Migalhas de Peso

O risco Brasil... Ninguém sabe? Ninguém viu?

O Brasil é uma França bourbônico-napoleônica-acadêmica que não mudou depois de 1789. Ninguém viu?

12/2/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

"(...) Up to the present I was ignorant enough to believe that what we call administrative justice was a creation of Napoleon. It is purely the old regime preserved (...) 'I am struck by the huge sums which have always been paid to redeem municipal offices', writes an intendant to the controller-general in 1764. 'The sum of all that money, expended in useful works, would have been to the profit of the town, which, however, has experienced only the weight of authority and the privileges of the officeholders'. I cannot find any more shameful aspect of the old regime anywhere."1 Alexis de Tocqueville

Em período carnavalesco – se houvesse algum juízo, não haveria Carnaval nenhum –, calha bem falar do “Risco Brasil”, desse estado – de coisas – permanente, e agudo, de folia, insegurança e descrédito. Um estado que alimenta o Estado, e que por este é retro alimentado, numa simbiose diabólica que nos ensina, no avesso da ética, a mutuamente não confiar e a não ser confiável.

É inglório contratar com o Poder Público. Não apenas pelo fato de o contrato ser crivado de – autoritárias, e hoje absolutamente injustificáveis, à luz de um Estado Democrático de Direito – cláusulas exorbitantes. É inglório porque exorbitante – e nada retilínea – é a própria conduta do Poder Público. A primazia do interesse público – e aqui puxamos o fio da meada da nossa história: colonial, imperial ou republicana – é a nova roupagem do velho The King can do no wrong. E serve como um placebo de ocasião, invocável para tudo, até para alterar-se as regras do jogo no meio da partida.

O exemplo mais recente, e alucinógeno, é o caso – de extremada patologia republicana – do ex-prefeito do Rio de Janeiro. Uma humilhação, nacional e internacional, para o país. Um alto mandatário que, para fins eleitoreiros, e no rastro da nossa mais fiel e genuína tradição demagógica, fez do Judiciário, notadamente de uma Corte Superior, um jogo de tentativa e erro1. Mas tal episódio destoou da realidade apenas em grau, não em essência, nem em número. As velhas e marotas estratégias são recorrentes, e conhecidas. Assinale-se, v.g., um padrão corriqueiro em concessões:

(i) O Poder Público é inadimplente, e não cumpre as obrigações ajustadas; ou, então, as circunstâncias que presidiram a celebração do contrato, com a fixação de sua equação econômico-financeira, alteram-se radicalmente, por vários fatores, endógenos e exógenos;

(ii) Diante disso, a concessionária formula, circunstanciadamente, reiterados pleitos de revisão, um em seguida ao outro;

(iii) O Poder Público silencia a respeito, senta em cima deles, engaveta-os, e não os responde; em seguida – tudo a sinalizar que, durante todo esse conveniente silêncio, estava a tramar um contra-ataque – o Poder Público passa a fabricar alegados inadimplementos da concessionária, pretéritos e retroativos, até então jamais ventilados, de modo a pavimentar o caminho para uma solução final de caducidade;

(iv) O que era, então, ou deveria ser, não era bem assim, ou passa a não ser assim; se contratos implicam riscos, estes são todos do contratado; o Poder Público é intangível, e a banca não perde nunca; é a primazia do interesse público ...;

(v) Por fim, o golpe mortal: para asfixiar a concessionária, o Poder Público, lá do auto da sua autoridade de império, determina, de cima para baixo, a redução de preço da tarifa. Quantas vezes a experiência já não nos terá revelado esse cínico, autoritário e cruel padrão de conduta?

