A Organização Mundial da Saúde – OMS declarou, em 30/1/20, situação de emergência em saúde pública de impacto internacional em razão da covid-19, elevando-a, em 11/3/20, ao grau de doença pandêmica.
Em âmbito nacional, o Ministério da Saúde declarou, por meio da portaria 188, de 03 de fevereiro de 2020, emergência em saúde pública de importância nacional, enquanto o presidente da República editou o decreto 7.616, de 17 de novembro de 2011. De tais instrumentos, o Congresso Nacional aprovou, em 20/3/20, o decreto legislativo 6 que reconheceu, para os fins do art. 65 da lei complementar 101, de 4 de maio de 2000, o estado de calamidade pública de âmbito nacional, tendo os demais entes da federação seguido a mesma linha, a exemplo do Estado de São Paulo, que reconheceu o estado de calamidade pública por meio do decreto 64.879, de 20 de março de 2020.
Teve início, então, uma disputa entre as empresas farmacêuticas, em âmbito mundial, para criação do primeiro imunizante capaz de combater a covid-19. Iniciadas as pesquisas e testes, em meados de dezembro de 2020, iniciou-se o período de divulgação de seus resultados, fazendo com que o Governo Federal elaborasse o Plano Nacional de Operacionalização da Vacina contra a covid-19.
O Plano em questão foi organizado em 10 eixos e prevê 4 (quatro) grupos prioritários, tendo por finalidade a redução, em um primeiro momento, da morbimortalidade e, em um segundo momento, promover o controle da transmissão da covid-19, tendo em vista que não existirá ampla disponibilidade da vacina no mercado mundial que permita a vacinação de, no mínimo, 70% da população, percentual este indicado como sendo o mínimo necessário para interromper a circulação do vírus.
Entretanto, em que pese a existência de previsão explícita no Plano Nacional de Vacinação contra a covid-19, no âmbito Federal, Estadual e municipal, inúmeras são as notícias que dão conta de que determinados agentes públicos estariam se valendo dos cargos para “furar” o cronograma de aplicação das vacinas aprovadas para uso emergencial pela ANVISA.
Diante deste cenário, surge a pergunta: A conduta destes agentes pode ser enquadrada na Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/92), de modo a permitir a aplicação das sanções correspondentes?
Deve-se ressaltar, de início, que a lei de improbidade administrativa (“LIA”) tem por finalidade punir a conduta ilegal ou imoral do agente público, e de todo aquele que o auxilie, exigindo, dessa forma, o elemento subjetivo para sua caracterização.
Para José Afonso da Silva,1 a imoralidade administrativa é gênero do qual a improbidade administrativa é espécie, na medida em que “A probidade administrativa consiste no dever de o ‘funcionário servir a Administração com honestidade, procedendo no exercício das suas funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades dela decorrentes em proveito pessoal ou de outrem a quem queira favorecer’. O desrespeito a esse dever é que caracteriza a improbidade administrativa. Cuida-se de uma imoralidade administrativa qualificada. A improbidade administrativa é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao improbo ou a outrem”.
Assim, valendo-se apenas destes preceitos e realizando, portanto, uma análise superficial sobre a questão, qualquer pessoa conclui, sem maiores dificuldades, que a resposta para o questionamento formulado acima seria positiva. Isto porque, o agente público tem conhecimento do teor do plano de vacinação e, por consequência, da existência de 4 (quatro) grupos prioritários e de que as pessoas não inseridas nestes grupos devem aguardar para serem vacinadas, bem como das competências, responsabilidades e deveres decorrentes da instrução normativa 1, de 19 de agosto de 2014, da Secretaria de Vigilância em Saúde, que regulamenta a portaria GM/MS 1.172/04, no que se refere as ações de gestão dos imunobiológicos promovidos pela referida secretaria aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios para fins de controle de doenças imunopreveníveis, de modo que valer-se da sua função pública para “furar” a fila de vacinação, caracterizaria, no mínimo, a violação aos princípios da moralidade e impessoalidade, permitindo, assim, o enquadramento da conduta no art. 11 da LIA, com a consequente aplicação das sanções previstas no inciso III, do art. 12 da mesma lei.
