Introdução
Na sequência de artigo anterior sobre a LLE (A "lei da liberdade econômica" e a teoria geral do contrato, publicado neste Migalhas em 27.1.2021), desta vez será examinado o tratamento em relação ao direito societário. Já escrevemos anteriormente alguns textos sobre alguns aspectos abordados na aludida lei, pretendendo aqui revisitá-los sob a sua ótica, para verificar o que mudou – se é que mudou e em que sentido. Seja lembrado que, em nossa visão, a LLE tem uma natureza fortemente declaratória, com as características de um regulamento de normas preexistentes a partir da Constituição Federal, ao lado de algumas inovações por ela determinada.
1. As relações entre a pessoa jurídica e seus participantes
Inicialmente vejamos que foi inserido pela LLE no CC/2002 o art. 49-A, verbis:
"Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores.
Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos."
Quanto ao caput trata-se de uma declaração sobre princípios já assentados no direito brasileiro desde o advento do Código Civil Brasileiro de 1916, a respeito dos quais o bom entendimento sempre foi esse, o da separação entre a pessoa jurídica e seus participantes, estes na qualidade de sócios, associados, instituidores ou administradores. Tal separação tem uma importância extremamente elevada quando se trata da esfera patrimonial, sabendo-se que os patrimônios de uma e dos outros não se confundem, do que decorre, em regra que não existe transmissão de responsabilidade por dívidas entre os dois lados, a não ser que lei especial a estabeleça. Isto acontece, por exemplo com a sociedade em nome coletivo, em relação à qual os seus sócios respondem subsidiariamente pelas obrigações daquela quando o seu patrimônio for inexistente ou insuficiente para o seu pagamento.
Por que, então, essa mudança legislativa expressa para repetir um princípio já integrado no nosso direito? Porque – é lamentável dizer – que, como se sabe, muitos julgadores têm em suas decisões passado por cima do limite estrutural das pessoas jurídicas, para o fim de tornar os seus participantes dotados de uma condição jurídica de verdadeiros fiadores daquelas e, mais lamentável ainda, do equivalente a seus avalistas. Estes, como se sabe, não são favorecidos com o benefício de ordem estendido aos primeiros, ou seja, o credor podia dirigir a sua pretensão diretamente contra o patrimônio do sócio de uma sociedade sob a alegação de que não encontrou bens no patrimônio daquela para o fim da satisfação do seu crédito.
Decisões na linha acima têm sido proferidas em profusão nos últimos anos, não somente no Rio Grande do Sul, em relação ao direito do consumidor, do direito do trabalho e do direito tributário. Elas penetraram pela atuação subterrânea de sapadores jurídicos também no direito civil e comercial. Eles têm derrubado as muralhas do direito que, muitas vezes, caem sobre as suas próprias cabeças.
O parágrafo único do art. 49-A é ridículo, para dizer o menos. Mas, tal como deve-se explicar muito bem a uma criança que ela não deve surripiar biscoitos da lata antes do almoço e que deve comer frutas, infelizmente suas diretrizes encontram na prática um lugar justificado sob o bom calor do sol.
Se foi o Código Civil quem instituiu as pessoas jurídicas, claro que não era necessário afirmar por outra lei que elas são instrumentos lícitos. Trata-se de chover no molhado.
Segue-se outra declaração que tem o odor de análise econômica do direito – AED, quando a norma faz uma referência à alocação e à segregação de riscos como intuito dos instituidores de pessoas jurídicas, como se isso já não viesse sendo feito no campo do direito comercial, por exemplo, desde tempos de antanho, especialmente na Idade Média. O próprio nascimento das companhias, a exemplo das Companhias das Índias Ocidentais e Orientais, encerrou precisamente a alocação de recursos dos acionistas, segregados do seu patrimônio pessoal, tendo em conta que o risco de uma expedição marítima saia quase do plano do risco, beirando a incerteza. Como se percebe, o legislador da LLE estava pensando certamente nas sociedades empresárias, tendo ampliado o foco de forma desmesurada.