Os exemplos, de fato, pululam – e ululam. Mas basta de abstrações. Descortine-se, aqui, uma situação concreta, a desvelar, também por aqui, nosso old regime administrativo-autocrático:

(a) Por licitação, uma concessionária obtém, pelo prazo de 30 anos, a operação de uma malha ferroviária de proporções continentais, de mais de 7000 km;

(b) Junto com a concessão, em contrato geminado, recebe, também – às cegas, e em porteira fechada, isto é, sem poder refugar –, em arrendamento, por igual prazo, bens operacionais (trilhos, vagões, trens, estações, pátios etc);

(c) Escusado dizer que a malha recebida, junto com os bens que a guarneciam, era uma malha sucateada, destruída e depauperada, em petição de ruína e miséria; unidades abandonadas; vilas e comunidades já consolidadas em vários trechos; bares a funcionar em cima de trilhos; florestas a cobrir vastas extensões etc.;

(d) Nesse contexto, a obrigação da concessionária era de revigorar, paulatinamente, ao longo do prazo da concessão, o deplorável estado da arte recebido, com a realização planeada de investimentos sob a orientação e direcionamento da ANTT, fiscal e reguladora da concessão; à agência, com efeito, e só a ela, caberia definir os trechos prioritários, levando em conta, para tal, as necessidades da demanda e os interesses estratégicos nacionais na escoação de insumos, para fins de exportação ou abastecimento do mercado interno;

(e) Por essa universalidade de bens recebida às cegas, a concessionária pagaria um preço global; e, ao termo da concessão, deveria haver um encontro de contas, para fins de acertamento entre o que foi investido, e melhorado, e o que porventura ainda tiver remanescido avariado ou intocado;

(f) essa era a equação econômico-financeira do contrato; essa, pois, era a fórmula objetiva que deveria ser seguida, praticada e respeitada, por encerrar um direito subjetivo da concessionária; em síntese: (i) a ANTT orientaria a prioridade dos investimentos, e (ii) a concessionária disporia, por força de lei1 e, sobretudo, do contrato, do prazo da concessão para realizá-los, sem solavancos ou surpresas;

(g) agora, no entanto, vem a peripécia, com a virada de mesa, a subversão das regras estabelecidas, e a má sorte da concessionária: veio, enfim, a hora do “Risco Brasil”; a arrendatária dos bens, a extinta RFFSA, agonizava financeiramente já antes da concessão, fruto da ineficiência administrativo-operacional de décadas; como o quadro se agravou, e, moribunda, ela ingressou em estado de liquidação, o Poder Público concebeu, in extremis, uma última cartada, com vistas a tentar fazer caixa rápido: pinçou, estrategicamente, ao longo dos mais de 7000 km de concessão, bens esparsos, aqui e acolá, avariados (muitos, inclusive, assim já se encontravam antes do arrendamento), e pulverizou um lote de demandas judiciais, cada qual tendo por objeto uma localidade, ou trecho, ou bens da concessão, nas quais postulou, já em sede de tutela antecipada, a condenação da concessionárias em obrigação sumária de pagar supostas indenizações indevidas; enfim: deu com uma mão, e sem nenhum escrúpulo, ou cerimônia, pretendeu tirar com a outra, sem respeitar a lógica de sistema materializada no contrato que ela mesmo estipulou;

(h) é claro que tais pleitos, prima facie descabidos, movidos pelo desespero, não resultaram, nem poderiam ter resultado, em nada; e é claro, também, que a RFFSA não se salvou, tendo sido, afinal, extinta; a União, então, como sucessora legal, assumiu o polo ativo dessas demandas espúrias.

E tais demandas deveriam ser extintas. Afinal, (i) nem o Poder Concedente dispunha de legitimidade para reclamar bens afetados à concessão; (i) nem poderia a concessionária ser obrigada a pagar indenizações antes do encontro final de contas ao termo da concessão, porque tais pleitos seriam inexigíveis – a hipótese, pois, era de falta de interesse de agir. E, assim, de fato, ocorreu: todas as demandas, por fas ou por nefas, foram extintas, por sentença, pelos Juízos de primeiro grau.

