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Paridade de armas no processo penal: Quando existirá?

O futuro projeto de lei deve passar por uma “depuração linguística”, com o fito de minimizar palavras polissemizadas, em verdadeiro processo de monossemização, de modo a evitar que a amplitude conceitual do termo viabilize aplicações casuísticas do dispositivo.

31/3/2021

Conforme noticiado amplamente na mídia nacional, o Conselho Pleno da Ordem dos Advogados do Brasil aprovou, aos 16 de março de 2021, a proposição de um anteprojeto de lei com 24 propostas que alteram parte da legislação processual penal.1

Em apertada síntese, busca-se garantir maior amplitude ao direito de defesa e às prerrogativas da advocacia, numa tentativa de fazer vigorar a tão falada — e tão distante — paridade de armas no cenário processual.

Conquanto a proposição não se restrinja à advocacia criminal, é sobre esse aspecto que vemos algum avanço na discussão.

Importante consignar, de plano, que a paridade de armas não é novidade no ordenamento jurídico, tampouco se cuida de criação brasileira. Em realidade, funciona como conditio sine qua non para um processo verdadeiramente democrático. Carlos Alberto Carbone explica, com precisão, que “por este principio se quiere que el Estado litigante esté em pie de igualdad, pero que a más de abarcar la igualdad de armas respecto a las mismas posibilidades de contradecir, ofrecer prueba, recurrir, etcétera, supone también contemplar la igualdad de recursos estructurales y materiales”.2

A proposta, nos moldes idealizados, merece aplausos, mas impõe reflexões, notadamente no que diz respeito à efetiva e concreta paridade de armas no processo penal, princípio quase que “ficcional”, desmentido pela “simples” leitura do Código de Processo Penal, que não trata com igualdade as partes processuais.

Dentre as várias propostas, destaco “apenas” a de número 5 (cinco), cuja redação permite ao juiz o aumento, em até o dobro, do prazo de defesa nos ‘crimes complexos’.3 Como a proposição fala em prazo de “defesa”, suponho estar relacionada a todos os atos processuais que exijam manifestação defensiva — como, por exemplo, a resposta à acusação (arts. 396 e 396-A, do CPP), o requerimento de diligências ao final da instrução (art. 402, do CPP), as alegações finais (art. 403, do CPP), etc.

Há, de fato, um avanço.

Existe, todavia, a materialização da paridade de armas?

O texto parece possuir alcance semântico demasiado “elástico”, sobretudo porque delega ao juiz o “poder de adjetivar a causa”. Explico: a redação não cuida de casos complexos, mas, sim, de “crimes complexos”. Aqui já reside um primeiro problema, qual seja, a expressão “crimes complexos”. Está-se a empregar termo polissêmico4, que certamente provocará discussões.

 Com efeito, na linha do que ensina a doutrina, há “crime complexo” quando um tipo de injusto reúne elementos de outros tipos num só, dando vida a uma figura delitiva nova, como é o caso, por exemplo, do roubo (art. 157, do CP), que agrupa o furto (art. 155, do CP) e ameaça (art. 147, do CP) ou lesões corporais (art. 129, do CP).5

Superada essa definição “estritamente dogmática”, vale a observação de que o dicionário da língua portuguesa define “complexo” como adjetivo que expressa a característica daquilo que é “De difícil compreensão; que não é simples; complicado. Desprovido de percepção, entendimento ou clareza; confuso”.6

Nesse contexto, pode ocorrer, por exemplo, de o roubo — um crime juridicamente complexo — não apresentar qualquer complicação no campo prático; dito de outra forma, num aspecto linguístico, o roubo seria um “crime simples”, a despeito de, no campo da dogmática penal, ser clara hipótese de “crime complexo”.

Percebe-se, assim, que o futuro projeto de lei deve passar por uma “depuração linguística”, com o fito de minimizar palavras polissemizadas, em verdadeiro processo de monossemização, de modo a evitar que a amplitude conceitual do termo viabilize aplicações casuísticas do dispositivo, tornando-o sem eficácia ou banal.

Ainda na proposta número cinco, destaco o seguinte trecho: “aumentar o prazo de defesa ‘em até o dobro’”. Outro ponto que merece atenção.

Imagine-se o prazo para resposta à acusação, que é de 10 (dez) dias. Definido que o crime é complexo — a princípio, do modo como está posta a questão, será uma faculdade do magistrado, sem parâmetros objetivos de aferição7 —, o juiz poderá aumentar o prazo em até o dobro. Assim, o advogado poderá ter tanto 20 (vinte) dias quanto 11 (onze) para manifestar-se.

Parece absurda a afirmação de que o juiz poderia aumentar em apenas um dia o prazo para a manifestação; sem embargo, embora grotesca, será possível, caso a proposta seja aprovada nos termos em que apresentada.

Feitos esses pequenos apontamentos, que não deixam de ser relevantes, questiono: será possível falar em paridade de armas, pelo menos do ponto de vista “prazal”, apenas com a dobra do prazo legal previsto, nos casos em que o juiz entender que o crime é complexo?

Pense-se na seguinte hipótese: o Ministério Público passa cerca de um ano investigando determinada pessoa; no decorrer das investigações, conta com o auxílio de um delator/colaborador, que apresenta uma série de documentos e provas, de tamanho tal que o conhecimento para manifestação defensiva posterior seja impossível, mesmo em 20 (vinte) dias.

