Migalhas de Peso

Direito Penal do Inimigo

O presente artigo tem como objetivo expor, de maneira didática, as bases do Direito Penal do Inimigo, teorizado por Günther Jakobs, e sua aplicação na legislação nacional e estrangeira.

22/2/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

Velocidades do direito penal

Como qualquer ramo do direito, o Direito Penal passa por processos de mudanças – progressos, retrocessos etc. Convencionou-se chamar esses períodos de “velocidades do direito penal”.

Jésus-Maria Silva Sanchez, em sua obra "A Expansão do Direito Penal” nos expõe, junto a uma densa e interessantíssima exposição sobre os efeitos do pós-industrialismo na sociedade e seu envolvimento com direito penal, a teorização das referidas velocidades do direito penal. Elas representam uma “preocupação com um ‘Direito Penal moderno’, cuja flexibilização dos princípios político-criminais e regras de imputação inerentes às penas privativas de liberdade ocorreriam em virtude dos anseios advindos das inseguranças e medos de uma sociedade pós industrial.”1

A partir disso, seria salutar, em um Estado Democrático de Direito, a aplicação de sanções administrativas aos crimes mais distantes do núcleo criminal do direito penal, partindo de flexibilização de critérios de imputação e garantias político-criminais. A judicialização é mantida, mas não a reprodução da pena de prisão.2

Em síntese: a primeira velocidade é representada pelo Direito Penal da prisão. É o Direito Penal tradicional, baseado nos princípios criminais clássicos, adotados, inclusive, pelo próprio Direito Penal brasileiro.3

Segundo Francisco Dirceu Barros, tem como características predominantes: I – a aplicação de uma pena privativa de liberdade como um fim; e II – observação às regras garantias penais e processuais penais.4

A segunda velocidade do direito penal, por sua vez, se compõem de penas que não levam o condenado ao cárcere, baseando-se na aplicação de penas não privativas de liberdade – privativas de direitos, multas etc. – e, de certo modo, da flexibilização de garantias penais e processuais para sua devida aplicação.

É, na terceira fase, porém, que Silva Sanches localiza o Direito Penal do inimigo, teorizado pelo jurista alemão Günther Jakobs, o descrevendo como um espaço de “privação de liberdade com regras de imputação e processuais menos estritas que as do Direito Penal de primeira velocidade”; é, portanto, composto por elementos das duas velocidades anteriores, isto é, uma pena privativa de liberdade e a flexibilização de garantias penais e processuais penais.5

Bases teóricas, aplicações e crítica.

Na obra “Direito Penal do inimigo: noções e críticas”, Jakobs nos direciona aos escritos de Jean-Jacques Rousseau, Johann Gottlieb Fichte, mas – por considerar demasiadamente abstrata a separação radical entre o cidadão e seu direito, por um lado, e o injusto do inimigo, por outro – constitui, de modo sólido, sua tese nas teorias dos jusfilósofos Thomas Hobbes e Immanuel Kant.

Hobbes, como forma de evitar a anarquia e a violência presentes no estado de natureza, postula, em sua obra “Leviatã”, que os homens – baseados na necessidade de providenciar o mínimo para sua subsistência e racionalizar seus os instintos egoísticos – saiam de sua condição homo homini lupus, por meio de um pacto social que os obriga a respeitar as leis de procura e alcance da paz, defendendo-a por todos os meios possíveis e demais os pactos e obrigações estipulados.

A observância a estas regras se dará através da entrega de suas liberdades a um único homem (ou uma assembleia), que, como força indivisível e absoluta que figura fora dos limites do pacto, será o único legitimado a interferir em todas as matérias existentes dentro do corpo social.6

O delinquente, dentro desta estrutura, como assinala Jakobs, detém o status de cidadão, mas é expurgado dele quando se torna um rebelde ou traidor. Nessa passagem, há o retrocesso do ser ao estado de natureza, o que fundamenta sua punição não como cidadão, mas como inimigo.7

Em Kant, a razão é a base para a saída do estado de natureza para ao estado civil, que se consubstanciará no contrato originário que justifica a si e ao Estado.

