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Demissão coletiva

O Brasil está devendo alguma regulamentação satisfatória e específica de tal fenômeno desde pelo menos a vigência da atual Constituição, tanto assim que na própria Carta de 1988, quando revogado completamente o regime da estabilidade decenal, o legislador constituinte convidou explicitamente o Congresso Nacional a regulamentar outras medidas contra a dispensa arbitrária.

8/1/2007


Demissão coletiva

Mário Gonçalves Júnior*

O Brasil está devendo alguma regulamentação satisfatória e específica de tal fenômeno desde pelo menos a vigência da atual Constituição, tanto assim que na própria Carta de 1988, quando revogado completamente o regime da estabilidade decenal, o legislador constituinte convidou explicitamente o Congresso Nacional a regulamentar outras medidas contra a dispensa arbitrária. A multa sobre os depósitos do FGTS era para ser um contraponto às demissões individuais ou plúrimas (artigo 7o., I, CF), aplicáveis às demissões como um todo (inclusive as coletivas) somente enquanto a proteção contra a dispensa arbitrária não viesse (daí porque o percentual de 40% tem sede o art. 10, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). Passadas quase duas décadas de vigência constitucional, infelizmente não há negar que tornamos definitiva uma garantia que literalmente deveria ter sido passageira (a multa do FGTS). Acomodamo-nos preguiçosamente sob um remendo constitucional.

Para se ter uma idéia da longevidade do tema entre nós, em 1974 ORLANDO GOMES publicava, na LTr 38/577, estudo sintético, porém exaustivo, sobre a Dispensa Coletiva na Reestruturação da Empresa (Aspectos Jurídicos do Desemprego Tecnológico), sinalizando que se deveria encontrar, já naquela época, "fórmula capaz de atender aos respeitáveis interesses da empresa, do pessoal e da sociedade", visto que o assunto exige tríplice enfoque.

A década de 90 foi marcada pelas privatizações, grandes fusões e aquisições empresariais, remexendo as vísceras do mercado de trabalho formal, e, ainda assim, pouco1 ou nada se fez para colocar algo definitivo no lugar desse remendo constitucional.

Nem a Convenção 158 da OIT teve força suficiente para nos acordar para o problema. Acabou prevalecendo a tese no sentido de não ser auto-aplicável, porém meramente programática2, com o que fizemos coro pela força da literalidade dos próprios dispositivos, sem ignorar a necessidade de se alterar a normatividade interna com vistas a enfrentar adequada e especificamente o problema.

Antes, durante e depois da nossa era de privatizações, perdura o fenômeno da globalização, derrubando barreiras geográficas e soberanias, expondo e fazendo disputar, sem clemência, as diferenças jurídicas e econômicas de países desenvolvidos e em desenvolvimento, e ainda assim continuamos aplicando sem muitas alterações o modelo de Direito do Trabalho da década de 40. O resultado não poderia ter sido mais óbvio: perdemos boas oportunidades da globalização, mas não deixamos de sentir inteiramente o lado negativo da concorrência internacional, diferentemente de alguns outros países em desenvolvimento que aproveitaram o momento para "importar" empregos, principalmente os que migraram da indústria para o setor de serviços, como o caso da Coréia, Índia e China. Beira a estupidez a perplexidade mal disfarçada por muitos de nossos governantes diante do pífio crescimento econômico das três últimas décadas.

A globalização segue imperdoável e irreversível e mesmo assim o Brasil persiste na molecagem irresponsável de não se reorganizar internamente para concorrer. Um dos pontos nevrálgicos para enfrentar a globalização é a reforma trabalhista. A prova de que o modelo atual de Direito do Trabalho está sobrevivendo artificialmente é o descompasso com o Direito Processual: temos instrumentos excelentes para a tutela coletiva de interesses (v., a propósito, o alargamento da substituição processual sindical), mas nosso direito material trabalhista ainda é essencialmente individualista e ortodoxo3. Ou seja, temos os instrumentos para aplicar a tutela coletiva, mas não temos direitos coletivos à altura para serem manejados por esses instrumentos, até porque não tivemos ousadia (tanto assim que diante desse dilema a jurisprudência acabou tolerando a tutela de direitos individuais homogêneos por meio da ação civil pública e da substituição processual, desbancando o antigo Enunciado 310/TST) (clique aqui).