Todavia, o enquadramento da conduta na Lei de Improbidade Administrativa não é automático, e irá depender dos elementos fáticos e probatórios do caso concreto, na medida em que o elemento subjetivo, dolo, para as hipóteses previstas nos artigos 9º e 11, e, ao menos, culpa grave, para a hipótese prevista no artigo 10º,2 são imprescindíveis, conforme já indicado, para que o ato imputado seja tido como ímprobo, uma vez que a improbidade administrativa não se confunde com mera irregularidade — ou, mesmo, simples ilegalidade — praticada pelo agente, decorrendo de ato ou omissão praticados com má-fé. Isto é, o agente público pratica determinado ato com a vontade deliberada em desrespeito às normas legais e princípios que devem pautar a atuação da Administração Pública, e com o objetivo de causar resultados vedados pela norma jurídica.3
E não poderia ser diferente, já que a ilegalidade e a improbidade possuem graus distintos de lesividade ao direito, possuindo, obviamente, reprimendas também distintas pelo sistema normativo, não por outro motivo que o Colendo STJ já assentou o entendimento de que a ação de improbidade “exige prova certa, determinada e concreta dos atos ilícitos, para ensejar condenação. Não se contenta com simples indícios, nem com a verdade formal”.4
Logo, para permitir o enquadramento da conduta imputada ao agente público na LIA, o Ministério Público e o Magistrado devem efetuar, com base nos fatos e provas previamente constituídos, uma análise objetiva da postura deste frente ao caso concreto, ou seja, deve-se perquirir qual foi a real intenção do agente ao praticar ou deixar de praticar determinado ato, uma vez que o elemento subjetivo não se apura com base no resultado de determinada conduta, caso contrário todo resultado indesejado será enquadrado indevidamente na LIA,5 o que certamente não foi a intenção do legislador.
Seguindo essa linha de raciocínio, é válido dizer que não basta a simples ilação de que houve a aplicação de vacina em pessoa que não se enquadra em um dos grupos de risco, incumbindo ao legitimado para a propositura da ação civil pública por ato de improbidade administrativa demonstrar, cabalmente, a conduta, o resultado e o elemento subjetivo para a prática do ato, e ao juiz apurar de fato a sua ocorrência.
A adoção de entendimento diverso implicará no reconhecimento da possibilidade de se aplicar, no âmbito das ações de improbidade, a responsabilidade objetiva, em total afronta ao entendimento jurisprudencial já pacificado pelos Tribunais Superiores.
Portanto, para enquadramento da conduta do agente público na LIA não basta a ilegalidade ou reprovabilidade da conduta imputada. Imprescindível, também, a comprovação do elemento subjetivo característico do ato de improbidade administrativa, cuja apuração deve ser feita mediante a análise da postura do agente frente ao caso concreto e com base nas provas existentes.
Não sendo possível identificar a existência do referido elemento subjetivo, não há que se falar na aplicação da Lei de Improbidade Administrativa, devendo eventual punição ao agente público observar a legislação específica, a exemplo do decreto-lei 201, de 27 de fevereiro de 1967, que dispõe sobre a responsabilidade dos prefeitos e vereadores, sem prejuízo, obviamente, de eventual responsabilização criminal, caso a conduta enquadre-se em algum tipo penal, a exemplo daqueles indicados pelo MPPE na Nota Técnica CAOP Criminal 1/21, a saber: abuso de autoridade; concussão; condescendência criminosa; corrupção passiva; prevaricação; peculato etc.
O tema é altamente instigante e pode ensejar reflexões profundas que se encontram conectadas ao próprio sentido e alcance geral da Lei de Improbidade, sendo necessário acompanhar cuidadosamente a postura dos agentes públicos e dos órgãos de controle para que possamos ter uma aplicação equilibrada e harmoniosa das normas de improbidade administrativa às situações concretas, de forma a concretizar lição atemporal do filósofo Platão, que sempre compreendeu que a prudência é uma das virtudes cardeais para a obtenção da excelência.
1 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 668-669.
2 STJ. AgRg no AREsp 532.421/PE 2014/0142733-0. Ministro Humberto Martins. DJe 28/8/14.
3 STJ, REsp 480387/SP, 1ª turma, rel. Min. Luiz Fux, j. 16/3/04, DJ 24/5/04.
4 REsp 976.555/RS (2007/0188791-0). DJU 8/4/08. Relator ministro José Delgado.
5 Apelação 0003114-11.2007.4.01.3500 – Tribunal Regional Federal da 1ª Região.