O Brasil foi um dos países mais afetados pela pandemia da Covid-19. Até o momento são mais de 9 milhões de casos e quase 250 mil mortes. Além da crise sanitária ocasionada pelo vírus, o país passa por uma grande crise política – na iminência do estado de exceção em sua pureza léxica, nos termos do que posto pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, segundo o qual se trata de um estado regido de acordo com “o dispositivo original graças ao qual o direito refere-se à vida e a inclui em si por meio de sua própria suspensão”.1 Dispositivo é uma referência aos discursos, instituições e medidas com a clara função de governar a vida humana.
Um governo federal, que negou a pandemia, sua gravidade, que fez pouco caso da ciência e das medidas preventivas, lidando com uma pandemia global que causou a morte de milhares de pessoas – antes mesmo de chegar ao país - era uma tragédia anunciada. Um desgoverno federal. Não houve qualquer tipo de preparo por parte do chefe de Estado em adotar providências para refrear as consequências negativas que estavam por vir.
Medidas provisórias, portarias, resoluções e outros atos normativos do governo federal contrárias às autoridades da saúde do mundo2, influência sobre esferas de poder que não deveriam estar ao alcance e troca de ministros da saúde por um militar de logística são apenas alguns dos trejeitos que marcam o Executivo, poder soberano – nos termos utilizados por Agamben, “soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção” que captura a vida por completo e é a “forma legal daquilo que não tem forma legal”.
Sem uma atuação consistente por parte do Poder Executivo em esfera nacional, coube então aos governadores e prefeitos adotar providências visando ao bem-estar da população nessas esferas locais. Devido à extensão do país, as regiões foram atingidas em diferentes níveis, de modo que foram implementadas as mais diversas medidas, questão que chegou ao STF. Segundo o órgão judicial, para enfrentar a crise “a ação dos Poderes Públicos deveria se orientar pela prevenção, precaução, priorização da vida e da saúde”, mesmo que fosse preciso restringir direitos como o livre exercício da atividade econômica e liberdade de locomoção ou reunião.3
Como exemplo, há a decisão proferida na ADPF 669 pelo ministro Luís Roberto Barroso, cujo objeto foi a campanha publicitária do governo Federal nominada “O Brasil Não Pode Parar”. Conforme a proponente, tal campanha veicularia noções falsas sobre a pandemia, induzindo o público a reproduzir condutas acentuando o contágio pelo Coronavírus. A cautelar foi concedida, proibindo esta e qualquer campanha similar.
O ministro fundamentou-se na ideia de que as campanhas publicitárias devem ter caráter “informativo, educativo ou de orientação social” (art. 37, §1º, CF). Para Wilson Steinmetz, tal dever é usado como preceito para verificar o “respeito aos princípios da moralidade e da eficiência na contratação e veiculação de conteúdo publicitário pela Administração Pública”. O Relator baseou-se em orientações de órgãos internacionais e nacionais de saúde, elementos empíricos obtidos a partir de medidas adotadas em outros países em estágio mais avançado da pandemia e dados numéricos de casos confirmados e de óbitos em tais Estados.
Foi também julgada a ADPF 672, cujo relator foi o ministro Alexandre de Moraes. Em síntese, seu voto assegurou o federalismo, de modo que aos entes federativos fosse permitido o exercício de sua competência para implementar medidas sanitárias de contenção à disseminação do Coronavírus. À época, o presidente Jair Bolsonaro se posicionou contrariamente às recomendações dos órgãos e autoridades de saúde. O ministro reconheceu a gravidade de tal divergência entre autoridades, o que acarreta insegurança para toda a sociedade.
Ainda, afirma que a separação de Poderes e o modelo federativo são cláusulas pétreas da Constituição, limitando a arbitrariedade do governo. Nesse sentido, ao presidente da República caberia administrar a nível nacional o planejamento e execução de políticas públicas. O Judiciário não pode atuar de forma substitutiva ao Executivo, entretanto, deve ser resguardada a margem de atuação dos entes federados para que executem as medidas sanitárias necessárias e cabíveis à localidade para contenção de danos (STF, 2020, p. 12-16). Tal decisão segue o intuito do legislador ao adotar o federalismo de cooperação, no qual nenhum dos entes federados pode atuar de maneira isolada – todos os interesses devem considerados para que as decisões tomadas nos diferentes âmbitos federativos sejam harmônicas.4
Conforme citada decisão, o objetivo é tornar cada vez mais forte a cooperação entre os Poderes instituídos em momentos de crise. O julgamento assegura o respeito à Constituição da República, a exemplo do art. 23, inciso II, que diz como competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”. Pode-se notar os passos rumo à aplicabilidade da lei 13.979/20, que se refere “ao estado de emergência sanitária decorrente da pandemia do novo coronavírus”, nos termos do voto do relator.