Esse descompasso está chegando ao ponto de se tornar também irreversível: desde as privatizações, demissões coletivas ocorreram aos montes e a sociedade não contou com defesas específicas. Hordas de empregos foram dizimadas, lançando os respectivos trabalhadores à própria sorte. Ainda que venhamos a finalmente alterar o Direito do Trabalho --- para torná-lo mais coletivo e menos individualista ---, em especial quanto às demissões coletivas arbitrárias, é bem provável que a sociedade brasileira já terá feito por conta própria suas "reformas" no mercado de trabalho com a legislação trabalhista disponível, assumindo as conseqüências legais comuns para demissões sem justa causa, arbitrárias ou não.

Na prática, à ilharga de legislação própria, a defesa coletiva se fez, no mais das vezes, através do instrumento da greve. O Poder Normativo da Justiça do Trabalho vem sendo provocado justamente porque, não havendo regras jurídicas no sistema, de alguma maneira os atores sociais se vêem compelidos à criá-las caso a caso. As únicas maneiras de criação de normas jurídicas trabalhistas, além da legislação, são o contrato coletivo de trabalho e a sentença normativa. O conflito coletivo, entretanto, deve ser uma última instância, recorrível se a negociação e a legislação não forem eficientes no caso concreto. Não é salutar deixar que tudo seja resolvido pelo conflito direto ou intermediado de forças.

Estamos bastante atrasados, mas a dispensa coletiva permanece chaguenta --- talvez menos purulenta do que no auge das privatizações ---, pois é imprevisível aonde a globalização e as profundas transformações do mercado de trabalho ainda nos levarão. Essas mudanças, ainda em pleno curso e avassaladoras, impõem-nos atualmente reformar todo o direito material do trabalho, de maneira que hoje a regulamentação da demissão coletiva, sozinha, provavelmente seria outro remendo. Mas, ainda assim: ruim sem ela, pior sem ela. Mesmo que teimemos no Direito do Trabalho de Vargas, a demissão coletiva continuará reclamando alguma regulamentação.

Apesar dos sucessivos contextos econômicos e históricos perdidos, já temos conhecimento científico acumulado que poderá ser útil na regulamentação do fenômeno. Nada obstante, como dissemos, hoje o Direito do trabalho necessita ser atualizado como um todo, de maneira que recortar a demissão coletiva no sistema provavelmente não terá a mesma qualidade num outro cenário laboral.

O primeiro passo para regulamentar a questão é fincar fronteiras. Demissão coletiva não é o mesmo que demissão plúrima. ORLANDO GOMES (ob. cit.) conseguiu em poucos parágrafos traçar as diferenças e os pontos comuns: "Dispensa coletiva4 é a rescisão simultânea, por motivo único, de uma pluralidade de contratos de trabalho numa empresa, sem substituição dos empregados dispensados.

"Dois traços caracterizam a dispensa coletiva, permitindo distingui-la nitidamente da dispensa plúrima. São:

a - a peculiaridade da causa;

b - a redução definitiva do quadro de pessoal.

"Na dispensa coletiva é única e exclusiva a causa determinante. O empregador, compelido a dispensar certo número de empregados, não se propõe a despedir determinados trabalhadores, senão aqueles que não podem continuar no emprego. Tomando a medida de dispensar uma pluralidade de empregados não visa o empregador a pessoas concretas, mas a um grupo de trabalhadores identificáveis apenas por traços não-pessoais, como a lotação em certa seção ou departamento da empresa, a qualificação profissional, ou o tempo de serviço. A causa da dispensa é comum a todos, não se prendendo ao comportamento de nenhum deles, mas a uma necessidade da empresa.

"A finalidade do empregador ao cometer a dispensa coletiva não é abrir vagas ou diminuir, por certo tempo, o número dos empregados. Seu desígnio é, ao contrário, reduzir definitivamente o quadro de pessoal. Os empregados dispensados não são substituídos, ou porque se tornaram desnecessários ou porque não tem a empresa condição de conservá-los.

