Migalhas de Peso

O reflexo da arbitragem na falta de jurisprudência em Direito Societário

De acordo com o art. 3º, CPC, não conflitam com a garantia de acesso à justiça a previsão da arbitragem e a promoção estatal da solução consensual de conflitos.

15/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

Tida como uma das fontes do direito brasileiro, a jurisprudência corrobora para a uniformização de decisões que tratam de mesma temática no país. No entanto, em matéria de direito empresarial, principalmente as grandes empresas, estão migrando do Poder Judiciário para a autocomposição (mediação, conciliação e arbitragem). Esta última, especificamente, como regra, não divulga para a população a decisão final do dissídio, tampouco é capaz de criar jurisprudência. O que impossibilita que outros empreendedores com os mesmos problemas e diferentes condições financeiras tenham resultados diferentes para o seu problema.

De acordo com o art. 3º, CPC, não conflitam com a garantia de acesso à justiça a previsão da arbitragem e a promoção estatal da solução consensual de conflitos. Para Humberto Theodoro Júnior, "na verdade, a sentença arbitral, em nosso sistema jurídico vigente, nem mesmo pode ser vista como um sucedâneo do provimento judicial. É ela mesma erigida à categoria de título judicial, para todos os efeitos"1. Talvez a publicidade de sentenças de Câmaras arbitrais, sem a divulgação de nomes e características que individualizam e identificam a causa, possam reduzir esse impacto do esvaziamento de ações societárias e suas respectivas jurisprudências, do Poder Judiciário. Pois nem sempre é possível fazer o inverso, aderir à autocomposição. A Câmara de Arbitragem, Mediação e Conciliação do Centro das Indústrias do Rio Grande do Sul (CIERGS), em Porto Alegre no Rio Grande do Sul, tem o valor dos honorários do árbitro estipulados em R$400,00 a hora2. O que não é uma realidade para todo empreendedor.

Sobre a jurisprudência, sua importância no ordenamento jurídico, de acordo com os doutrinadores de direito processual civil, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero, é como segue abaixo.

Tradicionalmente, a jurisprudência consubstancia-se na atividade de interpretação da lei desempenhada pelas cortes para solução de casos, cuja, múltipla reiteração gera a uniformidade capaz de servir de parâmetro de controle, não gozando de autoridade formalmente vinculante3.

Ou seja, pode-se extrair do trecho acima que se trata de uniformizar decisões que tratam do mesmo assunto e não existe caráter vinculante, diferentemente de súmulas vinculantes e do precedente. Evita que duas pessoas com o mesmo problema tenham resultados diversos apenas porque ingressaram em varas judiciais distintas. No entanto, quanto a processos judiciais e arbitragens a diferença é o direito à publicidade dos atos. Arbitragem é um dos meios de autocomposição citados pelo Código de Processo Civil, no seu artigo 3º, § 1º (CPC/2015) e regulamentada pela lei 9.307/96 (também conhecida como a Lei de arbitragem). Conforme ensina Elpídio Donizetti, denomina-se "Julgamento do litígio por terceiro imparcial', escolhido pelas partes. É, tal qual a jurisdição, espécie de heterocomposição de conflitos, que se desenvolve mediante trâmites mais simplificados e menos formais do que o processo jurisdicional"4. A filosofia da arbitragem, como refere Arenhart, é a seguinte.

A arbitragem surge como forma alternativa de resolução dos conflitos, colocada ao lado da jurisdição tradicional. Sua tônica está na tentativa de ladear o formalismo – muitas vezes exagerado – do processo tradicional, procurando mecanismos mais ágil para a resolução dos problemas. Mais que isso, a arbitragem pode representar caminho para solução mais adequada para muitas situações concretas de litígio. Com efeito, o fato de que o árbitro pode ser pessoa de outra área, que não a jurídica, pode contribuir para que se obtenha decisão mais adequada e com maior precisão. Realmente, em temas que exigem conhecimento específico em determinada área, será em regra muito mais apropriada uma decisão proferida por um especialista naquele campo do conhecimento, do que por um juiz, que – ainda quando auxiliado por um perito – não detém o conhecimento aprofundado a respeito do tema, ou não conhece de particularidades e práticas de determinada situação concreta.5

