Migalhas de Peso

Controle judicial posterior pode ser possibilidade de se aprimorar o alcance da inconstitucionalidade da tese de “legítima defesa da honra”

A tese de “legítima defesa da honra”, assim como outras teses igualmente não harmônicas com a Constituição por se basearem exclusivamente em ódio ou intolerância, deve ser repelida incansavelmente até o momento em que se torne um defeito social erradicado.

15/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

Obteve grande repercussão a decisão cautelar proferida pelo ministro Dias Toffoli, relator, nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 779/DF), reconhecendo como inconstitucional a tese da “legítima defesa da honra”, excluindo-a, inclusive, da abrangência da excludente de ilicitude da legítima defesa. Em resumo, naquele feito foi concedida parcialmente a liminar requerida pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) para: “(I) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF); (II) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência, (III) obstar à defesa que sustente, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como no julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento” (grifo nosso). No último dia 11 de março, o Supremo Tribunal Federal formou maioria para referendar a decisão monocrática do ministro relator.

Não me debruçarei sobre a pertinência do entendimento no sentido de que a referida tese, tantas vezes suscitadas especialmente em décadas passadas durante sessões plenárias perante o Tribunal do Júri (como no notório “Caso Doca Street”), na medida em que, de fato, se trata de discurso retórico incompatível com diversos direitos fundamentais e dispositivos da Carta Constitucional de 1988 (sem mencionar, sob o plano moral, a repulsa da sociedade quanto ao conteúdo em si dessa linha de argumentação). Certamente, o entendimento capitaneado pelo ministro Dias Toffoli, já ratificado pela maioria do STF, semeia mais benefícios do que malefícios à sociedade (proporcionalidade stricto sensu) e, claro, reforça o compromisso estatal na proteção à mulher contra o machismo estrutural ainda tão presente.

Ampliando a análise da decisão, ouso refletir, correndo o risco natural de não ser compreendido pelo leitor, se tal entendimento não tem o potencial de ser aprimorado para se evitar o esvaziamento da plenitude de defesa de acusados que não se arrimem nessa tese odiosa, caso aplicado como controle judicial de constitucionalidade a ser feito posteriormente ao julgamento popular, ao invés de ser aplicado como uma vedação prévia de argumentação desde o começo do processo. Reflete-se sobre esse questionamento considerando o conteúdo da parte dispositiva da decisão do ministro Dias Toffoli, especialmente no item “III” (destacado no início deste trabalho), e suas possíveis consequências práticas diante de outras teses defensivas plenamente sustentáveis perante o Tribunal do Júri, e compatíveis com a Constituição e a plenitude de defesa.

O artigo 121, § 1º, do Código Penal, prevê que “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”. Considerando que a decisão proferida pelo Ministro Relator também se destina à “obstar à defesa que sustente, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese”, questiona-se como, do ponto de vista prático, seria possível sustentar o “domínio de violenta emoção” sem resvalar, ainda que “indiretamente”, na tese de legítima defesa da honra, como no exemplo clássico de doutrina consistente no cônjuge que ao chegar em casa surpreende a companheira em ato sexual com um amante e, em razão disso, pratica o crime de homicídio naquele contexto.

Igualmente, e agora sob o enfoque das qualificadoras, pondera-se como, também do ponto de vista prático, seria possível argumentar o afastamento da qualificadora do motivo fútil em decorrência de ciúmes, ou o descabimento da qualificadora do motivo torpe ocasionada por discussão excessivamente acalorada entre o casal, sem afrontar, mesmo que “indiretamente”, o entendimento inicialmente exarado pelo ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal.

Veja, em nenhum desses exemplos está a se admitir como causa justificadora a ““honra do agressor”” (aspas dobradas para enfatizar o descabimento do discurso). Tampouco se está admitir a justificativa do reconhecimento do privilégio legal ou do afastamento de uma qualificadora a partir da tese repelida do nosso sistema jurídico pela maioria do STF. Até porque, em todos esses exemplos a prática do homicídio seria reconhecida. Entretanto, são linhas de argumentação que, inevitavelmente, apresentam código genético mais próximo da tese da “legítima defesa da honra”.

Possivelmente essa inevitabilidade decorra da forte presença da emoção, paixão e sensibilidade dos nervos nos julgamentos submetidos ao Tribunal do Júri. E feitas essas ponderações, reflete-se sobre a potencial problemática prática de a decisão proferida nos autos da ADPF 779/DF produzir efeitos de “obstar” outras teses defensivas plenamente sustentáveis durante o processo afeito ao procedimento do Júri, o que poderia esvaziar, sem justo motivo, a plenitude de defesa (que, não custa lembrar, possui maior envergadura e densidade do que a ampla defesa, conforme bem argumenta o professor Guilherme de Souza Nucci1). Portanto, “obstar” (impossibilidade prévia de uma ação) a Defesa Técnica a não sustentar, durante todo o processo, teses que se conectem “direta ou indiretamente, com a legítima defesa da honra”, pode produzir efeitos práticos não tão positivos.