"A exigência da reunião desses elementos de caracterização da dispensa coletiva facilita a sua distinção da dispensa ou despedida plúrima.

Dispensa dessa espécie sucede quando numa empresa se verifica uma série de despedidas singulares ou individuais, ao mesmo tempo, por motivo relativo à conduta de cada empregado dispensado.

"Essa dispensa há de ser praticada, primeiramente, contra número considerável de empregados, por fato que a todos diga respeito, como, por exemplo, a insubordinação dos trabalhadores da seção de embalagem de uma empresa. Os dispensados têm de ser pessoas determinadas, constituindo um conjunto concreto de empregados. Afastados, há de ser substituídos, eis que o serviço precisa ser prestado continuadamente por igual número de trabalhadores. A dispensa plúrima não tem, por último, a finalidade de reduzir o quadro do pessoal.

"Os pontos de semelhança entre dispensa plúrima e coletiva desautorizam a aceitação do critério quantitativo para a caracterização da última, pois a primeira também supõe uma pluralidade de dispensados. Algumas leis qualificam como coletiva, entretanto, a despedida, em certo período, de empregados em número superior aos que indica em função da quantidade de trabalhadores da empresa. Pode, no entanto, ser plúrima a dispensa que atinge proporção superior à estabelecida para que se considere coletiva. Nem deve perder esta conotação a despedida de empregados em pequeno número ou em número inferior às percentagens estabelecidas, se reveste os outros caracteres da dispensa coletiva".

O que se tem como princípio, em direito material do trabalho, é que a dispensa, embora sem justa causa, poderá ser ou não arbitrária, dependendo da sua causa (causa e motivo, aqui, assumem conotações diferentes). Para este efeito, tem serventia o artigo 165 da CLT (clique aqui): não são arbitrárias as demissões fundadas em "motivo disciplinar, técnico, econômico ou financeiro".

Já caminhamos, doutrinariamente, no sentido de considerar a demissão arbitrária como não coincidente com a demissão sem justa causa. Confira-se JORGE LUIZ SOUTO MAIOR, quando comentava a Convenção 158 da OIT: "Desse modo, a dispensa que não for fundada em justa causa, nos termos do art. 482, da CLT, terá que, necessariamente, ser embasada em algum motivo, sob pena de ser considerada arbitrária. (...)

"Assim, aplicados os preceitos constitucionais e legais, sob o âmbito individual, passam a existir quatro tipos de dispensa: a) a imotivada (que ora se equipara à dispensa arbitrária); b) a motivada (mas, sem justa causa); c) a com justa causa (art. 482, da CLT); e d) a discriminatória (prevista na Lei n. 9.029/95)"5 (clique aqui).

O legislador poderá sorver estes e outros conceitos já amadurecidos em doutrina para construir a regulamentação da demissão em massa.

Outro conceito não menos importante para destacar o fenômeno da demissão coletiva de sua congênere demissão plúrima é o critério, qualitativo e/ou quantitativo, para defini-lo. O critério unicamente quantitativo não é suficiente, pois é um traço comum tanto de demissões coletivas quanto de demissões plúrimas. Mas o critério meramente qualitativo também não nos parece razoável, pois o sistema jurídico não deve criar proteções adicionais a toda e qualquer dispensa coletiva, para não engessar ainda mais o atual direito material do trabalho. Em nosso ver, a melhor definição de demissão coletiva tutelável deve combinar os dois fatores: causa comum e impessoal que conduza à extinção de postos de trabalho definitivamente, e quantidade mínima de demissões simultâneas para que possam ser elegíveis medidas protecionistas adicionais criadas pela lei de demissão em massa.

No que toca ao critério quantitativo, é preciso situar o enfoque da nova regulamentação em patamar superior à natural oscilação de admissões e demissões das empresas, chamadas de turn over.