Portanto, é papel da Suprema Corte brasileira traçar limites ao que se denomina governo Federal. Cabe ressaltar que vivemos em um Estado Democrático de Direito, constituído de três Poderes, e, enquanto o Legislativo se move de forma muito devagar por sua própria natureza, política, negociada, o Judiciário, por meio da técnica jurídica, possui os meios necessários para atuar neste estado de exceção ditado por Agamben.
A Corte combate a exceção, como em sua atuação na ADI 6.343, suspendendo parcialmente a eficácia da letra das medidas provisórias 926 e 927. A partir da decisão do STF na ADI 6.341, que trazia a tona a problemática da possibilidade de entes federativos acolherem providências mais restritivas que a União no que concerne ao combate ao Covid-19, várias outras decisões tomaram o caminho de fortalecer o federalismo em sua forma descentralizada. Conforme José Arthur de Castillo Macedo e Miguel Gualano de Godoy, há liberdade para que estados e municípios adotem diligências mais restritivas que a União, porém é necessário que estas sejam baseadas em evidências científicas e recomendações da OMS.
Há que se ater ao fato de que, muito embora o mérito das decisões do STF se mostre acertado durante a crise da Covid-19, a forma é intrínseca ao conteúdo. Assim, existem também críticas que devem ser feitas à atuação monocrática em regra dos ministros, ainda mais em um contexto em que o uso do Plenário Virtual seria o ideal - “o Supremo monocrático de antes da crise parece continuar a ser o mesmo Supremo monocrático também agora, durante a crise”.5
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1- AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção: homo sacer II, 1. Tradução: Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 12.
2- BRUM, Eliane. Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”. El País Brasil, São Paulo, 21 jan. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2021.
3- STEINMETZ, Wilson. Protagonismo político-institucional do Supremo Tribunal Federal e Covid-19: uma conjectura a partir da ADPG 669. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], v. 21, n. 2, p. 551-562, 29 out. 2020. p. 553.
4- RAMOS, Edith Maria Barbosa; RAMOS, Paulo Roberto Barbosa; COSTA, Laísse Lima Silva. Pandemia e federalismo: reflexões sobre as decisões do Supremo Tribunal Federal na apreciação de conflitos de competência entre os entes federativos no enfrentamento à Covid-19. Ciências Jurídicas e Sociais - IURJ, [S. l.], v. 1, n. 1, p. 46-61, 2020. DOI: 10.47595/2675-634X.2020v1i1p46-61. Disponível aqui. . Acesso em: 07 jan. 2021. p. 54-55.
5- DE CASTILLO MACEDO, José Arthur, GUALANO DE GODOY, Miguel. As decisões do STF durante e após a pandemia: nada será como antes?. JOTA, 18/05/2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 jan. 2021.
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AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção: homo sacer II, 1. Tradução: Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 669. Segunda Turma. Requerente: Rede Sustentabilidade. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Brasília, DF, 24 de março de 2020. Decisão monocrática. Disponível aqui. . Acesso em 05 jan. 2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 672. Segunda Turma. Requerente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Brasília, DF, 31 de março de 2020. Decisão monocrática. Disponível aqui. Acesso em 05 jan. 2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.343. Plenário. Requerente: Rede Sustentabilidade. Relator: Ministro Marco Aurélio. Relator para acórdão: Ministro Alexandre de Moraes. Brasília, DF, 17 de novembro de 2020. Disponível em: http://portal.stf.jus.br. Acesso em 05 jan. 2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Imprensa, Brasília, 01 maio 2020. Disponível aqui. Acesso em: 07 jan. 2021.
BRASIL. Ministério da Saúde. DATASUS, Brasília, 17 fev. 2021. Disponível aqui. . Acesso em: 17 fev. 2021.
BRÍGIDO, Carolina. No Supremo, 82% das decisões de 2020 foram monocráticas. Época, São Paulo, 30 set. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2021.
BRUM, Eliane. Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”. El País Brasil, São Paulo, 21 jan. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2021.
DE CASTILLO MACEDO, José Arthur, GUALANO DE GODOY, Miguel. As decisões do STF durante e após a pandemia: nada será como antes? 18/05/2020. Acesso em: 10 jan. 2021.
RAMOS, Edith Maria Barbosa; RAMOS, Paulo Roberto Barbosa; COSTA, Laísse Lima Silva. Pandemia e federalismo: reflexões sobre as decisões do Supremo Tribunal Federal na apreciação de conflitos de competência entre os entes federativos no enfrentamento à Covid-19. Ciências Jurídicas e Sociais - IURJ, [S. l.], v. 1, n. 1, p. 46-61, 2020. DOI: 10.47595/2675-634X.2020v1i1p46-61. Disponível aqui. . Acesso em: 07 jan. 2021.
STEINMETZ, Wilson. Protagonismo político-institucional do Supremo Tribunal Federal e Covid-19: uma conjectura a partir da ADPG 669. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], v. 21, n. 2, p. 551-562, 29 out. 2020.