O Supremo Tribunal Federal abrirá os trabalhos do Pleno dessa quinta-feira com o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade 5962, de relatoria do ministro Marco Aurélio, ajuizada pela Abrafix e Acel, quanto a tema já decidido pelo mesmo Pleno, em 2016, por unanimidade, na ação direta de inconstitucionalidade 3959 (Rel. Min. Roberto Barroso), e que, agora, retorna com o justo questionamento da lei carioca 4.896/06, que obriga as empresas prestadoras do Serviço Telefônico Fixo Comutado e de Telefonia Móvel, que atuem no Estado do Rio de Janeiro, a constituir e a manter cadastro especial de assinantes que manifestem oposição ao recebimento, via telefônica, de ofertas de comercialização de produtos ou serviços.
A lei 4.896/06 integra o acervo das inconstitucionalidades chapadas a que fazia alusão o ministro Sepúlveda Pertence.1 Eis seus comandos:
“Art. 1º - Fica assegurado o direito de privacidade aos usuários do serviço de telefonia, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, no que tange ao recebimento de ofertas de comercialização de produtos ou serviços por via telefônica.
§ 1° - Para consecução do disposto no caput deste artigo, ficam as empresas prestadoras do Serviço Telefônico Fixo Comutado e de Telefonia Móvel, que atuam na área de abrangência em todo Estado do Rio de Janeiro, obrigadas a constituir e a manter cadastro especial de assinantes que manifestem oposição ao recebimento, via telefônica, de ofertas de comercialização de Produtos ou serviços.
§ 2° - As empresas que utilizam os serviços de telefonia de bens ou serviços deverão, antes de iniciar qualquer campanha de comercialização, consultar os cadastros dos usuários que tenham requerido privacidade, bem como se absterem de fazer ofertas de comercialização para os usuários constantes dos mesmos.
* Art. 1º A – Fica estabelecido que os telefonemas para oferta de produtos e serviços aos que não constarem na lista de privacidade telefônica devem ser realizados exclusivamente de segunda a sexta-feira, das 8h (oito horas) às 18h (Dezoito horas), sendo vedada qualquer ligação de telemarketing aos sábados, domingos e feriados em qualquer horário (Lei 7.853/18).
* Art. 1º B – Em qualquer caso, a oferta de produtos e serviços somente poderá ser efetuada mediante a utilização pela empresa de número telefônico que possa ser identificado pelo consumidor, sendo vedado a utilização de número privativo, devendo ainda identificar a empresa logo no início da chamada (Lei 7.853/18).
Art. 3º - As empresas prestadoras de serviços de telefonia têm o prazo de 90 (noventa) dias, a contar da data da publicação desta Lei, para constituir e divulgar a existência do referido cadastro, bem como formas de inscrição.
* Art. 4º - O não atendimento do previsto no art. 1 desta Lei, sujeitará o responsável ao pagamento de multa nos termos do Código de Defesa do Consumidor (Lei 7.885/18).
Art. 5º - As denúncias dos usuários quanto ao descumprimento desta Lei, de forma circunstanciada, deverão ser encaminhadas à Secretaria Estadual de Planejamento, Desenvolvimento Econômico e Turismo e à Comissão Permanente de Indústria e Comércio da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro para cumprimento desta Lei, concedendo-se o direito de defesa às empresas denunciadas.
* § 1º – As denúncias apuradas devem ser encaminhadas aos órgãos de proteção e de defesa do consumidor para fins de aplicação imediata da multa devida por cada denúncia confirmada, devendo as multas serem revertidas em favor do Fundo Especial de Apoio à Programas de Proteção e Defesa do Consumidor – FEPROCON (Lei 7.853/18).
* § 2º – O consumidor poderá, ainda, apresentar denúncia direta aos órgãos de proteção e defesa do consumidor, que deverão apurar a veracidade das denúncias em processo administrativo próprio, respeitando-se a ampla defesa às empresas denunciadas, decidindo pela aplicação ou não da multa no mesmo ato de apuração da denúncia (Lei 7.853/18).
Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em 8 de novembro de 2006.
DEPUTADO JORGE PICCIANI - Presidente”
Em resumo, a lei (i) obriga as empresas prestadoras do Serviço Telefônico Fixo Comutado e de Telefonia Móvel, que atuam no Estado do Rio de Janeiro, a constituir e a manter cadastro especial de assinantes que manifestem oposição ao recebimento, via telefônica, de ofertas de comercialização de produtos ou serviços, cadastro esse que deverá ser consultado antes de se iniciar qualquer campanha de comercialização; que (ii) os telefonemas que não constarem na lista de privacidade devem ser realizados de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h, vedada qualquer ligação aos sábados, domingos e feriados; (iii) que a oferta somente seja efetuada mediante a utilização, pela empresa, de número telefônico que possa ser identificado pelo consumidor, devendo ainda identificar a empresa logo no início da chamada; e (iv) impõe multas e dispõe que as denúncias dos usuários quanto ao descumprimento sejam encaminhadas à Secretaria de Planejamento, Desenvolvimento Econômico e Turismo e à Comissão de Indústria e Comércio da Assembleia do Estado do Rio de Janeiro.