Indaga-se: haverá, aqui, tão só pelo elastério do prazo, concreta e efetiva paridade de armas entre o Estado-Acusação e o Imputado? A resposta parece ser negativa.

Relembrando as lições de Carlos Carbone, para além de colocar o cidadão em pé de igualdade com o Estado-Acusação, a paridade de armas exige a equivalência de recursos estruturais e materiais.8 Nessa linha de intelecção, pode-se dizer que quase sempre a defesa sai em desvantagem no jogo processual, uma vez que as competentes e estruturadas forças investigativas estatais passam meses, anos investigando, reunindo elementos de informação e provas cautelares, ao passo que o imputado, tão só ele eu seu advogado, quando tudo vem à tona, têm apenas 10 (dez) — ou, sendo otimista, 20 (vinte), a vingar o projeto — dias para contradizer fatos apurados em meses e/ou anos.

Não é fácil o processo penal; o prazo para manifestação é muito importante, mas deve estar acompanhado de uma série de outras garantias, tais como (I) presunção de inocência (como regra de tratamento e julgamento), (II) imparcialidade do julgador (inclusive com vedação aos poderes instrutórios do juiz, que deve, na dúvida, absolver, e não produzir provas9), (III) contraditório, (IV) ampla defesa, etc.

Por isso, mais importante do que boas leis, são os bons juízes, aqueles que compreendem qual o seu papel constitucionalmente demarcado10, que não buscam holofotes, tampouco o título de heróis. Esses juízes, diferentemente dos “heróis”, quando se deparam com leis absurdas, podem, em sede de controle difuso de constitucionalidade, neutralizar os efeitos negativos que delas decorrem.

Dada a importância do juiz, recorro às palavras de Calamandrei, já citadas em outro texto, segundo as quais:

[...] quando o Direito está ameaçado e oprimido, desce do mundo astral, onde descansara no estado de hipótese, e espalha-se pelo mundo dos sentidos. Encarna-se, então, no juiz e torna-se a expressão concreta de uma vontade operante por intermédio da sua palavra. O juiz é o Direito tornado homem. Na vida prática, só desse homem posso esperar a proteção prometida pela lei sob uma forma abstrata. Só se esse homem souber pronunciar a meu favor a palavra de justiça poderei certificar-me de que o Direito não é uma sombra vã. Por isso se coloca o verdadeiro fundamentum regnorum não apenas no jus, mas também na justitia. Se o juiz não tem cuidado, a voz do Direito é evanescente e longínqua como a voz inatingível dos sonhos.11

Como já disse: sem um juiz comprometido, a lei de nada serve; nada garante. A lei, sem um juiz, não assegura nem mesmo a sua própria eficácia, o respeito a si própria. Nessa conjuntura, se a lei, sem juiz, não garante sequer a si mesma, como esperar dela a garantia do direito — sempre alheio — que visa a resguardar?

Concluo, assim, afirmando que a proposta vem em bora hora e merece todos os aplausos, já que tem a nobre intenção de equilibrar as forças no processo como um tudo.

Reitero, no entanto, que é necessária uma depuração do texto, a fim de que, quando implementado, seja de fato aplicado, não ficando à mercê da vontade do julgador.

_________________________

1 OAB vai propor anteprojeto de lei para garantir direito de defesa e prerrogativas.

2 CARBONE, Carlos. Principios y problemas del proceso penal adversarial. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2019. p. 49-50.

3 Eis o texto: “Possibilidade de o Juiz aumentar o prazo de defesa em até o dobro nos crimes complexos”.

4 “[...] palavras polissêmicas são aquelas que possuem mais de um significado para o mesmo significante [...] a polissemia está relacionada ao uso discursivo que se faz de uma mesma palavra, assim, somente através do contexto é possível determinar o seu significado”. Disponível em: < clique aqui>. Acesso em 25 mar. 21.

5 Nesse sentido: SOUZA, Luciano Anderson de. Direito penal: parte geral. Vol. 1. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo, 2021. p. 200.

7 Mostra-se relevante tal observação, justamente porque a proposta número 6 (seis) visa combater a discricionaridade: “6 — Possibilidade de o Juiz, na fase de absolvição sumária, reconsiderar o recebimento da denúncia, o que é admitido pelos Tribunais Superiores, mas, diante da ausência de clara previsão legal, tem-se tornado ato meramente discricionário do Juiz”.

8 CARBONE, Carlos. Principios y problemas del proceso penal adversarial. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2019. p. 49-50.

9 NUNES, Filipe Maia Broeto. A gestão da prova pelo juiz como critério identificador do sistema processual penal vigente. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 29, nº 1548. Disponível em <clique aqui>. Acesso em 25 mar. 21

10 Sobre o tema, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho bem observa: “Mais que jurídica, portanto, a questão se demostrará ética; e os riscos da sobrevivência inquisitorial serão concretos dado se continuar a depender dos próprios juízes e, assim, da construção de uma cultura que os coloque, para sempre, no seu devido lugar, algo aparentemente muito difícil no início, enquanto não houver (contra o sistema atual) uma mentalidade constitucional arraigada. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: Cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 46 - 183 julho/set. 2009. Disponível em: < clique aqui>. Acesso em 25 mar. 21.

11 CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. São Paulo: Editora Pillares, 2013.

Filipe Maia Broeto
Advogado Criminalista e professor de Direito Penal e Processo Penal, em nível de graduação e pós-graduação. Mestrando em Direito Penal (UBA/AR) e Especialista em Direito Penal Econômico (PUC/MG).

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