Além do que foi ilustrado acima, não há a obrigatoriedade de o árbitro ser um juiz togado, possibilitando uma melhor precisão no julgamento de assuntos que necessitem de um especialista. Os requisitos são apenas dois: o árbitro ser pessoa capaz e da confiança das partes (art. 13 da lei 9.307/96). No mais, caracteriza-se por permitir como objeto do conflito apenas assuntos patrimoniais disponíveis e partes com capacidade (art. 1º da lei 9.307/96). Poderão "escolher as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública" (art. 2º, § 1º, lei 9.307/96), além de possuir o CPC como lei subsidiária. Membros do Poder Judiciário brasileiro reconhecem as suas vantagens.

Para o ex-conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), especialista na Lei de Arbitragem e advogado, Marcelo Nobre, o diferencial do Brasil foi equiparar o árbitro ao juiz togado. O árbitro, segundo ele, pode ser muito mais próximo da parte técnica e ter um entendimento mais profundo sobre o tema. Nobre afirma que a arbitragem retira do Judiciário matérias muito complexas e específicas, cuja análise tomaria tempo excessivo dos julgadores, mas no sistema arbitral podem ser resolvidas em menos de um ano. Outro ponto positivo é o tratamento dado a questões que envolvem empresas estrangeiras e ordenamentos jurídicos de outros países, que poderiam gerar "intermináveis polêmicas".6

Possui boa aceitabilidade dos que trabalham e a utilizam. Em pesquisa feita pelo Comitê Brasileiro de Arbitragem em parceria com o Instituto IPSOS, 73% (setenta e três por cento) das pessoas reconhecem uma maior celeridade em comparação ao processo judicial na resolução do conflito. E 13% (treze por cento) dos usuários desse mecanismo lastimam pelo fato de as decisões não serem divulgadas7. O que existe é o envio da sentença apenas para as partes do processo, conforme art. 29 da lei 9.307/96, e nada mais. Isso ocorre, pois a arbitragem não contempla o princípio da publicidade, em face do erário. Exceto quando a demanda envolver a administração pública (art. 1º, § 3º, Lei de arbitragem). Algumas sentenças arbitrais são confirmadas ou modificadas por juízes de direito. Então, nesses casos existe a publicação do resultado da lide. Como segue abaixo em um julgamento de Recurso Especial.

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. ARBITRAGEM. NULIDADE DE COMPROMISSO ARBITRAL E DE SENTENÇA ARBITRAL. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU ERRO MATERIAL. AUSÊNCIA. VALOR DA CAUSA. IMPUGNAÇÃO. MENSURAÇÃO DO CONTEÚDO ECONÔMICO. CONDENAÇÃO EM SENTENÇA ARBITRAL. POSSIBILIDADE. 1. Agravo de instrumento interposto em 25/09/2015. Recurso especial interposto em 17/05/2016 é atribuído a este Gabinete em 23/05/2017. 2. O propósito recursal consiste em determinar qual deve ser o valor da causa em hipóteses de ação declaratória de nulidade de sentença arbitral, ajuizada com fundamento no art. 33 da lei 9.307/96. 3. A legislação brasileira sobre arbitragem estabelece uma precedência temporal ao procedimento arbitral, permitindo que seja franqueado o acesso ao Poder Judiciário somente após a edição de sentença arbitral. Precedentes. 4. A jurisprudência desta Corte superior, há algum tempo, está orientada no sentido de afirmar que "o valor da causa, inclusive nas ações declaratórias, deve corresponder, em princípio, ao do seu conteúdo econômico, considerado como tal o valor do benefício econômico que a autora pretende obter com a demanda" (REsp 642.488/DF, Primeira Turma, DJ 28/09/2006, p. 193). 5. Na hipótese dos autos, não há óbice jurídico algum para que a condenação contida na sentença arbitral seja considerada como parâmetro para a definição do valor da causa. 6. Recurso especial conhecido e não provido. STJ - RESP 1704551 / SP 2017/0091244-2, Data do Julgamento:02/04/2019. Data da Publicação:04/04/2019 Órgão Julgador: T3- TERCEIRA TURMA Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI (1118)

