No último artigo mencionei Jô Soares. Para não me repetir, reitero e referencio. A comédia de erros prossegue, lembrando-nos ainda da tristemente atual obra do jornalista Sérgio Porto que, sobre a alcunha de Stanislaw Pontepreta, escreveu “O Festival de Besteira que Assola o País”. FEBEAPA, para os mais perspicazes.
Vemos frequentemente pedidos para que seja invocado o artigo 142 da Constituição, que afirma que as Forças Armadas se destinam “à garantia dos poderes constitucionais”, para fim de atacar um dos citados poderes. Algo de absurdo tamanho que concordo com o leitor que é totalmente injustificado escrever sobre o assunto (digo isso cruzando os dedos e batendo na madeira).
O que vemos agora é um festival de declarações por membros do executivo, Ministério Público, do judiciário e da advocacia (felizmente minoritários em todos os grupos) no sentido de que lockdown é inconstitucional, exceto na vigência de estado de sítio, sendo uma violação do direito fundamental de ir e vir. Com pequenas variações (alguns falam de estado de defesa e de sítio, por exemplo) este é o núcleo dos argumentos.
Não sou o primeiro a escrever sobre isso. Não tem problema. O problema é que, desde já lamento, não serei o último. Somos um país, em época de copa do mundo, composto por 211 milhões de técnicos de futebol. Em época de Lava Jato, 211 milhões de processualistas penais. E em época de pandemia, 211 milhões de epidemiologistas, virologistas e constitucionalistas.
Pelo argumento, o direito de ir e vir só poderia ser cerceado em estado de sítio. Mas esquece-se que o direito de ir e vir é frequentemente cerceado por outros direitos. Como o da propriedade. Eu não tenho o direito de ir e vir dentro de sua casa. Não posso dirigir veículos sem habilitação. Não posso abandonar o local de um acidente. Até mesmo no Código de Trânsito Brasileiro há limitações do direito de ir e vir de pedestres. Exempli gratia, o artigo 68, §5°, que proíbe a utilização do acostamento por pedestres nas situações que especifica.
O argumento de que o direito de ir e vir só pode ser cerceado na vigência de estado de sítio não sobrevive sequer a uma análise cursória. Porém, o fato de não se absoluto, não quer dizer que não exista o direito fundamental e, havendo, deve ser considerado. É parte da Constituição, que é um sistema. Topologicamente, o direito de ir e vir está presente no artigo 5°, XV da Constituição. Mais do que isso decorre também de duas outras previsões. O direito à liberdade, presente no caput e o princípio da legalidade, presente no incido II, ambos do citado artigo.
Ressalta-se que o inciso II, ao indicar a lei como fonte de obrigações, não se restringe ao tipo legislativo da lei ordinária. Leis Complementares podem gerar obrigações ou restrições. Mas, mais importante, a própria Constituição, que não é lei no sentido estrito, pode impor obrigações de fazer ou não fazer. Esta, inclusive, é a origem do argumento, já que se afirma que a Constituição proibiria o lockdown. Nesse sentido:
O conceito de legalidade não faz referência a um tipo de norma específica, do ponto de vista estrutural, mas ao ordenamento jurídico em sentido material. É possível falar-se então em um bloco de legalidade ou de constitucionalidade que englobe tanto a lei como a Constituição. Lei, nessa conformação, significa norma jurídica, em sentido amplo, independentemente de sua forma. (MENDES; VALE, 2013)
Visto a possibilidade geral de limitação do direito de ir e vir fora o estado de sítio, observemos o caso concreto: a pandemia de Covid-19. Ou, mais precisamente, a Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, internalizada como Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional através da Portaria 188 de 3 de fevereiro de 2020 do Ministério da Saúde: “Declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV).”
A autoridade do Ministério da Saúde de emitir tal portaria decorre de suas atribuições constitucionais (artigo 87). E a declaração de emergência do Decreto 7.616 de 17 de novembro de 2011, que “Dispõe sobre a declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional - ESPIN e institui a Força Nacional do Sistema Único de Saúde - FN-SUS”.
O decreto, por sua vez, extrai a sua validade legislativa das leis nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 e nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993. Demonstrado está o DNA legal. Nessa última, em seu §4°, nota-se a afirmação de que “Ato do Poder Executivo disporá, para efeitos desta Lei, sobre a declaração de emergências em saúde pública” (Incluído pela Lei nº 12.314, de 2010).
Uma vez decretada a ESPIN, somos remetidos à Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que “Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”. Em seu artigo 3°, estão previstas medidas de enfrentamento que podem ser adotadas, entre elas isolamento e quarentena. Mais: as medidas podem ser adotadas pelos gestores locais de saúde.
Tal previsão é coerente com a Constituição (resposta certa), vez que a carta prevê a saúde, direito fundamental social (art. 6°), como competência da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Em se “cuidar da saúde”, competência comum (art. 23, II) e competência concorrente a sua defesa (art. 24, XII). Tais competências, na busca da efetividade máxima da Constituição, são o que permitem que um estado tenha regra mais rígidas, mas não menos, que a União. Ou que um município tenha regras mais rígidas, mas não menos, que o estado.
Mas há outro ponto, no mínimo tão importante: não há hierarquia das normas constitucionais. E um direito fundamental não pode excluir outro. Fosse assim, sob o argumento do direito de ir e vir eu poderia invadir a propriedade alheia, algo que não se discute. A saúde é um direito fundamental social, da mesma forma que o direito de ir e vir é um direito fundamental individual. Temos um fenômeno de colisão de princípios, ou choque de normas fundamentais, conflito normativo constitucional, ou qualquer outra expressão que se valha, a depender da teoria interpretativa que se adote. Seja por Alexy (tão citato e tão pouco compreendido), com sua ponderação (que não é princípio), seja por Dworkin ou mesmo pela Hermenêutica Filosófica, a resposta será a mesma: para se proteger a saúde pública, é possível limitação de direitos. Inclusive o de propriedade, lembrando que a Lei nº 13.979 prevê “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas”. O controle deverá ocorrer na fundamentação da decisão. Como afirma o §1° do artigo 3° do diploma:
As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública. (g.n.)
O lockdown não depende da Lei nº 13.979 e, consequentemente, as medidas possíveis não se limitam às nela previstas. Seu DNA está na Constituição. No “cuidar da saúde” e na sua defesa. A Lei n° 13.979, entretanto, não deixa de ser importante. Em primeiro lugar por demonstrar legalmente a possibilidade de limitações de diversos direitos, não apenas de ir e vir, como de propriedade, privacidade e autodeterminação. Mas, e este é o ponto nevrálgico da questão e do presente artigo: tais medidas só podem ser decretadas com base em evidências científicas. Como afirmou Carl Sagan, a ciência é uma vela na escuridão.
Antes do artigo 5° (ou do 6°) vem o artigo 3°, trazendo os Fundamentos da República e, entre eles, construir uma sociedade solidária e a promoção do bem de todos.
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MENDES, Gilmar F.; VALE, André R. do. Comentário ao artigo 5°, II . In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; ________ (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.