Ao homem, através da coação estatal, é permitido o exercício de seus direitos naturais. O estado civil passa a ser a salvaguarda dos direitos naturais, colocados não em oposição ao direito estatal, mais numa relação de complementaridade. Logo, entre ambos, o que muda não é a substância, mas a forma; o modo, não o conteúdo.8

Assim, “todos (omnes et singuli) no povo renunciam à sua liberdade externa para readquiri-la imediatamente enquanto membros de uma comunidade política, ou seja, enquanto membros do povo considerado como Estado (universi).”9

Seria lícito, por consequência, à toda pessoa, obrigar os indivíduos no estado de natureza a partilharem dos deveres e obrigações inerentes à comunidade, pois, os estranhos selvagens vivem em uma estrutura onde inexistem regras comuns de comportamento e, por isso, não há previsibilidade e segurança. Por essa razão, é justificável observá-los como uma ameaça. Caso não partilhem da vontade gregária e ameacem o bem-estar da coletividade, devem ser punidos como inimigos, não como cidadãos.10

Constitui-se, portanto, as bases teóricas para a separação entre cidadão e inimigo, ou melhor, entre um direito penal que tratará do cidadão e um outro que tratará do inimigo. Deste modo, poderíamos dizer que o Direito Penal do Inimigo é direcionado àqueles que visam afrontar as estruturas do Estado, isto é, sua ordem e coletividade.

Passa-se, destarte, do direito penal do fato para o direito penal do autor, no qual seria inaceitável conceder direitos e garantias penais e constitucionais para indivíduos que fazem do crime um meio de vida – terrorista, autores de crimes sexuais violentos, integrantes de organizações criminosas etc. – e criminosos comuns, posto que os primeiros baseiam sua conduta na falta de garantia do mínimo de segurança cognitiva.

Brilhantemente, Jésus-Maria Silva Sanchez nos ensina:

“A transição do “cidadão” ao “inimigo” seria produzida mediante a reincidência, a habitualidade, a delinquência profissional e, finalmente, a integração em organizações delitivas estruturadas."11

Por isso, o homicida não pode ser considerado um inimigo, pois, diferente do terrorista e dos demais citados anteriormente, não faz do ato criminoso um meio de vida.

Aos que fazem da ilicitude uma prática constante, garantias essenciais – como o contraditório e ampla defesa – junto de princípios penais constitucionais ou meramente penais – legalidade, anterioridade, taxatividade – poderiam ser mitigados, flexibilizados.

Ademais, caberia a punição aos seus atos já no período de preparação do crime, não havendo necessidade de seu exaurimento, admitindo-se, adiante, sanções penais desproporcionais à gravidade do fato praticado.

Em suma: No plano material, o Direito Penal do Inimigo apresenta uma criminalização de condutas potencialmente perigosas, ou seja, há uma ampliação da criminalização; no âmbito processual, há um aumento da privação de liberdade que ignora o rigor do devido processo legal.

No Brasil, a lei 8.072/90 (lei de Crimes Hediondos) é um exemplo de aplicação do Direito penal do inimigo. O art. 2° deixa isso claro, uma vez que os condenados citados não compartilham dos mesmos direitos dos demais – (I) anistia, graça e indulto; (II) fiança. Ademais, também podemos apontar o art. 288 do Código Penal, pois pune o ato meramente preparatório; e o art. 233, pois pune os tipos de mera conduta, como o ato obsceno.12

Como exemplo de sua presença em legislações estrangeiras, podemos observá-lo na lei 52/03 de Portugal, em seu artigo 3°, n° 3, que criminaliza atos preparatórios de organização ou associação terrorista.13

Igualmente, no Código Penal Alemão, em seu §129, b, com a criminalização da constituição terrorista no estrangeiro; utilização pública de símbolos do nacional-socialismo (§ 86); ou na ação criminosa que derive de conduta profissional ou habitual (§§ 260, 292, III, 302 a II 2, n° 2).14

Não é necessário dizer o caráter excepcional que essas regras possuem na legislação nacional. Em virtude do exposto, consideramos a aplicação plena do Direito Penal do Inimigo não só inconstitucional e nocivo ao Estado de direito, como inadequada à realidade brasileira, onde a desigualdade15, a violência16 e o descaso social17 são os reais fatores a serem combatidos.