Mas o TRF da 2ª Região as ressuscitou. Entendeu que a União, isto é, o próprio Poder Concedente, deteria legitimidade e interesse para perseguir, desde já, no curso da concessão, tais indenizações. Ele fez o papel de Justiça da União (era necessário, aliás, rever o enredo das chamadas justiças especializadas, que já nascem parciais e com fins direcionados). O fundamento adotado - que não foi propriamente um fundamento, mas uma afirmação - foi o de que, simplesmente, a União assim poderia agir: porque o interesse público – premissa velada – justifica tudo; e porque é baixa – premissa explícita – a nossa tradição de respeito a contratos. O TRF da 2ª Região aplicou o “Risco Brasil”.

Mas o risco Brasil... Ninguém sabe? Ninguém viu? O óbvio é o mais difícil de ver. E esse risco é silencioso, ardiloso e difuso – ele dorme inconsciente, incrustado nas camadas mais fundas da sociedade adormecida. E é praticado todos os dias, de modo automático, nos pequenos gestos, nas rotinas estabelecidas, nas premissas veladas aceitas como pontos de partida. Nós dele comungamos no cotidiano. Então ela se ramifica, e cresce, e se perpetua, de geração em geração. O “Risco Brasil”:

(a) é a decadente e atávica primazia do interesse público; é o nosso velho regime administrativo, que sobrevive e se sobrepõe a qualquer regime, Constituição, ou garantia fundamental; é o nosso Getulismo congênito; é o Estado para tudo, por tudo, e contra todos; é o nosso fascismo tupiniquim; é o Poder über alles; é o Leviatã paternal, que fica com a melhor parte, e devora o osso dos seus filhos;

(b) é o espargimento do Poder, como muleta e promessa de salvação, a todos os setores da sociedade; é o controle estatal – brejeiro e malemolente, mas direto – do fluxo da vida; é o cerceamento de sinais vitais mínimos de vida independente e espontânea; é o absolutismo do Poder, na forma de seu aparelhamento diluído e coletivizado, como jamais houve antes na história; e sabemos da velha advertência de Lord Acton sobre o poder absoluto: aquele que corrompe absolutamente;

(c) é essa subordinação – medieval, mística e infantil – do privado ao público, do individual ao coletivo; é a crença massivamente lobotomizada na mídia e na cultura de que a felicidade está no público, e que este deve definir aquela; é essa manipulação mental, pejada de preconceitos imemoriais, de que o indivíduo é egoísta e culpado, e o público é bom e salvador;

(d) é a burocracia cimeira, o estamento privilegiado da pólis, grávido de regalias aristocráticas, sustentadas por seus guardiães teóricos; é a ciranda viciada da fama rasa e rala, a que assistimos diariamente – poder, academia e mídia –, e que faz de burocratas celebridades diante de uma sociedade entorpecida;

(e) é a tirania do principismo acadêmico e servil, e sua fábrica diária de teorismos emplastados de vênias, obséquios e conjecturas cerebrinas, tudo a, consciente ou inconscientemente, alimentar o Poder Público sempre com novas originais vias de escape prêt-a-porter, aptas para qualquer ocasião; é a ausência, entre nós, de pensamento livre, independente e crítico contra esse estado de coisas;

(f) é o Ministério Público arrogar-se a condição de xerife, acima da lei, ou criador de sua própria lei; são os fundos sem fundos das ações coletivas, inflados por multas processuais e supermultas - não previstas em lei, decorrentes de condenações em danos morais coletivos –, que em nada revertem aos consumidores, mas alimentam essa máquina industrial de receita pública e autopromoção midiática; é a atuação desarticulada, incoerente e de rapina do Poder Público, que, a partir do mesmo fato ou evento, lança-se contra o infrator, nas mais diversas searas, para puni-lo, cada órgão, ente ou função a pretender colher, em nome do interesse público, sua parte vantajosa no ilícito;