As medidas de proteção a serem criadas para as demissões coletivas devem ser preferencialmente, também, coletivas, ou pelo menos a maioria delas, tais como obrigação de comunicar a autoridade competente e sindicatos e/ou órgãos de representação interna dos trabalhadores, em determinado prazo anterior à consumação das demissões; ou a obrigação de negociar previamente as demissões coletivas com o Sindicato operário e/ou órgãos internos de representação dos trabalhadores (pode-se adotar a mediação em lugar da negociação direta); obrigação de custear requalificação e/ou recolocação no mercado de trabalho de um determinado percentual mínimo dos demitidos; aviso prévio proporcional ao tempo de casa e/ou adicional ao seguro-desemprego pago pelo INSS (adicional ao valor pago ou parcelas adicionais às pagas pelo INSS, estendendo-se a duração do seguro-desemprego); preferência na admissão (readmissão) de trabalhadores demitidos no caso de reabertura dos postos de trabalho extintos ou abertura de novos postos de trabalho (desde que compatíveis com a condição pessoal do trabalhador - v. parágrafo único do artigo 456 da CLT) etc.

A experiência alienígena também já foi compilada pela nossa doutrina, como se pode verificar, por exemplo, em estudos de AMAURI MASCARO NASCIMENTO (v., p. ex., As Dispensas Coletivas e a Convenção N. 158 da OI, "in" LTr 60-066/727).

Não temos legislação infraconstitucional para melhor enfrentar o problema da demissão coletiva, mas já amealhamos know-how científico. Falta arregaçar mangas.

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1O deputado Vicentinho apresentou o projeto de lei 6.356/2005 com seis artigos, parecendo adotar apenas o critério quantitativo para definir, no seu artigo 1o., demissão coletiva: "São consideradas demissões coletivas as ocorridas num período de 60 (sessenta) dias e que afetem 5% (cinco por cento) do número de empregados na empresa, considerada a média de empregados do ano anterior ao das demissões", excluídos os trabalhadores temporários (parágrafo 1o.), as microempresas e empresas de pequeno porte (parágrafo 2o.). O artigo 2o. do mesmo projeto, todavia, adota o critério qualitativo ao impor motivação econômica, tecnológica, estrutural ou análoga para a demissão coletiva. Apesar da precariedade do projeto, pode (ou poderia) ser um importante ponto de partida de discussão e regulamentação no Congresso Nacional.

2Essa é a nota característica das Convenções da OIT, como lembra SÉRGIO PINTO MARTINS: "A maioria das Convenções da OIT trata de regras gerais ou de princípios, determinando que a legislação e práticas nacionais venham a melhor especificar sobre o tema. É praticamente impossível, em certos casos, a Conferência da OIT ter unanimidade de tratamentos para todos os membros da organização, daí por que traçar apenas regras gerais nas convenções, que podem ser complementadas de forma melhor pela legislação e práticas nacionais" (A continuidade do Contrato de Trabalho. Atlas, São Paulo, 2000, pág. 61).

3LUIS CARLOS AMORIM ROBORTELLA registra que o modelo varguista foi erigido sobre quadro fático diferente do atual: "Enfim, as tecnologias ampliam a heterogeneidade, dividindo os trabalhadores conforme o grau de conhecimento e informação. Põem em risco, certamente, alguns pressupostos tradicionais da tutela trabalhista, tais como:

a) homogeneidade do mercado de trabalho;

b) trabalho predominantemente masculino, na indústria;

c) jornadas e salários fixos;

d) trabalho permanente para o mesmo tomador;

e) concentração dos trabalhadores no mesmo espaço físico;

f) realização, com empregados e meios próprios, de atividades-meio e atividades-fim.

"Se tais dados não mais se acham presentes, há que reformular a estratégia. É anacrônica e disfuncional a tutela coletivista e homogênea, eis que construída a partir de um quadro fático diverso" (Idéias para a reforma da legislação do trabalho, "in" Revista do Advogado n. 82 - Ano XXV, junho de 2005 - pág. 86).

4Os destaques em negrito são originais.

5MAIOR, Jorge Souto. Convenção 158 da OIT. Dispositivo que veda a dispensa arbitrária é auto-aplicável. Jus Navegandi, Teresina, ano 8, n. 475, 25 de out. 2004. Disponível em: <_https3a_ _texto.asp3f_id="5820" doutrina="" jus2.uol.com.br="">. Acesso em: 28 nov. 2006.

6Na mesma edição há formidável seqüência de artigos de outros renomados doutrinadores.

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* Advogado do escritório Demarest e Almeida Advogados















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