E mesmo em razão destes fatores, esta espécie de direito penal excepcional que entra em contradição com os direitos e garantias do Estado Liberal e tratados internacionais18, como nos lembra Guilherme de Souza Nucci, pode servir como meio ou fim para diversas práticas negativas, tais como: a demonização do infrator; discurso do Estado para ameaçar seus inimigos e não para falar aos seus cidadãos; ou até mesmo como uma forma de convencer as massas em anos eleitorais que, diante da alta criminalidade19, se verá cercada de promessas demagógicas que basearão a segurança pública na rigidez do discurso politico da lei e ordem.20

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1 MASSON, Cleber – Curso de Direito Penal, p. 206.

2 SANCHEZ, Jésus-Maria Silva – A expansão do Direito Penal, p. 189

3 Idem. p. 193.

4 Tratado Doutrinário de Direito Penal – P. 116.

5 A expansão do Direito Penal, P. 193 e 194.

6 REALE, Giovanni – História de filosofia: de Spinoza a Kant, p.100.

7 JAKOBS, P. 19.

8 BOBBIO, Norberto – Direito e Estado no pensamento de Kant, p. 191 e 192.

9 KANT, Immanuel – Metafísica dos Costumes, pg. 119.

10 JAKOBS, p. 20 apud KANT, p. 341 e ss., 349 (2º apartado, nota).

11 SANCHEZ, Pg. 149.

12 BARROS, Francisco Dirceu – Tratado Doutrinário de Direito Penal, p. 117.

13 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Direito penal do inimigo e o terrorismo o progresso ao retrocesso, p. 94.

14 Idem, p. 95.

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18 P. ex. Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura; Pacto de San Jose da Costa Rica, entre muitos outros.

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20 NUCCI, Guilherme de Souza – Manual de Direito Penal, p. 522.

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SANCHEZ, Jésus-Maria Silva. A expansão do Direito Penal. 3° edição. Revista dos tribunais.

MASSON, Cleber Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120) – vol. 1 / Cleber Masson. – 13. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019.

BARROS, Francisco Dirceu. Tratado Doutrinário de Direito Penal. JHMizuno, São Paulo, 2018.

JAKOBS, Günther Direito Penal do inimigo: noções e críticas / Günther Jakobs, Manuel Cancio Meliá; org. e trad. André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 6. ed. atual. e ampl., 2. tir. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.

REALE, Giovanni História da filosofia: de Spinoza a Kant, v. 4 1 Giovanni Reale. Dario Antiseri. - Sio Paulo: Paulus. 2005.

BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant/Norberto Bobbio – 2° edição; tradução: Alfredo Fait. – São Paulo: Mandarim, 2000.

KANT, Immanuel, 1724-1804. Metafísica dos Costumes / Immanuel Kant; tradução [primeira parte] Clélia Aparecida Martins, tradução [segunda parte] Bruno Nadai, Diego Kosbiau e Monique Hulshof. – Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2013. – (Coleção Pensamento Humano).

VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo, O progresso ao Retrocesso.  Edições Almedina. S.A. 2010.

NUCCI, Guilherme de Souza Manual de direito penal / Guilherme de Souza Nucci. – 16. ed. – Rio de Janeiro: Forensse, 2020.

Guilherme Rodrigues de Matos do Nascimento
Estudante do 3° ano do curso de Direito, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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