Migalhas de Peso

Dos limites de aplicação da regra limitativa contida no inciso I, do art. 83 da lei de recuperações judiciais e falência

Inaplicabilidade ao concurso de credores envolvendo devedores solventes.

12/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

O objetivo do presente estudo é analisar a literalidade da lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005 (Lei de Recuperações Judiciais e Falência), em consonância com o entendimento jurisprudencial firmado pelos Tribunais Pátrios, e definir os limites de aplicação da regra descrita no inciso I, do art. 83 da referida lei.

Analisaremos os limites de aplicação da regra descrita no inciso I, do art. 83, da Lei de Recuperações Judiciais e Falência, dentro da própria legislação falimentar, destacando a sua inaplicabilidade a concursos de credores relacionados a devedores solventes, regidos pelos artigos 904 a 909 do Código de Processo Civil, assim como pela impossibilidade de aplicação da analogia, uma vez que as situações são distintas e inconfundíveis.

O presente estudo se fez necessário, tendo em vista o entendimento – ao nosso ver, com o devido respeito, equivocado – que vem sendo aplicado por uma minoria de Magistrados, que admite, através de interpretações analógicas, a extensão da regra limitativa prevista no art. 83, inciso I, da lei 11.101/05, ao concurso de credores singular, regido exclusivamente pelo Código de Processo Civil.

Incialmente, é importante registrar que a regra limitativa que cria teto de pagamento dos créditos trabalhistas, encontra-se geograficamente prevista no “Capítulo V” da lei 11.101/05, o qual trata das disposições exclusivamente inerentes à falência.

Veja-se que, dentro do próprio sistema da recuperação judicial e falência, como dito acima, pela sua própria localização geográfica na lei 11.101/05, a regra limitativa contida no art. 83, inciso I, do referido diploma legal é aplicada única e exclusivamente à falência. Caso fosse a intenção do legislador em permitir a extensão da aplicação da referida regra limitativa à recuperação judicial, certamente teria feito constar um dispositivo abordando esse tema no “Capítulo III” da referida lei 11.101/05, no entanto, na atual legislação, não há essa expressa previsão legal, sendo incabível a interpretação analógica.

A inaplicabilidade da regra limitativa prevista no art. 83, inciso I, à recuperação judicial fora consolidada pelo entendimento firmado pelos Tribunais Pátrios, veja-se:

“RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Impugnação de crédito. Honorários advocatícios. Natureza alimentar, com consequente inclusão da classe dos créditos trabalhistas (Recurso Repetitivo Tema 637 - STJ). Limitação de 150 salários mínimos prevista no artigo 83, incisos I e VI, alínea 'c' da Lei 11.101/2005, que se aplica somente à falência, e não à recuperação judicial, na qual há negócio novativo especial, e não propriamente concurso de credores. Recurso não provido.” (TJ/SP – Agravo de Instrumento 2026422-85.2017.8.26.0000, rel. Des. Francisco Loureiro, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. em 17/5/17).

(Grifos editados)

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“RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Habilitação de crédito trabalhista. Inaplicabilidade da limitação do artigo 83, inciso I, da Lei nº 11.101/2005, voltado apenas para a hipótese de créditos trabalhista em falência. Recurso parcialmente provido.” (TJ/SP; Agravo de Instrumento 2144664-37.2016.8.26.0000; Relator (a): Francisco Loureiro; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de São Bernardo do Campo - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/2/17; Data de Registro: 13/2/17)

(Grifos editados)