Acrescente-se que a "finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos" não corresponde ao objeto de toda e qualquer pessoa jurídica. Imagine-se, por exemplo, sociedades de advogados, médicos, arquitetos, engenheiros, etc., cuja finalidade está em explorar uma atividade profissional liberal na busca de lucros, não havendo preocupação direta com os demais objetivos referidos na norma sob comentário.
Em seguida, a LLE determinou nova redação ao art. 50 do CC/2002, em relação à qual eu faço a comparação com a anterior para melhor compreensão do resultado novo que se pretendeu alcançar. Para esse fim transcrevo abaixo um quadro comparativo que já foi usado em outro texto, com o fim de melhor compreensão da questão posta, aproveitando também argumentos ali utilizados.
Versão original |
Versão resultante da lei 13.874/2019 |
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. |
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. § 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. § 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. § 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. § 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. § 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. |
Em relação ao caput do art. 50 não há novidade significativa quanto à redação antiga e a nova.
Mas deve ser observado que, ao se levantar o véu da personalidade jurídica, o resultado buscado era o de fazer cair a imputação da responsabilidade sobre o patrimônio dos sócios que haviam usado a sociedade para atrás dela se esconder dos credores1. A doutrina em questão, ora legislada, não se aplicava aos administradores da sociedade desconsiderada. Isso se explica pelo simples fato de que o efeito da superação da personalidade jurídica nunca foi tido como permanente e generalizado, mas temporário (num átimo, diriam alguns otimistas), ficando ela mantida para todos os demais efeitos legais, especialmente o da separação patrimonial entre sócio e sociedade.
Significa dizer (sem ter em conta aqui a natureza fiduciária dos deveres dos administradores, própria do ordenamento jurídico anglo-norte-americano) que o perfil jurídico da sociedade não muda e que, portanto, os administradores continuam operando como órgãos da sociedade e sua responsabilidade se dá via-de-regra apenas internamente como consequência de haverem abusado dos seus poderes. A sociedade responde diretamente diante de terceiros e volta-se internamento contra os seus administradores cuja gestão causou prejuízo para aqueles2. Dessa forma, desconsiderada a personalidade jurídica, o seu patrimônio dos administradores deveria ficar intacto. Portanto, aqui o legislador inovou, tendo para tanto adotado uma má doutrina e uma má jurisprudência.
Mas coloca-se um sério problema de choque aparente de normas, pois, em primeiro lugar, o que diz a nova redação do art. 50 contraria expressamente o tratamento dado à sociedade limitada no próprio CC/2002, no seu artigo 1.052, onde se lê:
"Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social."
E é importantíssimo observar que esse art. 1.052 recebeu dois novos parágrafos pela própria LLE, a qual não mexeu no caput. Esse ponto havia passado em branco quando da elaboração do artigo acima citado, pelo qual agora me penitencio, se bem que o foco ali era outro.
Assim sendo, o regime jurídico de responsabilidade das sociedades limitadas não sofreu em nossa opinião modificações pela LLE e isto forçosamente se aplica aos seus administradores que, na qualidade jurídica de órgão e não de sócios, não podem ser alcançados pela desconsideração da personalidade jurídica daquela. Isto porque a LLE, pelos seus próprios objetivos, não teria competência para alterar norma especial relativa ao tipo societário das limitadas.
Quanto às sociedades anônimas, sua tutela é feita, como se sabe, por outra lei especial, de número 6.404/1976, que, seguindo o perfil histórico desse tipo, estabelece que os sócios não são responsáveis pelas dívidas sociais e que os administradores somente podem sofrer uma responsabilidade no âmbito interno, a teor dos seus artigos 1º, 158 e 159.
Voltando ao texto do art. 50, as novidades ficaram explicitadas nos seus parágrafos, percebendo-se o intuito não expressamente declarado de se colocar um limite à utilização do instituto em tela pelo julgador. Novo tipo de lei, de natureza didática...
Há problemas diversos conforme veremos em seguida.
