Violência no trânsito: a outra “guerra” nossa de cada dia
Luiz Flávio Gomes*
Nossa violência endêmica intencional é étnica e racista. Aliás, nascemos sob o império da divisão: europeu de um lado e índios e escravos de outro. Uma “tribo” não aceita a outra. Os apartheids (sociais, econômicos, educacionais etc.) fazem parte da nossa cultura. Convivemos com a discriminação, segregação, favelização etc. Tudo isso está na origem da nossa “guerra civil” intencional diária. Mas ao lado da violência intencional há a não intencional: mortes em acidentes de trabalho, prédios e morros que desabam etc. Destaca-se, nesse âmbito, uma categoria: a violência no trânsito.
Como prevenir tantos acidentes e mortes? Nunca é demais recordar a teoria dos 3 “ês” de David Duarte Lima (Folha de S. Paulo de 15.01.05, p. A3): engenharia, educação e enforcement (fazer cumprir as leis por meio de rigorosa fiscalização).
A engenharia tem que construir boas estradas, com alto nível de segurança, bem sinalizadas; fazer de tudo para evitar a aquaplanagem, desenvolver técnicas que obriguem a redução da velocidade onde isso seja necessário etc. Lamenta-se que pouco disso esteja ocorrendo nas nossas estradas, ruas e vielas. A não duplicação da BR-101, até hoje, é um aberrante exemplo!
A alta velocidade, aliada quase sempre ao álcool, ainda que em estradas modernas e privatizadas, seria uma das causas mais freqüentes dos acidentes.
Considerando-se que todas essas rodovias contam com pedágios, parece muito simples (nelas) conter o excesso de velocidade: que o pedágio seja cobrado conforme a velocidade média desenvolvida em cada trecho. Quem excede em 50% a velocidade permitida, calculado pelo tempo gasto entre um pedágio e outro, pagaria o dobro do preço ou o triplo e assim por diante (numa tabela progressiva). Não podemos nos esquecer que o bolso (especialmente do brasileiro) ainda é a parte mais sensível do “corpo” humano!
Outra medida interessante vem sendo adotada nos EUA: é um bafômetro dentro do veículo que impede a partida do carro quando se constata excesso de álcool. Constitui um tipo de “nariz eletrônico”: “cheirou” álcool o carro não funciona. No Estado do Novo México (EUA) essa medida já reduziu em 11% o número de acidentes envolvendo motoristas embriagados (VEJA de 29.11.06, p. 102). No Brasil, 12,3% da população é dependente de álcool (considerando-se a faixa etária de 18 a 24 anos, 19% são dependentes – O Estado de S. Paulo de 23.11.06, p. C10). Essa combinação entre o álcool, o volante e a faixa etária é altamente mortal: 30% das mortes no trânsito estão relacionadas com o álcool (VEJA de 29.11.06, p. 103).
No que se relaciona com a educação no trânsito, tudo está por ser feito. Esse é o lado preventivo da violência, do qual poucos cuidam o Estado e a sociedade civil. Nossa formação étnica separatista está treinada só para atuar repressivamente! Em lugar de prevenir acidentes o poder público avisa, com placas, que os acidentes vão acontecer (“Curva perigosa, acidente iminente”, “Local de acidentes freqüentes” etc.). Cuida-se de uma auto-profecia que se cumpre corriqueiramente.
No que concerne ao enforcement (fazer cumprir as leis por meio de uma fiscalização eficiente) a maior dificuldade reside na cultura engendrada pela sociedade étnica dominante de “levar vantagem em tudo”, de “explorar o outro”, de disseminar a corrupção, saquear o dinheiro público etc. Queremos regras duras, porém, “para os outros”! Que o Código de Trânsito seja duro contra “os outros”, que as multas afetem “os outros” etc. Para nós, que o excesso de velocidade seja permitido, que o cinto de segurança não seja obrigatório, que as crianças fiquem soltas no veículo, que o capacete permaneça como protetor de cotovelo, que a embriaguez no volante seja liberada etc.
Não temos que reinventar a roda: a responsabilidade não é só do Estado, também é da própria sociedade, dos motoristas, do sistema educacional etc. Cada qual tem que cumprir seu papel, jogando energia nos três “es”. Do contrário, nosso cenário de mortes violentas (leia-se: nossa guerra civil) perdurará eternamente.
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*Fundador e presidente da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
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