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AGRAVO DE INSTRUMENTO - RECUPERAÇÃO JUDICIAL - LIMITAÇÃO AOS CREDORES DA CLASSE TRABALHISTA EM 150 (CENTO E CINQUENTA) SALÁRIOS-MÍNIMOS – IMPOSSIBILIDADEART. 83 DA LEI 11.101/05 QUE SE APLICA ESTRITAMENTE À FALÊNCIA – RECURSO PROVIDO. “O art. 83, Lei nº 11.101/05, é inaplicável à recuperação judicial, motivo pelo qual os créditos trabalhistas (e seus equivalentes) habilitados na recuperação não se sujeitam ao limite de 150 (cento e cinquenta) salários-mínimos estabelecido no bojo da falência. (TJ/MG - AI: 10024160579058018 MG, Relator: Kildare Carvalho, Data de Julgamento: 3/4/18, Data de Publicação: 9/4/18)”. (TJ/MT – 1ª Câmara de Direito Privado – RAI  1001317-09.2018.8.11.0000, relatora: Desª Nilza Maria Possas De Carvalho, j. em 4/9/18)

(Grifos editados)

Portanto, se a regra limitativa prevista no art. 83, inciso I, da Lei n.º 11.101/2005, não se aplica à recuperação judicial cujo regramento legal encontra-se no mesmo diploma legal, por óbvio que não há que se falar na extensão da referida regra limitativa ao concurso de credores regido pelo Código de Processo Civil, muito menos realizar interpretações analógicas. Assim como dito anteriormente, caso o legislador tivesse a intenção de realizar essa extensão ao concurso de credores regido pelo Código de Processo Civil, teria incluído tal regra naquele diploma legal (CPC).

Assim, em relação ao concurso singular de credores, ou concurso de credores envolvendo devedores solventes, o Código de Processo Civil Brasileiro vigente institui o seguinte, em seu artigo 908:

Art. 908. Havendo pluralidade de credores ou exequentes, o dinheiro lhes será distribuído e entregue consoante a ordem das respectivas preferências.

(...)

§ 2º Não havendo título legal à preferência, o dinheiro será distribuído entre os concorrentes, observando-se a anterioridade de cada penhora”.

(Grifos editados)

O denominado concurso singular de credores deve ser regido pela preferência material, ou seja, pela posição decorrente da qualidade do crédito, de modo que os créditos decorrentes da legislação do trabalho, ou do acidente do trabalho, afiguram-se em primeira colocação, nos termos do artigo 186 do Código Tributário Nacional (CTN).

Nesse ponto, importa destacar que os demais créditos de natureza alimentar, como os honorários advocatícios, recebem o mesmo tratamento, concorrendo com igualdade àqueles indicados no citado dispositivo legal (art. 186 do CTN), conforme o expressamente disposto no artigo 85, § 14, do Código de Processo Civil. Veja-se:

Art. 85. (...) § 14. Os honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, sendo vedada a compensação em caso de sucumbência parcial.

(Grifos editados)

Não obstante, quando constatada uma gama de constrições com a mesma natureza, a preferência então, estabelece-se pela anterioridade, apurando-se a prioridade no recebimento de acordo com a ordem da penhora, conforme disposto no §2º do art. 908 do Código de Processo Civil. Veja-se:

Art. 908. Havendo pluralidade de credores ou exequentes, o dinheiro lhes será distribuído e entregue consoante a ordem das respectivas preferências.

(...)

§ 2º Não havendo título legal à preferência, o dinheiro será distribuído entre os concorrentes, observando-se a anterioridade de cada penhora.

(Grifos editados)

Nesse sentido, inexistindo dúvida quanto à imperatividade de aplicação desta norma (art. 908, § 2º, do CPC), não há qualquer margem para a mitigação dos créditos trabalhistas e de natureza alimentar, nem mesmo para a aplicação subsidiária da Lei de Falências, muito menos realizar interpretações analógicas.

Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no seguinte sentido:

“No processo de execução, recaindo mais de uma penhora sobre o mesmo bem, terá preferência no recebimento do numerário apurado com a sua arrematação, o credor que em primeiro lugar houver realizado a penhora, salvo se incidente outro título legal de preferência. Aplicação do brocardo prior tempore, potior iure.” (AgRg no REsp 1.195.540/RS, relator ministro Sidnei Beneti, 3ª turma, julgado em 9/8/11, DJe 22/8/11).