(g) é o Poder Legislativo se omitir, ou evadir-se do seu dever de clareza e transparência ao legislar por cláusulas abertas ou por conceitos indeterminados, que admitam qualquer preenchimento de conveniência a posteriori; é o Poder Executivo agir, ainda hoje, e mais do que nunca, em pleno Estado Democrático de Direito, por populismo e queremismo; é o Poder Judiciário legislar e governar; são juízes a fazerem o papel místico de medicine man, e a interferirem em tudo, até em honorários de advogados – tema já definido na lei; são advogados públicos, que já patrocinam, de modo estável e constante (com aposentadorias cheias ao final de carreira, às vezes até precoce), o maior cliente da Justiça – o Estado –, pretenderem receber, também, honorários de sucumbência, como se fossem advogados privados;

(h) é o fato de, passados mais de trinta anos da nossa Constituição cidadã – a nossa Constituição holístico-altruísta –, 40% das cidades brasileiras não terem esgoto3 e saneamento básico, e aproximadamente 16% da população brasileira não ter água limpa para beber e se lavar4 (sem falar aqui da água peculiar servida numa grande cidade como o Rio de Janeiro); então agora os publicistas se deram conta disso, e erigiram, em 2020,5 um novo marco regulatório do setor, sempre uma ótima oportunidade, é claro, para a realização de convenções e simpósios, com a edição de livros e a organização de eventos acadêmicos e promocionais, para, no final do dia, tudo ficar e seguir na mesma;

(i) são doações constantes e forçadas, na forma de impostos, que os cidadãos de terceira classe fazem ao Poder Público, sem nada receber em troca; é o fato de ele se submeter a uma carga tributária asfixiante e confiscatória, e viver, ao mesmo tempo, numa economia estagnada, ainda calcada, basicamente, em extrativismo (somos um país abençoado por Deus) e produção de gado e grãos; é defrontar-se, depois de tudo isso, com pasmo, com a realidade surreal de o Distrito Federal, onde nada se produz, ser o maior PIB per capita6 do país;

(j) é o fato de o cidadão comum, de terceira classe para baixo, para ter acesso ao sistema de saúde, ter de contratar um plano privado, ou então ter de submeter-se às agruras da via crucis do SUS; é o fato de ele, isso se puder, ter de pagar uma educação básica privada; é o fato de transitar por rodovias precárias e inseguras (muitas delas são promessas abandonadas de décadas), com carros blindados (para os poucos que podem ter acesso a essa proteção, embora já tenhamos a maior frota per capita do mundo7); é sair de casa e não saber se vai voltar; é ficar em casa com medo; é viver sob o risco constante de já ter sido passado para trás;

(k) é o fato de a PGFN ser o melhor serviço público prestado no país (ai daquele, com efeito, que não paga impostos...); é o Poder Público não pagar precatórios, ou arrastar o seu pagamento até a morte de gerações e gerações de seus credores;

(l) é, ainda, depois de tudo isso, numa enumeração sem fim, nesse contexto de obsolescência e ineficiência, jactar-se, como cortina de ferro, com vistas a desviar-nos o olhar do quadro real e maior, da beleza do microssistema do CDC...

Ninguém viu? O Brasil é uma França bourbônico-napoleônica-acadêmica que não mudou depois de 1789. Ninguém viu? A sociedade financia esses lautos ócios da nossa Versalhes. Ninguém viu? O publicismo é um entrave civilizatório a puxar-nos para baixo e para trás. Ninguém viu? O risco Brasil é Macunaíma no Poder – o ícone da nossa intelligentsia, o nosso modo de ser tropical, e o nosso subconsciente sócio-cultural. O herói sem nenhum caráter plantou a semente do desastre. Hoje, ele “brinca” algures, vê todo esse cafarnaum, e ri desbragadamente de nós.

__________

1- No Rio, presidente do STJ ajuda prefeito a rasgar contrato

2- Arts. 35, §§ 1º e 2º, e 36, da Lei nº 8.987/95

5- Lei 14.026/20.

Bruno Di Marino
Advogado.

Álvaro Ferraz
Mestre em Direito Processual Civil, especialista em Direito Processual Civil e advogado.

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