É conhecida a competência constitucional da União - e não dos estados-membros - tanto para explorar o serviço de telecomunicações (art. 21, XI2) como para sobre ele legislar (art. 22, IV3), além de qualificar, quem desse serviço faz uso, como “usuário”, nos termos do art. 175 da mesma Constituição Federal.4
Assim, a Anatel – competente a adotar medidas de atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade (art. 19 da Lei nº 9.472/97 - LGR) – aprovou a resolução 632/14 - Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Serviços de Telecomunicações – RGC -, que estabelece regras sobre atendimento, cobrança e oferta de serviços relativos ao STFC, ao SMP, ao Serviço de Comunicação Multimídia (SCM) e aos Serviços de Televisão por Assinatura (art. 1º).
Segundo o art. 3º da resolução 632/14, o consumidor tem direito à privacidade nos documentos de cobrança e na utilização de seus dados pessoais pela prestadora (inciso VII) e ao não recebimento de mensagens de cunho publicitário em sua estação móvel, salvo consentimento prévio, livre e expresso (inciso XVIII). Estabelece, ainda, como deve ser o Centro de Atendimento Telefônico (art. 24).5 Eis trechos:
“Art. 3° O Consumidor dos serviços abrangidos por este Regulamento tem direito, sem prejuízo do disposto na legislação aplicável e nos regulamentos específicos de cada serviço:(...)
XVIII - ao não recebimento de mensagem de cunho publicitário em sua estação móvel, salvo consentimento prévio, livre e expresso;
(...)
Art. 24. Centro de Atendimento Telefônico é todo setor da Prestadora, próprio ou disponibilizado por meio de contrato(s) com terceiro(s), responsável pela oferta de serviços e pelo recebimento, tratamento e solução de pedidos de informação, reclamações e solicitações de serviços, rescisão ou qualquer outra demanda ligada ao serviço da Prestadora.”
Não bastasse o regramento da Anatel, medidas outras têm sido implementadas em defesa dos usuários dos serviços de telecomunicações, sendo, o Sistema de Autorregulação das Telecomunicações - SART, a iniciativa mais contemporânea, por meio da qual se estabeleceu um Código de Autorregulação das Telecomunicações no uso de telemarketing.
Realizando o que tem sido caracterizado como regulação by design, as empresas do setor constituíram, por meio da entidade representativa Sinditelebrasil – hoje Conexis – a plataforma nãomeperturbe.com, implementada em julho de 2019, que bloqueia, a partir da iniciativa dos próprios usuários, as chamadas de telemarketing para quem não tenha interesse em receber este tipo de ligação. Algar Telecom, Claro, Vivo, Tim, Sercomtel, SKY, Oi..., são exemplos de operadoras que aderiram à plataforma.
Além do uso da inovação tecnológica, com a constituição do nãomeperturbe.com, tramita na Câmara dos Deputados, após aprovação no Senado Federal, o PLS nº 48/2018 (Sen. Roberto Muniz), que define novas hipóteses de práticas abusivas através de telemarketing ativo. Tudo sob a necessária liderança constitucional da União.
A autofagia federativa patrocinada pela lei carioca 4.896/06, desmantela a capacidade institucional da Anatel, uma vez que a referida lei não precedeu a qualquer análise prévia de impacto regulatório, tal qual exigido pela Lei Geral das Agências Reguladoras6 e pela LGT.7
Introduz, ademais, obrigação tecnicamente impossível, haja vista que a norma seria aplicável somente no Estado do Rio de Janeiro, e os sistemas utilizados pelas operadoras, por imposição regulatória, reclamam configuração uniforme para todos os Estados, não sendo possível, a elas, prestarem um serviço não universal e anti-isonômico.
O STF tem, inclusive, precedente rigorosamente idêntico ao tema. Na ação direta de inconstitucionalidade nº 3959, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, (DJe 11/2/16), por unanimidade, derrubou-se a lei 12.239/06, do Estado de São Paulo. Eis trecho da ementa:
“1. A Lei nº 12.239/2006, do Estado de São Paulo, obriga as companhias operadoras de telefonia fixa e móvel a constituírem cadastro especial de assinantes do serviço interessados no sistema de venda por meio de telemarketing.
2. Compete à União Federal legislar privativamente sobre o serviço de telecomunicações (CF, art. 22, IV), bem como a sua exploração (CF, art. 21, XI, CF). Exercício abusivo da competência legislativa estadual.”
Por isso, espera-se que o Pleno da Suprema Corte, nessa quinta-feira, julgue procedente a ação direta de inconstitucionalidade 5962, derrubando a lei carioca 4.896/06, que, além de legislar sobre telecomunicações em desrespeito à Constituição Federal, dá tratamento à questão do uso de telemarketing de modo arcaico, quando comparado com a inovação tecnológica que ensejou a plataforma “nãomepertube.com”.
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1 ADIn 1802 MC, Min. Sepúlveda Pertence, DJ 13/2/04.
2 “Art. 21. Compete à União: XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais; (Redação dada pela EC 8/95)”.
3 “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: IV - águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;”
4 “Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; II - os direitos dos usuários; III - política tarifária; IV - a obrigação de manter serviço adequado.”
5 A resolução 632/20104 (RGC) traz a “Subseção II - Do Centro de Atendimento Telefônico”, cujos artigos 24 a 28 disciplinam de modo exauriente tudo o que diga respeito ao atendimento telefônico dos usuários.
6 Lei 13.848/19: “Art. 6º A adoção e as propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados serão, nos termos de regulamento, precedidas da realização de Análise de Impacto Regulatório (AIR), que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo”.
7 Lei 9.472/97: “Art. 105. Quando da implantação de novas prestações, utilidades ou comodidades relativas ao objeto da concessão, suas tarifas serão previamente levadas à Agência, para aprovação, com os estudos correspondentes”.
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