas de regulação por indução é através do chamado benchmark competition, no qual as empresas são estimuladas a serem tão eficientes quanto em modelos hipotéticos ou reais de outros mercados, com padrões previamente estimulados como condição para maiores lucros. Em concessões de saneamento básico, por exemplo, um dos critérios desejáveis poderia estabelecer que o serviço não seja interrompido nos primeiros meses por problemas relativos à infraestrutura anterior, e ao invés de aplicar uma sanção pelo descumprimento, a margem de lucro seja aumentada.
Especialmente quando se trata de investimentos urgentes e imediatos, os incentivos talvez sejam mais adequados, uma vez que soluções tradicionais baseadas em normas de comando e controle podem ser morosas e não atendem as necessidades básicas dos cidadãos no acesso ao serviço público. Assim, um caminho possível para que seja atrativo às empresas solucionar problemas inadiáveis na infraestrutura de saneamento é o estabelecimento de normas de referência com base em métodos de indução, desde que os próprios municípios previamente adotem a opção do governo federal, naturalmente.
Com a manutenção do veto ao art. 16 do Marco Legal, estabelecer parâmetros para as transições se torna ainda mais indispensável, já que necessariamente ao término dos contratos atuais serão realizadas licitações. Trata-se, portanto, de um desafio a ser vencido pela Administração Pública a fim de caminhar, ainda que em passos lentos, em direção à universalização dos serviços essenciais à população brasileira.
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1 Esses dados inclusive foram utilizados na exposição de motivos do projeto de lei. (Disponível em: clique aqui. Acesso em 28.02.2021).
2 Disponível em: clique aqui. Acesso em: 19.03.20201.
3 Nesse sentido “Concessões e PPPs de saneamento emperram depois do marco legal”. Disponível em: clique aqui. Acesso em 24.02.2021.
4 Sobre as disfunções no modelo sancionador brasileiro, ver VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
5 BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político jurídicas, econômicas e institucionais do direito administrativo ordenador. Belo Horizonte: Fórum, 2016 p. 166.