Rememoro, aqui (clique aqui), texto de minha autoria, que fora publicado em Migalhas no dia 10/3/21. Nesse texto defendi a inconstitucionalidade da decretação, pelo governador do Distrito Federal (DF), do “Toque de Recolher”. Aliás, em abril de 2020, defendi a inconstitucionalidade/ilegalidade de decretos restritivos expedidos pelo mesmo governador do DF, no início da pandemia de covid-19, que limitaram o exercício de atividades econômicas e o próprio direito social ao trabalho (clique aqui).
A partir da leitura da petição inicial na ADPF 806/STF (clique aqui), ajuizada em 16/3/21, fortifiquei minha opinião jurídica no sentido de que, realmente, governadores e prefeitos não possuem competências constitucional e legal para decretar fechamentos regionais e locais. Essas restrições, especialmente aquelas limitativas de trânsito/circulação de pessoas, são das estritas competências da Presidência da República e do Congresso Nacional, mais especificamente, no caso de decretação de Estado de Sítio.
E, em se tratando de restrições excepcionalíssimas, estas somente podem ter amparo na Constituição Federal, que é o documento jurídico por excelência apto a preconizar regras aplicáveis a toda e qualquer anomalia social e institucional. Ademais, a própria Lei especial da Pandemia, aqui no Brasil (lei 13.979/20), não autoriza governadores e prefeitos a [I] determinarem o fechamento de comércio, [II] a inviabilizarem o livre exercício do direito ao trabalho, [III] menos ainda a determinarem “Toque de Recolher” ou restringirem o trânsito intraterritorial de pessoas. E mesmo que assim fosse permitido, medida de direito e de justiça cabível seria a declaração formal de inconstitucionalidade dessas eventuais previsões, pela via das autoridades judiciárias competentes, seja em caráter concentrado, seja em caráter incidental.
A referida lei 13.979/20 dispõe que, medidas de isolamento e quarentena são dirigidas, por exemplo, à separação de pessoas contaminadas e suspeitas de contaminação pelo vírus da covid-19. Não trata, por óbvio, da possibilidade de determinação de “isolamento social coletivo”, menos ainda do fechamento da economia nacional que, indubitavelmente, é um dos mais relevantes e caros fundamentos da República brasileira, base do capitalismo e dos demais aspectos socialistas contidos em nossa Constituição Federal de 1988.
Dura lex, sed lex: a Lei é dura, porém é a Lei! Se a Constituição e as leis primárias não permitem ao gestor executivo regional ou municipal decretar tais medidas restritivas, paciência (!), pois é a lei, e assim não podem atuar, mesmo que ao “nobre pretexto” de estarem a salvar vidas, como gosta de professar um dos mais expressivos e performáticos governadores estaduais da atualidade.
E mais: no tocante a estados-membros e DF, que sabidamente, à luz do pacto federativo, mais possuem competências residuais em face das inúmeras que não são elencadas expressamente a municípios e à União, soa estranho que medidas das mais extremas estejam sendo tomadas por muitos governadores Brasil afora. A federação brasileira está “bagunçada”, e digo “bagunçada” porque estamos a experimentar uma indevida supremacia de governantes regionais e locais, ao público e notório arrepio da Constituição e das Leis. Lembro que a “forma federativa de Estado” é cláusula pétrea, e toda qualquer tendência ao rompimento dessa forma de organização estatal, seja por meio de proposta de Emenda Constitucional ou de ato administrativo normativo-concreto, com indícios de prática de atos de secessão por parte de governos regionais e locais, há de ser energicamente (dentro dos meios jurídicos) expurgada pelas autoridades competentes e pela própria sociedade.
A ADPF 806, distribuída por prevenção ao eminente ministro Marco Aurélio, é uma excelente oportunidade para o STF debruçar-se sobre as questões jurídicas suscitadas pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e empreender, ao fim, interpretação e decisão harmônica ao pacto federativo e, especialmente, à prevalência dos direitos individuais fundamentais (art. 5º da Constituição), notadamente o direito à liberdade de ir, vir e permanecer, de forma a determinar a nulidade de todo e qualquer decreto restritivo de atividades econômicas e com determinações de “Toque de Recolher”.
A ADIn 6.341, também relatada pelo ministro Marco Aurélio, outrora julgada pelo STF, não autorizou, como se professa por aí, que estados, municípios e DF restrinjam direitos fundamentais em prol do combate ao vírus da covid-19. Pelo contrário, disse sobre a concorrência de medidas, com atuação do poder central, mas jamais autorizou estados, municípios e DF a superarem os limites postos pela Constituição Federal de 1988. Creio que a ADPF 806 será muito bem-sucedida e que o STF declarará a inconstitucionalidade das medidas (restritivas) regionais e locais adotadas, o que se dará em franco respeito à Constituição e ao preceito fundamental da liberdade de ir, vir e permanecer.
Vale destacar que, somadas às duas ações acima, o presidente da República, na live do dia 18/3/21, informou à nação que ajuizou ADIn (número ainda desconhecido pra mim) para obstar alguns decretos regionais/locais restritivos, ou seja, há uma batalha jurídica aberta destinada a impedir o ímpeto opressor à nossa Constituição Federal, que, pública notoriamente, advém de atos regionais e locais além dos limites da ordem jurídica brasileira.
Dura lex, sed lex, mais uma vez: a Lei é dura, porém é a Lei! Governadores e prefeitos atuam (devem atuar) nos exatos e estreitos limites da ordem jurídica primária. Decretos estaduais, municipais e distrital apenas regulamentam (devem regulamentar) a aplicação da lei primária pela Administração Pública, jamais ditam limitações indevidas a garantias constitucionais individuais declaradas e proclamadas pelo Poder Constituinte Originário, que, ademais, é a própria materialização do povo brasileiro, o verdadeiro titular do Poder.
Senhores Governadores e prefeitos, olhos atentos à Constituição e às Leis primárias da República. Esse é o compromisso primeiro de Vossas Excelências e a ferramenta única para resolver situações normais e anormais. Que o Direito os salve e clareie vossos olhos para essa tamanha cegueira jurídica que grande parte do povo brasileiro está a ver. Com fundamento no preâmbulo da Constituição, apesar da laicidade do Estado brasileiro, que Deus, nosso senhor e salvador, abençoe a vida de vossas excelência e de todos os brasileiros.