O Brasil tem trabalhado de forma acrítica com a reconhecida independência das instâncias, ou seja, no caso de imputação de atos que são considerados lesivos às várias searas do Direito, em regra, cada uma delas será responsável pelo desfecho de acordo com a valoração de fatos e provas que lá foram produzidos. No entanto, recente decisão prolatada pela 2ª turma do STF, no âmbito da Reclamação 41.557/SP, parece indicar a necessidade de se repensar a posição até então adotada.
De início, observa-se que a afirmação de que há violação ao non bis in idem diante de situações em que há o oferecimento de ação penal e ação civil pública por atos de improbidade administrativa em decorrência dos mesmos fatos praticados pelo acusado, comumente são resolvidas pelo fundamento da “independência das instâncias”, o qual é um argumento mal fundado e incoerente1. Por exemplo, em setembro de 2019, também no STF, na Repercussão Geral do Tema 576 (RE 976.566/PA), discutiu-se a caracterização ou não de bis in idem em ações que discutiam atos de improbidade administrativa e responsabilização penal, sendo, ao final, negado provimento ao recurso por unanimidade de votos2.
A Suprema Corte compreendeu que a autonomia das instâncias permite a apuração e responsabilização do agente público tanto pelas disposições previstas na lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), quanto pelos enunciados contidos no Decreto-lei nº 201/1967 (Responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores), rechaçando a tese de ocorrência do bis in idem.
Em que pese tal decisão tenha grande relevo para se compreender o assunto, recentemente deu-se o pontapé inicial para discutir a questão atinente ao alcance da proibição de dupla sanção a um acusado. Isso porque, a 2ª Turma da Corte Suprema, no julgamento do mérito da Reclamação 41.557/SP, confirmou a medida cautelar concedida pelo Ministro Relator Gilmar Mendes. Naquele julgamento, foi determinado o trancamento da ação civil pública por ato de improbidade administrativa, eis que já havia ocorrido o arquivamento de ação penal ante a inexistência de justa causa, o que, segundo o voto, por se tratarem dos mesmos fatos imputados, veio a desrespeitar decisão anteriormente proferida (HC 158.319/SP)3, bem como violou o princípio do non bis in idem.
O non bis in idem surge inicialmente no direito romano e pode ser definido como a garantia e o direito a não ser punido ou processado mais de uma vez pelos mesmos fatos e pelos mesmos motivos4.
O arcabouço legislativo pátrio conta com uma diversidade de normas que entram em conflito quando da sua aplicação, posto que a interpretação dada a determinado ato ilícito, pode ser compreendida como violadora de diversas áreas do Direito, gerando manifesta sobreposição entre estes dispositivos e, da mesma forma, desproporcionalidade na aplicação das sanções.
A doutrina tem se preocupado em discutir tal aspecto, notadamente em decorrência da aproximação entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador e os crescentes espaços de sobreposição entre eles, ao passo que países como a Espanha, Alemanha, Portugal, Itália, Áustria, Bélgica, Holanda e, na América Latina, o Peru, adotam regras para afastar o bis in idem entre sanções penais e administrativas5.
O que se verifica, portanto, é uma falta de sistematização normativa, acompanhada de diversas agências de controle que visam investigar e de instâncias judiciais que pretendem conferir validade à norma, as quais, em tese, não se interligam. Deste modo, não raras vezes se verifica na prática forense a existência de procedimentos capazes de ensejar mais de uma punição diante da mesma perspectiva fática, ocasionando desproporcionalidade entre as sanções que possam vir a ser aplicadas.
Entende-se que tais órgãos devem atuar em consenso e de forma estruturada, porque o indivíduo que “comete infrações contrárias a bens jurídicos relevantes deve ser adequadamente punido, mas não parece razoável que tenha que se defrontar com várias cabeças do mesmo Estado”6.
Ou seja, a proibição material consubstancia-se na impossibilidade da aplicação de duas sanções em decorrência do mesmo ato ilícito, não devendo este ser valorado duas vezes e, de outro modo, a proibição processual diz respeito àquela que impede a submissão de alguém a julgamento concomitantemente com relação ao mesmo fato.
Por sua vez, precedente internacional já se debruçou sobre a questão atinente aos riscos trazidos pela dupla imputação pelo mesmo fato. Destaca-se o julgamento do Processo C-537/2016, analisado pela Suprema Corte Italiana7, que reconheceu que a norma invocada na controvérsia possuía qualificação formal de sanção nominalmente administrativa, mas materialmente penal, devido à severidade e à natureza das infrações que pretendem punir8. Assim, restou fixado o entendimento no sentido de que a severidade do conjunto de sanções aplicadas não pode exceder a gravidade da infração praticada pelo agente, concluindo que apenas uma, dentre duas condenações, seria suficiente para reprimir e punir o acusado.
No Brasil, o princípio da proibição da dupla incriminação surge a partir do art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988, bem como por meio de tratados ratificados, notadamente a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8.4) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 14.7).
Neste aspecto, como bem explicitado por José Luis Díez Ripollés, uma racionalidade legislativa penal seria o “ponto de chegada” de uma teoria da argumentação jurídica, a ser desenvolvida no plano do procedimento legislativo penal, que garantisse decisões legislativas suscetíveis de adequação na realidade social (2016, p. 84). Infere-se, portanto, que a criação de novos dispositivos e aplicação dos já existentes servem muito mais como instrumento simbólico de repressão, sem que se extraiam efeitos positivos a partir da quantidade desmensurada de dispositivos legais nas mais diversas áreas.
Defende-se que o Estado deve ter cautela para que não subsistam decisões conflitantes das esferas “independentes” do Poder Judiciário, devendo necessariamente ser criado espaço de consenso e diálogo entre os órgãos de controle e das instâncias de aplicação de sanções.