Pelo parágrafo 1º deve-se obrigatoriamente ter em conta uma interpretação teleológica, consistente em que o desvio de finalidade foi construído sobre dois alicerces finalísticos cumulativos de natureza dolosa: (i) lesar credores; e (ii) praticar atos ilícitos. Somente assim o tipo se mostra completo. Significa dizer que um desvio de finalidade culposo fica fora da sua caracterização.
Acrescenta o § 5º que não é desvio de finalidade o crescimento da empresa ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. Só faltava essa, um ataque direto ao fim da própria empresa (condenada a viver dentro desse pensamento a uma situação de marasmo econômico) e à liberdade de iniciativa, que costumava ser constitucionalmente protegida. Acho que o nosso amigo Conselheiro Acácio ficou irritadíssimo com essa concorrência inusitada.
No tocante à ausência de separação patrimonial entre o patrimônio da sociedade e o dos sócios a lista do parágrafo 2º é exemplificativa, devendo se ter em conta uma realidade em tal sentido que se veja comprovada.
O parágrafo 3º apresenta uma inteligência hermética. Afinal de contas, o que é a extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica? Em primeiro lugar, as obrigações dos sócios diante da sociedade do ponto de vista patrimonial consistem no dever de integralização do capital. Quanto aos administradores constam do CC/2002 (sociedade limitada) e lei 6.404/1976) e no fundo correspondem aos deveres diligência, lealdade e informação, que são de natureza interna. Assim sendo, mais uma vez, o que tem a ver a desconsideração da personalidade jurídica com essas questões? Parece-nos que nada.
Por sua vez o § 4º explica (como se esse fosse o papel de uma lei) que a mera existência de grupo econômico, ausente o abuso da personalidade jurídica não autoriza a operação de desconsideração da personalidade jurídica. Esse foi um recado direto ao Judiciário, especialmente nos campos do direito do consumidor e trabalhista, para que não levam a coisa de forma tão leviana, conforme já aconteceu inúmeras vezes.
Como norma propedêutica no tocante ao direito societário a LLE trouxe uma contribuição que deve limitar o abuso dos julgadores na responsabilização dos sócios e na indevida extensão aos administradores, marcando-se aqui a vigência nas normas especiais sobre a sociedade limitada e a anônima.
2. Uma mexidinha perfunctória na Lei das Sociedades Anônimas
Neste caso a LLE tão somente confirmou a medida que já havia sido determinada pela MP 881/2019, no sentido da dispensa da assinatura pelo acionista de lista ou do boletim relativo à subscrição de ações quando se trata de oferta pública cuja liquidação ocorra por meio de sistema administrado por entidade administradora de mercados organizados de valores mobiliários.
3. Do fundo de investimento
Nesse caso a LLE criou o novo Capítulo X, do Título III do CC/2002, que instituiu o tratamento do fundo de investimento nos novos artigos 1.368-C a 1.368-F. Trata-se de uma intromissão indevida no Código Civil, já que o tema diz respeito ao mercado de capitais, o que é claramente posto nos parágrafos do art. 1.368-C, sendo o lugar adequado, evidentemente, a lei 6.385/1976.
Não serão aprofundadas nos limites deste texto discussões sobre esse instituto, voltando a abordagem diretamente para o foi trazido pela LLE a seu respeito, entendendo-se que ele se coloca no plano dos objetivos desta lei e dos seus princípios, dos quais já foi falado no texto anterior.
Nos termos do art. 1.368-C o fundo de investimento é um condomínio de natureza especial, constituído pelos interessados por meio de uma comunhão de recursos, com a finalidade de sua aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza.
Na forma acima ele se coloca ao lado do condomínio geral, objeto dos artigos 1.314 a 1.358-A do CC/2002, de cuja tutela foi inteiramente afastado, segundo dispõe o parágrafo do art. 1.368-C da LLE. Sem terem sido estabelecidas ressalvas é possível que se verifiquem eventuais omissões da LLE quanto ao condomínio em tela, que não poderiam ser supridas pelos dispositivos do condomínio voluntário do CC/2002.
