Migalhas de Peso

Na sopa de letrinhas entre o público e o privado, um tempero de cautela

A eventual possibilidade de contratação pública de empresas em dificuldade financeira e suas consequências.

26/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Abordaremos nas presentes linhas os limites e possibilidades de contratação, pela Administração Pública, de empresas em estado de dificuldade financeira, mormente aquelas que se encontram em processo de recuperação judicial.

A recuperação judicial, sabidamente um instituto regulado a partir do advento da lei 11.101/05 tem, na dicção do próprio diploma, por objetivo viabilizar a superação da crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômico (art. 47 da Lei de Recuperações e Falências).

Nem é preciso dizer mais. O estado de recuperação judicial, ao contrário do que muitos pensam, não constitui nem necessária nem idealmente um estágio pré-falimentar. A despeito de haver, na mesma lei, a previsão da convolação da recuperação em falência (a partir do art. 73), este não é, nem de longe, o objetivo que norteia a recuperação judicial.

Isto posto, é de se ver que alguns integrantes da Administração Pública, direta e indireta, tem tido algum tipo de prevenção no sentido de não permitir a habilitação de empresas em situação recuperacional judicial nos respectivos certames licitatórios.

Bem entendido: estamos a falar de casos de desqualificação sumária da entidade empresarial por não ter apresentado a certidão negativa de recuperação judicial. Por assim dizer, ad nutum.

Assim é que alguns de tais atores econômicos, entendendo-se tolhidos na sua liberdade econômica, recorrem ao Poder Judiciário. Nesta toada, é interessante notar que o STJ, nos autos do ARESP 309.867/ES entendeu que inexistindo autorização legislativa, incabível a automática inabilitação de empresas submetidas à lei 11.101/05 unicamente pela não apresentação de certidão negativa de recuperação judicial, principalmente considerando o disposto no art. 52, I, daquele normativo, que prevê a possibilidade de contratação com o poder público, o que, em regra, pressupõe a participação prévia em licitação. (...) 7. A exigência de apresentação de certidão negativa de recuperação judicial deve ser relativizada a fim de possibilitar à empresa em recuperação judicial participar do certamente, desde que demonstre, na fase de habilitação, a sua viabilidade econômica.

Isto é: não é legítima a exclusão na fase habilitatória da licitação de forma automática de uma entidade empresarial apenas pela não juntada da certidão negativa de recuperação judicial. É preciso que se lhe oportunize a possibilidade de demonstrar que, apesar de estar em estado recuperacional, tem idoneidade econômica para assumir o contrato que esteja em questão.

Importante ainda revelar que, no lastro de tal entendimento, o Tribunal de Contas da União, em acórdão razoavelmente recente (sessão de 13 de maio de 2020), no julgamento de representação apresentada por empresa que foi desqualificada em pregão eletrônico exatamente pela circunstância de que ora tratamos, considerou (o TCU) que é possível a participação de empresas em recuperação judicial em certames licitatórios, desde que demonstrada a viabilidade econômica e financeira da empresa. Disse mais a Corte de Contas: não se trata de vedar a exigência editalícia da certidão negativa de falência ou recuperação judicial, e sim a relativização durante a fase de julgamento, conforme o caso e as circunstâncias da fase do processo de recuperação judicial, cabendo à empresa em tal situação demonstra a sua viabilidade eletrônica (Processo TCU 037.266/2019-5).

Aliás, reconheça-se, merecidamente, que não é a primeira vez que o Tribunal de Contas da União assim decide. Com efeito, por ocasião do Acórdão 8.2711/2011, da 2ª Câmara (relatoria da lavra do Min. Aroldo Cedraz) a citada corte já havia proclamado que a jurisprudência do TCU converge para a admissão da participação de licitantes em recuperação judicial, desde que amparadas em certidão emitida pela instância judicial competente, que certifique que a interessada está apta econômica e financeira a participar de procedimento licitatório nos termos da lei 8.666/93.

Poder-se-ia destarte, encerrar as presentes linhas por aqui. No entanto, há um detalhe que vale à pena ainda discutir. Se então – aliás corretamente – é possível se admitir empresas em situação recuperacional em licitações e, por outro lado – também acertadamente – o ônus da prova de sua saúde financeira suficiente fica a seu cargo, a questão que remanesce, de natureza teórica e ordem prática é se saber de que forma ela (a empresa) deve se desincumbir de tal ônus probatório.

Um dos acórdãos do TCU acima aludidos menciona uma certidão emitida pela instância judicial competente, que certifique que a interessada está apta econômica e financeira a participar de procedimento licitatório nos termos da lei 8.666/93. Mas seria esta a única prova a ser aceita?

Logo de início, cremos que a matéria deve ser objeto das respectivas disposições editalícias. O edital deverá abordar o tema prevendo que espécie de documentos a Administração aceitará como tendentes a comprovar a rigidez financeira suficiente do ente empresarial, a despeito de estar imerso em uma recuperação judicial.

Evidente que não é possível se fazer aqui, em tese, uma lista numerus clausus de tais ou quais documentos. Mas, decerto, a referida certidão do juízo recuperacional não pode ser o único aceitável, até porque nada obriga o respectivo juízo a emiti-la, ainda que entenda pela saúde financeira da recuperanda. Por outro lado, no ambiente da recuperação judicial há outros atores de avultada importância, tais como o Comitê de Credores (este de existência facultativa), a Assembleia Geral de Credores, o Administrador Judicial bem como outras entidades que giram em torno do vértice recuperacional, como sociedades dedicadas a avaliação de ativos e passivos, etc.

Será necessário, portanto, um razoável conhecimento da matéria falimentar em geral para que os escultores do edital possam prever qual ou quais os documentos seriam aceitos para, uma vez analisados, seja pelo leiloeiro, seja pela comissão de licitação, demonstrarem a saúde financeira suficiente ou não da empresa recuperanda.

E é verdade também que se recomenda a devida cautela, porque uma eventual convolação em falência trará uma série de consequências absolutamente indesejáveis para o contrato. Medidas como a realização do ativo e liquidação poderão simplesmente impossibilitar a continuação da prestação de serviços ou fornecimento de produtos que seja objeto do contrato licitado.

Certo que é um desafio aos gestores, que devem buscar a correta assessoria para a tomada das decisões ora estudadas. Como assevera o chavão popular: cautela e caldo de galinha (...).

Tarsis N. S. Jorge
Doutor em Direito. Professor. Escritor.

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