Por essas razões é que se questiona se o alvissareiro entendimento ratificado pela maioria do STF não pode ser aprimorado se acaso uso da inconstitucional tese de “legítima defesa da honra” fosse analisado somente após a realização da sessão plenária (juízo a posteriori). Aqui, traço tortamente o seguinte paralelo: a liberdade de expressão não é direito fundamental absoluto. Entretanto, parece haver um consenso social de que é mais benéfico à sociedade democrática que a análise sobre eventuais excessos seja feita em controle judicial posterior à manifestação realizada – e quando casuisticamente forem constatados os excessos, que sejam reprimidos –, do que se previamente fossem estabelecidas censuras prévias com relação a conteúdos de discursos, manifestações, pensamentos etc. Ou seja, e retomando ao assunto principal, talvez haja uma alternativa para se manter a inconstitucionalidade da tese odiosa sem esvaziar, desnecessariamente, o alcance da plenitude de defesa de outros acusados que serão julgados perante o Tribunal do Júri.

Importante notar que vários são os mecanismos já previstos em lei para que a “legítima defesa da honra” não prospere. O Código Penal é expresso no sentido de que a emoção e paixão não excluem a imputabilidade penal (artigo 28, inciso I); desde a resposta à acusação apresentada pela Defesa Técnica, haverá um Juiz para acolher ou rejeitar as alegações defensivas, o que poderá ainda ocorrer por outros três órgãos colegiados (Tribunal Estadual e os Tribunais Superiores) antes de o mérito ser julgado pelo Tribunal do Júri; sempre haverá o representante do Ministério Público, na qualidade de titular privativo da acusação durante o processo, para contestar e rebater os argumentos defensivos e até mesmo tomar providências mais enérgicas em caso de excessos ou abusos do direito de defesa; os debates orais durante o julgamento popular são constituídos por manifestações da defesa e, claro, da acusação, sempre a sob a presidência de um Juiz que poderá intervir para evitar que os jurados sejam manipulados por indevidos artifícios retóricos ou por distorções dos conteúdos das provas por parte de qualquer dos debatedores. Portanto, significa dizer que somente após diversas barreiras de controle é que a tese da “legítima defesa da honra” poderá prosperar e, se acaso ultrapassada cada uma dessas fortalezas, ainda haverá três oportunidades para anular o julgamento no qual prosperou a tese inconstitucional, não havendo, durante todas as etapas até a finalização do julgamento popular, o risco de esvaziamento da plenitude de defesa de outros réus em outros processos submetidos ao Tribunal do Júri.

Inclusive, defende-se este controle judicial de legalidade em caráter posterior também para outras linhas de defesas não compatíveis com a Constitucional Federal. Afinal, parecem ser também recomendáveis a anulação dos julgamentos nos quais a absolvição decorrer de “teses de defesa” consistentes em sustentar em plenário que o Policial, réu, “não deve ser responsabilizado por assassinar a vítima, ladrão, porque ladrão não é gente”, ou que o réu, adepto de determinada ideologia política, “deve ser absolvido porque a vítima era um ‘esquerdista’ ou um ‘direitista”, para ficar somente nesses exemplos de discursos de ódio e intolerância travestidos de “teses de defesa”.  É dizer, também, que não é preciso esperar por novas decisões da Suprema Corte, em sede de outras ADPFs, para que os tribunais possam, desde já, realizar casuisticamente o controle de legalidade e o (des)amparo constitucional dessas “linhas de defesa”.

A tese de “legítima defesa da honra”, assim como outras teses igualmente não harmônicas com a Constituição por se basearem exclusivamente em ódio ou intolerância, deve ser repelida incansavelmente até o momento em que se torne um defeito social erradicado, sendo, possivelmente, mais recomendável que o controle judicial aconteça posteriormente ao julgamento perante o Tribunal do Júri no processo em que a tese odiosa prevalecer, sem que a Defesa Técnica seja obstada de qualquer linha de defesa antes do julgamento popular, garantindo-se assim, além do compromisso estatal de proteção à mulher, que a plenitude de defesa dos demais acusados não corra o risco de ser esvaziada desnecessariamente.

_________

1 Manual de Processo Penal e Execução Penal, 3ª ed. rev. atual. e ampl., São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 2007, pg. 79.

Rafael Valentini
Pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Membro da Associação de Advogados de São Paulo - AASP. Sócio do escritório Fachini, Valentini e Ferraris Advogados.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024

Transtornos de comportamento e déficit de atenção em crianças

17/11/2024

Prisão preventiva, duração razoável do processo e alguns cenários

18/11/2024