Nesse sentido, Helena Regina Lobo da Costa ressalta a necessidade de que se reflita acerca de uma “política jurídica conjunta, que estabeleça parâmetros destinados ao legislador de modo a considerar os dois sistemas sancionadores"9. Sua proposta é a inserção de uma política-criminal integrada, que leve em consideração todas as diferentes possibilidades de reação fornecidas pelas distintas esferas do direito.
Necessário ainda reportar a necessidade de observância da utilização do Direito Penal como ultima ratio, considerando que sua função parte de proteger bens jurídicos penais de lesões relevantes, de modo que “há bens jurídicos que poderão – ou melhor, que deverão – ser tutelados, antes, por outros setores do Estado”10
Denota-se que há uma tendência nacional e internacional de se conferir limites à incidência do bis in idem, de forma que deve haver uma ponderação diante da circunstância prática, para se definir qual procedimento se mostra mais adequado para punir de forma efetiva aquele que pratica um ato ilícito (ou não). Como mencionado, a sentença absolutória também faz coisa julgada e impede que um indivíduo seja novamente processado pelo mesmo fato.
Destaque-se que a experiência europeia é relevante na medida em que estabelece parâmetros acerca da não cumulatividade de consequências sancionatórias de origem penal e administrativa, visto que a jurisprudência do Tribunal Europeu tem se inclinado no sentido de reconhecer a existência de desproporcionalidade das sanções aplicadas diante de atos ilícitos em concreto, proibindo-se, por consequência, a pluralidade de punições quando se está diante de sanções semelhantes.
Portanto, o precedente do STF, embora não resolva de forma definitiva a problemática existente, ao menos fomenta o debate entre os Tribunais, oferecendo contornos iniciais para desenvolvimento de doutrina e jurisprudência mais segura a respeito da independência das instâncias e o posterior bis in idem.
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1- COSTA, Helena Regina Lobo. Ne bis in idem entre Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador. Boletim do IBCCRIM, ano 29, n. 340, março/2021, p. 6-7.
2- RE 976566, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 13/09/2019, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-210, DIVULG 25-09-2019, PUBLIC 26-09-2019.
3- A Turma, por maioria, conheceu do presente habeas corpus e concedeu a ordem, para trancar a ação penal movida contra o paciente Fernando Capez (Representação Criminal 2022926-82.2016.8.26.0000, em trâmite no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo), diante da patente falta de justa causa de prosseguir, nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Edson Fachin. (HC 158319, rel. Gilmar Mendes, DJE 15/10/2018).
4- SABOYA, Keity. Ne bis in idem em tempos de multiplicidades de sanções e de agências de controle punitivo. Jornal de Ciências Criminais, v.1, n. 1, p. 72-92, ago/2018, p. 72.
5- COSTA, Helena Regina Lobo. Ne bis in idem entre Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador. Boletim do IBCCRIM, ano 29, n. 340, março/2021, p. 6-7.
6- TEIXEIRA, Adriano; ESTELLITA, Heloisa; CAVALI, Marcelo. Ne bis in idem e o cúmulo de sanções penais e administrativas. Disponível em: https://bit.ly/2Sng40t. Acesso em: 20 fev. 2021.
7- EUROPA. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção). Processo C-537/16. Disponível em: https://bit.ly/3kzAVLf. Acesso em: 01 mar. 2021.
8- Assim menciona a referida decisão: “[...] o cúmulo de sanções de natureza penal deve ser sujeito a regras que permitam garantir que a severidade do conjunto de sanções aplicadas corresponde à gravidade da infração em causa, decorrendo esta exigência não só do artigo 52.o, n.o 1, da Carta mas também do princípio da proporcionalidade das penas consagrado no seu artigo 49.o, n.o 3. Estas regras devem prever a obrigação de as autoridades competentes, em caso de aplicação de uma segunda sanção, assegurarem que a severidade do conjunto de sanções aplicadas não exceda a gravidade da infração constatada [...]”.
9- COSTA, Helena Regina Lobo. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador: ne bis in idem como medida de política sancionadora integrada. Tese de Livre Docência – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo: São Paulo, 2013, p. 235.
10- SCANDELARI, Gustavo Britta. Instancias administrativa e penal: a independência na teoria e na prática dos crimes tributários. In: GUARAGNI, Fábio André; BACH, Marion; MARIA SOBRINHO, Fernando Martins. Direito penal econômico: administrativização do direito penal, criminal compliance e outros temas contemporâneos. Londrina: Editora Thoth, 2017, p. 148-149.
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COSTA, Helena Regina Lobo. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador: ne bis in idem como medida de política sancionadora integrada. Tese de Livre Docência – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo: São Paulo, 2013.
______. Ne bis in idem entre Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador. Boletim do IBCCRIM, ano 29, n. 340, março/2021, p. 6-7.
DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. A racionalidade das leis penais: teoria e prática. 2. ed., rev., atual. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
EUROPA. Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção). Processo C-537/16. Disponível aqui. Acesso em: 01 mar. 2021.
SABOYA, Keity. Ne bis in idem em tempos de multiplicidades de sanções e de agências de controle punitivo. Jornal de Ciências Criminais, v.1, n. 1, p. 72-92, ago/2018.
SCANDELARI, Gustavo Britta. Instancias administrativa e penal: a independência na teoria e na prática dos crimes tributários. In: GUARAGNI, Fábio André; BACH, Marion; MARIA SOBRINHO, Fernando Martins. Direito penal econômico: administrativização do direito penal, criminal compliance e outros temas contemporâneos. Londrina: Editora Thoth, 2017.
TEIXEIRA, Adriano; ESTELLITA, Heloisa; CAVALI, Marcelo. Ne bis in idem e o cúmulo de sanções penais e administrativas. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2021.