(Grifos editados)

O Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo (ETJSP), igualmente, evidencia a aplicação do artigo 908, do Novo Código de Processo Civil, no concurso singular de credores, senão veja-se:

Processo de conhecimento. Fase de execução. Indeferimento de levantamento de valores para honrar honorários contratuais. Insurgência descabida. Pedido formulado posteriormente à penhora efetuada no rosto dos autos pelo MM. Juízo do Trabalho. Crédito preferencial que se consigna. Anterioridade da penhora à questão atinente aos honorários convencionais, a preterir seu pagamento (NCPC, art. 908, § 2º). Recurso desprovido. (TJ-SP - AI: 20819989720168260000 SP 2081998-97.2016.8.26.0000, Relator: Borelli Thomaz, Data de Julgamento: 1/6/16, 13ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 2/6/16)

(Grifos editados)

***

Execução. Honorários advocatícios contratuais e sucumbenciais. Pedido de expedição de mandado de levantamento. Decisão. Reserva da verba honorária. Agravo de Instrumento. Existência de arresto e duas penhoras lançadas no rosto da execução. Ausência de elementos que possibilitem identificar a origem e a natureza dos demais créditos. Impossibilidade de levantamento imediato dos valores referentes aos honorários advocatícios, sob pena de eventual violação à ordem de preferência dos créditos. Inteligência do artigo 908 do CPC. Satisfação do crédito que deve aguardar a análise da ordem de preferência, a ser analisada pelo Juízo de Primeiro grau. Decisão mantida. Recurso desprovido. (TJ/SP; Agravo de Instrumento 2194860-74.2017.8.26.0000; Relator (a): Virgílio de Oliveira Junior; Órgão Julgador: 21ª Câmara de Direito Privado; Foro de Birigui - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 23/1/18; Data de Registro: 23/1/18)

(Grifos editados)

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AGRAVO DE INSTRUMENTO. Cumprimento de sentença. Pluralidade de penhoras sobre mesmo imóvel. Concurso especial de credores. Impossibilidade de levantamento do produto da arrematação por um dos credores. Necessidade de intimação de todos os credores para que seja instaurado o contraditório e respeitado o devido processo legal, quando será apreciada a ordem de preferência entre eles. Inteligência do art. 908 do CPC. Precedentes. Recurso desprovido. (TJ/SP; Agravo de Instrumento 2029695-72.2017.8.26.0000; Relator (a): Milton Carvalho; Órgão Julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional X - Ipiranga - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 23/3/17; Data de Registro: 23/3/17)

(Grifos editados)

Ainda, sobre a inaplicabilidade da Lei de Falências ao concurso singular de credores, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo firmou entendimento no seguinte sentido:

HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS – Execução de título extrajudicial – Sociedade de advogados que não representa mais o exequente, agora sucedido por cessionária do crédito excutido, neta do coexecutado – Insurgência da cessionária do crédito principal quanto à preferência do crédito de honorários sucumbenciais, reconhecida pelo juiz da causa, em razão do seu caráter alimentar – Inadmissibilidade – Os honorários advocatícios representam verba autônoma, não dependente da satisfação do crédito principal para a sua execução – Inteligência do art. 23 da Lei nº 8.906/1994 – Verba equiparável à trabalhista, gozando de preferência material sobre o crédito principal – Aplicação do art. 83, I, da Lei 11.101/2005 – Descabimento – Revisão do posicionamento anterior sustentado no julgamento do A. I. nº 2187595-89.2015.8.26.0000 – Julgamento de recurso especial representativo de matéria repetitiva aludiu à habilitação de credores exclusivamente em processo falimentar, não se justificando a sua aplicação extensiva para qualquer outra situação que não seja regida pela Lei de Falências - Decisão mantida. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – Inocorrência - Não se detecta deslealdade processual no procedimento da parte que não foi bem-sucedida na busca de apoio de suas pretensões – Indeferimento do pleito requerido em contraminuta da agravada. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS – Sucumbência recursal – Não é cabível a fixação de honorários advocatícios nos recursos interpostos contra decisões que não decidiram o mérito da ação – Exegese do art. 85, § 11, do CPC/2015. Recurso desprovido.

