Migalhas de Peso

Narciso e o juiz

Dentre os amantes, o narcisista é o mais fiel: é incapaz de amar o outro. Nada pode se atravessar no entre ele e sua paixão.

22/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Conta a mitologia que Narciso, filho de deuses, era muito belo. Consultado por seus pais, o oráculo previu que o rapaz viveria por muitos anos, desde que não olhasse para seu próprio rosto. As mulheres o amavam dado a sua excepcional beleza. Narciso, arrogante e soberbo, as ignorava. Desprezadas, as mulheres pediram aos deuses que as vingasse. Nêmesis sentenciou que Narciso se apaixonaria pelo próprio reflexo. Com sede, ao se aproximar de uma lagoa para beber, Narciso se deparou com o próprio rosto, e por ele se apaixonou. Paralisado na contemplação de sua beleza, definhou e morreu. Nêmesis o transformou em uma flor, narciso.

Operadores de direito, juízes, advogados, promotores, delegados podem ser vítimas do narcisismo. No narcisismo, a grandeza do amor-próprio não permite o reconhecimento do outro. Dentre os amantes, o narcisista é o mais fiel: é incapaz de amar o outro. Nada pode se atravessar no entre ele e sua paixão. Carente – pois não consegue estabelecer relações de troca de afeto –, busca constantemente o amor dos outros, como recurso para fortalecer o amor-próprio. É personalidade egocêntrica, egoísta e ambiciosa. Ambiciona qualquer coisa que provoque admiração. A admiração alheia tem por única meta tonificar a própria.

O operador de direito com essas características pode representar um risco à coletividade. O juiz de índole conservadora, narcisista, pode fazer uso de seu cargo para abastecer o amor a si próprio. Para isso, uma estratégia é buscar o aplauso e o apoio das multidões. A multidão não é racional. É inconsciente grupal. Terry Pratchett, escritor inglês, dizia que a inteligência de uma criatura conhecida como multidão é igual à raiz quadrada do número de pessoas dentro dela. O indivíduo, na multidão, abre mão de sua personalidade e adere à identidade coletiva, uma identidade inferior, da espécie, animal. A multidão é sempre punitivista, porquanto a notícia de crime é ameaça para a espécie. Irracional, a inconsciência não distingue notícia de delito com o próprio delito. Maquiavel já aconselhava ao príncipe buscar legitimidade nas multidões quando quisesse burlar leis e normas das instituições. Alguém comentou que a multidão é a mãe de todos os tiranos. Buscar legitimidade perante o povo é estratégia antiga de tiranos.

Para o narcisista só o que importa é a sua ambição, a qual, de alguma maneira, irá reforçar seu amor-próprio. Como sua carência afetiva é ilimitada, seu projeto é macromaníaco. Sendo juiz, poderá se tornar populista, buscando legitimidade nos gritos das multidões. Elas lhe protegerão para que possa atropelar leis e instituições quando no rumo de seus objetivos.

As instituições e seus órgãos correcionais devem sempre ficar atentos quando a cabeça de Narciso desponta na janela. Deve ser decepada imediatamente. Na vacilação, o tempo que restar poderá não ser suficiente para evitar catástrofes institucionais. Depois será tarde. Cumpre a sistema impedir o juiz de se travestir de notícia para inaugurar e liderar cruzadas contra o Mal.

Flavio Meirelles Medeiros
Advogado e palestrante. Autor da obra Código de Processo Penal: https://flaviomeirellesmedeiros.com.br/

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