Migalhas de Peso

Ao interesse público, privado e político

A já insuperável conciliação de ambições das sociedades de economia mista e a nova jabuticaba brasileira.

12/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

Por todas as décadas em que a dogmática econômica e a jurídica caminharam juntas na tentativa de solucionar o problema da atuação do Estado na economia, muitas soluções desinteressantes foram testadas. Talvez a mais notável delas, que se desenvolveu e ganhou força no pós-guerra alemão do início do século XX, seja a sociedade de economia mista. Permeado por controvérsias, o tema tornou-se ponto central de importantes debates ao longo dos anos, visto que muitos duvidavam da possibilidade de se conciliar efetivamente o interesse do ente público com o de organizações privadas.

Ainda assim, como é forçoso daquele que carrega no DNA o hábito de complicar situações já enredadas, o Brasil logrou êxito em adicionar um peculiar ponto à discussão. Ao indicar um militar subqualificado para o comando da Petrobrás, o Presidente Bolsonaro pode ter feito o improvável e introduzido um forte candidato à ponto final do extenso debate. Mais de cem anos depois das primeiras Kriegsgesellschaften, parece cada vez mais forte a conclusão de que o modelo das S.E.M. não apresenta a menor possibilidade de dar certo; especialmente quando o acionista controlador – leia-se o Estado – usa de sua posição para forçar questões político-ideológicas numa empresa bilionária.

Por mais que sejam diversos os exemplos de sociedades de economia mista na história brasileira, é imperioso ressaltar que o instituto não obteve o mesmo destaque no cenário internacional. Uma breve recorrida ao direito comparado dos principais centros industriais do mundo é capaz de iluminar ressalvas e descrenças com tal modelo de parceria econômica.

A figura consagrada no artigo 4º da lei 13.303/16 foi ferozmente rechaçada pela doutrina dos países de língua inglesa, que enxergavam uma impossibilidade principiológica na conciliação dos interesses envolvidos. Nesse sentido, as mixed corporations representavam um insolúvel conflito entre o capitalista individual que objetivava o lucro e o ente estatal, que visava, em tese, salvaguardar a coletividade. Batson, autor da segunda tese inglesa na Conferência de Antuérpia da União Internacional de Cidades, caracterizava tal situação como uma "oposição inevitável"1.

Na mesma linha, o teórico americano John Thurston sustentava que "qualquer tentativa para as combinar, (...), provavelmente resultará num conflito de interesses que produzirá resultados indesejáveis"2. Tal posição foi a base da doutrina majoritária, tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra que, como bem lembra Bilac Pinto, nunca acolheram efetivamente o instituto das sociedades de economia mista, tendo apostado na criação das Public Corporations como solução definitiva3.

Similarmente, a doutrina jurídico-econômica francesa também não poupou críticas ao instituto. Segundo Roger Kaeppelin, em Le systeme dit "d' économie mixte" dans les entreprises publiques en Allemagne, o ponto fundamental da discussão refere-se ao fato de que as sociedades de economia mista não são assentadas sobre o elemento indispensável da confiança recíproca, de forma que, para ambas as partes, a união contratada apresenta-se meramente transitória. Na mesma linha, outros teóricos como Raymond Racine chamaram atenção para a incompatibilidade de objetivos que pode surgir desse modelo de parceria, ecoando as ressalvas inglesas da década de 19204.

Na contramão das experiências mencionadas, o Brasil adotou o instituto das sociedades de economia mista com bastante entusiasmo, sobretudo como uma forma de manter uma postura estatizante num cenário que pedia medidas liberais. Ainda assim, as controvérsias não restaram pacificadas e a história nacional acumulou diversos episódios de embates entre os interesses público e privado, especialmente quanto a prerrogativas do acionista controlador.

Por tal motivo foi editada, em 2016, a lei 13.303, conhecida como Lei das Estatais, que regulou a participação do Estado na economia e estabeleceu parâmetros de gestão e compliance para equiparar as empresas em controle público às diretrizes empresariais internacionais, numa tentativa de resguardar os interesses financeiros dos acionistas minoritários e apaziguar embates recentes, principalmente com relação às políticas de preço das companhias. Contudo, quando confrontado com a realidade, tal instrumento normativo pode ter obtido êxito em conferir uma certa, porém limitada, segurança jurídica, mas não se mostrou suficientemente forte para solucionar o insolúvel.

Numa perversa forma de inovação, o governo brasileiro mostrou à doutrina internacional que a discussão não se limita apenas ao embate secular entre o interesse público e privado; as sociedades de economia mista são, também, campo para disputas político-ideológicas. Ao indicar o General Silva e Luna para o posto mais alto da administração da Petrobrás e destituir, discricionariamente, Roberto Castello Branco após um trimestre de faturamento recorde, o Presidente Bolsonaro não só feriu o artigo 17 da lei 13.303/16 e atropelou decisão do conselho da empresa como também elucidou como as S.E.M. funcionam na prática.

Tal decisão, ainda que contestável e até mesmo revogável, contribuiu para o derretimento das ações da companhia, ocasionando um prejuízo da ordem de R$ 100 bi5. Por se tratar de ato ilegal praticado com abuso de poder por acionista controlador que gerou perdas consideráveis aos minoritários, diversos investidores norte-americanos já preparam class actions que podem se tornar um segundo capítulo do caso Pasadena.

Nessa linha, com a intenção do Governo Federal em levar os Correios para o regime de sociedade de economia mista formalizada em PL já apresentado à Câmara, a discussão sobre a viabilidade de tal modelo parece mais importante do que nunca. A história mostra que os interesses privados e os objetivos estatais são diametralmente opostos e que tal sistema não parece capaz, a não ser excepcionalmente, de produzir resultados satisfatórios. Combinando esse emaranhado de visões, vontades e ambições com uma gestão político-ideológica que se utiliza de empresas bilionárias para propaganda idealística, a ruína se apresenta cada vez mais como destino natural.

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1- Apud José Giron Tena, Las Sociedades de Economia Mixta, Madri, 1942, p. 130.

2- John Thursron, Government Proprietacy Corporations in the English-Speaking Countries, Harvard University Press, 1937, p. 274.

3- Bilac Pinto, O Declínio das Sociedades de Economia Mista e o Advento das Modernas Empresas Públicas.

4- Raymond Racine, Au Service des Nacionalisations - L'entreprise privée.

5- Com tombo das ações da Petrobras, Bolsa tem maior queda em um ano. Disponível aqui.

Gustavo Bayum de Paiva
Advogado de Empresas. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Pós-Graduando em Direito de Empresas pela PUC-Rio.

Marina M. J. de Andrade
Advogada de Empresas. Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.

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