Conforme foi dito linhas acima, residindo esse condomínio na área do mercado de capitais, o regulamento da lei foi remetido para a competência da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, cuja publicidade e oponibilidade de efeitos em relação a terceiros resulta do fato do registo dos regulamentos perante esse agente regulador (art. 1.368, §§ 2º e 3º).
Em consonância do princípio da liberdade de iniciativa presente na LLE e nos termos da regulamentação de competência da CVM, são apresentadas algumas alternativas de natureza facultativa no art. 1.368-D da LLE, conforme abaixo:
I - limitação da responsabilidade de cada investidor ao valor de suas cotas;
II - limitação da responsabilidade, bem como parâmetros de sua aferição, dos prestadores de serviços do fundo de investimento, perante o condomínio e entre si, ao cumprimento dos deveres particulares de cada um, sem solidariedade; e
III - classes de cotas com direitos e obrigações distintos, com possibilidade de constituir patrimônio segregado para cada classe
Na forma do § 1º do referido artigo, a instituição de responsabilidade limitada por meio de reforma do regulamento de fundo que não a apresentava abrangerá somente os fatos ocorridos depois dessa mudança, o que respeita o ato jurídico perfeito.
Evidentemente, é de bom alvitre, na consecução da segurança dos investidores e dos agentes que operarem com esse fundo de investimento a adoção das opções relativas aos itens I e II, acima, considerando-se que as aplicações correspondentes apresentam o risco normal do mercado de capitais. Não por outra razão o § 2º do art. 1.368-D da LLE dispõe que a avaliação de responsabilidade dos prestadores de serviço deverá levar sempre em consideração os riscos inerentes às aplicações nos mercados de atuação do fundo de investimento e a natureza de obrigação de meio de seus serviços. Esse parâmetro é essencial para a delimitação de eventuais condenações pelos julgadores em cada caso concreto.
Por sua vez, nos termos do item III, o patrimônio segregado, resultante da existência de classes de cotas com direitos e obrigações distintos entre umas e outras, acarreta o efeito de que uma responsabilidade eventual somente poderá alcançar o respectivo patrimônio.
No tocante à responsabilidade desses fundos de investimento, o art. 1.368-E a estabelece da seguinte forma:
(i) Ela é direta pelas obrigações legais e contratuais por eles assumidas, nos termos do seu regulamento ou conforme disposições baixadas pela CVM;
(ii) Não havendo patrimônio suficiente para satisfação das obrigações do fundo de investimento, aplicar-se-ão as regras concernentes aos artigos 955 a 965 do CC/2002, que tratam das preferências e dos privilégios creditórios, aqui não analisados;
(iii) A insolvência do fundo poderá ser requerida judicialmente por credores; pela deliberação própria dos seus cotistas, conforme o seu regulamento ou as disposições baixadas pela CVM.
Finalmente no art. 1.368-F ficou determinado que os fundos de investimento constituídos por leis específicas deverão seguir as disposições estabelecidas pela LLE, no que for cabível.
Conclusões
Conforme foi visto ao longo desse texto, muitas disposições da LLE aqui comentadas são repetição do que já existe em outras normas, servindo o tratamento em causa para a sua sistematização e orientação didática, o que é estranho como finalidade de uma lei, mas de alguma forma aceitável para o fim de fechar brechas que os julgadores vinham alargando de forma desmedida, especialmente no tocante à desconsideração da personalidade jurídica.
De outra parte, a sistematização dos fundos de investimento que operam no mercado de capitais, ainda que em lugar não apropriado, serviu para construir alguns critérios objetivos na sua constituição, funcionamento, responsabilidade e insolvência.
Mas é de se esperar que leis dessa índole não prosperem.
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1 Cf. Rubens Requião, ob. cit., p. 283).
2 Não é este o lugar para fazermos uma apreciação das situações em que o administrador extrapola os seus poderes de forma clara e direta (a conhecida doutrina dos atos ultra vires societatis), contrariando a lei, o contrato social e o estatuto, limites dos quais os terceiros não poderiam negar desconhecimento. Em tais situações, excepcionalmente, o administrador poderia ser responsabilizado diretamente.