(...)

Mas, a limitação da preferência da verba honorária em 150 salários-mínimos por aplicação do disposto no art. 83, I, da Lei nº 11.101/2005 em concurso particular de credores fica afastada.” (TJSP; Agravo de Instrumento 2188550-86.2016.8.26.0000; Relator (a): Álvaro Torres Júnior; Órgão Julgador: 20ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 17ª Vara Cível; Data do Julgamento: 6/11/17; Data de Registro: 9/11/17)

(Grifos editados)

Nesse sentido, cumpre destacar o brilhante ensinamento apresentado pelo Desembargador Luiz Carlos de Barros, integrante do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, quando da sua manifestação de Declaração de Voto Divergente, no julgamento do recurso de agravo de instrumento n.º 2187595-89.2015.8.26.0000, destacando a impossibilidade de interpretações analógicas, uma vez que as situações são distintas e inconfundíveis. Frisando, ainda, que o fato de ter o legislador criado regra específica para disciplinar os pagamentos, no âmbito de um processo coletivo de recuperação judicial, não significa que a mesma disposição, possa ser aplicada no âmbito de um concurso privado de preferências. Veja-se:

“(...) Data máxima vênia, respeitados os entendimentos em sentido contrário, não há qualquer razão para fazer aplicar no concurso particular de preferências, a regra especial do artigo 83, inciso I, da Lei 11.101/2005 que disciplina a recuperação judicial.

Não há que se falar em analogia: as situações são distintas e inconfundíveis. O fato de ter o legislador criado regra específica para disciplinar os pagamentos, no âmbito de um processo coletivo de recuperação judicial, não significa que a mesma disposição, possa ser aplicada no âmbito de um concurso privado de preferências. (...)”

(Grifos editados)

Desta forma, em se tratando de concurso de credores relacionado a devedor solvente, resta evidente a impossibilidade de limitação de recebimento dos créditos de natureza alimentar a 150 (cento e cinquenta) salários-mínimos, nos termos instituídos pelo art. 83, inciso I, da lei 11.101/05, uma vez que claramente inaplicável à espécie.

Conclui-se, portanto, que se a referida limitação é vedada, inclusive, em procedimento regido pela Lei de Falências, caso da recuperação judicial, não há de se falar em estender a aplicação da regra limitativa ao pagamento dos créditos de natureza alimentar, prevista no inciso I, do art. 83, da lei 11.101/05, ao concurso singular de credores, o qual é regido, restrita e exclusivamente, pelo Código de Processo Civil, sendo impossível se falar em interpretações analógicas, uma vez que as situações são distintas e inconfundíveis. Como visto à exaustão, caso o legislador quisesse estender a referida regra limitativa ao concurso singular de credores, envolvendo devedores solventes, tal previsão teria constado do caderno processual civil, de modo que cabe aos operadores do direito evitarem o desvirtuamento da finalidade da regra limitativa prevista no inciso I, do art. 83, da lei 11.101/05, que tem aplicação exclusiva, restrita e voltada ao instituto da falência.

Douglas Alves Vilela
Graduado em Direito pelo Centro Universitário Fundação de Ensino Octávio Bastos. Pós-graduado em Direito Civil pela PUC/MG. Advogado do escritório Cruz, Gregolin e Amaral Sociedade de Advogados.

Caio Marcelo Gregolin Sampaio
Graduado em Direito pela FMU. Pós-graduado em Processo Civil e Empresarial pela Universidade Damásio de Jesus. Advogado do escritório Cruz, Gregolin e Amaral Sociedade de Advogados.

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