Como demonstrado, apesar de possuir a mesma eficácia de decisão terminativa dada por um juiz de direito (art. 31, Lei de arbitragem) existe essa possibilidade, de reforma, por meio do processo judicial, de uma decisão proferida em convenção arbitral. "A parte interessada poderá pleitear ao órgão do Poder Judiciário competente a declaração de nulidade da sentença arbitral, nos casos previstos nesta lei". Esta é a redação dada pelo art. 33 da mesma lei de arbitragem. Logo, existe uma hipótese para se conseguir jurisprudência originada em autocomposição. Além daquelas envolvendo a Administração Pública, que consta no art. 1º da Lei 9.307/96. Mas privar a sociedade de informações ao procedimento arbitral não seria violar o que determina o art. 926, CPC que possui a seguinte redação. "Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente". E levando em conta a subsidiariedade do CPC em relação a arbitragem. Há um confronto entre o Princípio da autonomia da vontade e o sigilo que rege a autocomposição. E se houvesse divulgação da decisão apenas das partes que assim desejassem? Inclusive para garantirem que teriam a mesma decisão em futuras lides de mesmo teor, além de formar jurisprudência no ramo do direito empresarial. O que para a arbitragem não seria de vinculação obrigatória, já que escolher quais as fontes do direito aplicarão no processo. Todavia, para as ações judiciais, o leque de jurisprudência seria ainda maior e unificado.

O presente questionamento sobre a falta de jurisprudência em face de grandes demandas migrando para a arbitragem, como método de resolução de conflito, se faz necessário. Principalmente em matéria de direito empresarial, pois empresas de grande porte, em razão da celeridade, privacidade e bom conhecimento de causa dos árbitros, estão deixando de ingressar com processos judiciais e estão aderindo a autocomposição. Mas não se deve esquecer que empresas de menores estruturas necessitam de igual atenção e boas decisões, além de não receberem julgamentos diversos, o que a jurisprudência tenta evitar. A ideia de criar jurisprudência em casos autorizados é uma sugestão de aperfeiçoamento, sempre válida no ramo do direito.

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1- THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 58. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. 75 p. (Volume 1).

2- CÂMARA DE ARBITRAGEM, MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO DO CIERGS: CUSTAS E HONORÁRIOS DOS ÁRBITROS. Porto Alegre: CAMERS, 2020. p 1. Disponível aqui. Acesso em: 25 jun. 2020

3- MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. 644 p. (Volume 2).

4- DONIZETTI, Elpídio (Brasil). Gen Jurídico. Entenda o conceito de Arbitragem. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 25 jun. 2020.

5- ARENHART, Sérgio Cruz. Breves Observações Sobre o Procedimento Arbitral. Academia Brasileira de Direito Civil. Disponível aquiAcesso em: 25 jun. 2020.

6- Comitê Brasileiro de Arbitragem. Conjur – "Jurisprudência do STJ consolida a arbitragem no Brasil". Com informações da Assessoria de Imprensa do Superior Tribunal de Justiça. Disponível aqui. Acesso em: 25 jun. 2020.

7- Comitê Brasileiro de Arbitragem em parceria com o Instituto IPSOS. Arbitragem no Brasil. São Paulo. 2012. 27 p. Relatório elaborado por André de Albuquerque Cavalcanti Abbud (Doutor e Mestre em Direito pela USP e LL.M. pela Harvard Law School), em nome da Diretoria do CBAr. Disponível aqui. Acesso em: 24 maio 2020.

Rafaela Laureano Pocai
Estudante de direito pela Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre, cursando o 10º semestre e faz estágio no escritório de direito empresarial, Battello & Artifon Advogados Associados. Também participou de dois projetos de iniciação científica sobre direito empresarial e já palestrou na Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre e na Universidade de Maimónides em Buenos Aires, em ambas com os seguintes trabalhos, "As empresas com responsabilidades socioambientais: As empresas B" e "Startups, incubadoras e aceleradoras e o seu regime jurídico".

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