Migalhas de Peso

A violência obstétrica em suas diferentes formas

Da violação aos direitos reprodutivos à violência contra a mulher.

22/1/2021

(Imagem: Imagem Migalhas)

A preocupação com as práticas entendidas como violência obstétrica é resultado de uma conquista histórica de lutas pela igualdade de gênero e pela melhoria das condições de saúde da mulher, sobretudo no que se refere ao período gestacional e ao parto.

Foi com a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948)1, e, posteriormente, com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher - CEDAW (1979)2, que se iniciou a construção do arcabouço jurídico de proteção dos direitos reprodutivos da mulher, os quais passaram a ser reconhecidos como uma categoria dos Direitos Humanos em 1994, na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento - CIPD3.

No Brasil, o reconhecimento dos direitos reprodutivos da mulher e a proteção contra práticas violentas se deram, primordialmente, a partir de leis municipais e estaduais4, sendo o próprio conceito de violência obstétrica disciplinado, pela primeira vez, na Lei Municipal 3.363/13 de Diadema - SP5. À vista disso, em âmbito nacional, hoje existe o Projeto de Lei 878/19 que reúne as legislações regionais e assim define violência obstétrica:

Art. 13. Caracteriza-se a violência obstétrica como a apropriação do corpo e dos processos naturais relacionados a gestação, pré-parto, perda gestacional, parto e puerpério pelos(as) profissionais de saúde, por meio do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, que cause a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.

Parágrafo único. Para efeitos da presente Lei, considera-se violência obstétrica todo ato praticado pelo(a) profissional da equipe de saúde que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres gestantes em trabalho de parto, e no pós-parto/puerpério.

Para além das mencionadas fontes de Direito Internacional que amparam a estrutura jurídica sobre o tema, não se pode ignorar que a nossa Constituição Federal também resguarda os direitos reprodutivos da mulher e confere proteção contra diferentes formas de violência, ao estabelecer diversos direitos e princípios. Dentre eles, há o princípio da igualdade (art. 5º, inciso I) que assegura a proteção da mulher contra todas as formas de discriminação; o princípio da legalidade (art. 5º, inciso II) que preserva a autonomia da pessoa para decidir; os direitos sociais como a saúde, a segurança, a proteção à maternindade e à infância (arts. 6º, 196 e 197); e, sobretudo, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III) que protege a mulher contra toda e qualquer violação ao cuidado respeitoso e humanizado.

Tendo em vista, nos termos do referido Projeto de Lei, que a atual concepção de violência obstétrica leva em conta os atos praticados por profissional da equipe de saúde, fundamental destacar que tal violência é identificada a partir de intervenções consideradas prescindíveis ao atendimento médico. Por óbvio, nem toda intervenção médica constitui violação ao atendimento humanizado; trata-se apenas daquelas práticas cujo benefício não é efetivamente comprovado, realizadas de forma desnecessária, sem a devida comunicação à mulher, e que implicam em prejuízo ao processo natural de parto e em elevação do sofrimento físico e psicológico.

Ainda que essas intervenções sejam necessárias ou desejadas pela parturiente, devem ser consideradas a autonomia da mulher e a sua dignidade em todo o procedimento clínico, de modo que as decisões não sejam resultado de pressão psicológica ou outra forma de constrangimento por parte do profissional.

Nesse sentido, a violência obstétrica pode se apresentar sob as seguintes formas: violência física, verbal e emocional, práticas sem consentimento, cerceamento à autodeterminação e à autonomia, discriminação a atributos específicos6.

  1. Abuso físico

O abuso físico ocorre quando não é respeitada a integridade corporal das mulheres ou quando não são oferecidas melhores alternativas à saúde, de modo que os danos ocasionados à parturiente acabam sendo mais significativos que os benefícios almejados.

Uma violência comum é o uso rotineiro de ocitocina em internações precoces, com o intuito de acelerar os partos, o que pode levar à intensificação da dor e estar associada a riscos graves para as parturientes e seus bebês. Esse método de indução medicamentosa está presente tanto em hospitais públicos quanto privados, sendo utilizado de maneira mais recorrente em pacientes de menor escolaridade.

Outra forma de abuso físico é a prática da episiotomia, corte cirúrgico realizado na vagina para ampliar o canal no momento “expulsivo” do parto. Trata-se de um procedimento que pode ocasionar diversas complicações, como infecções, problemas de cicatrização e aumento de dor no pós-parto, sobretudo quando se fala em relação sexual. Segundo pesquisas realizadas no Brasil7, mais da metade das mulheres que não aderem ao parto por cesárea são submetidas a esse procedimento, o qual ocorre muitas vezes sem a concordância prévia da gestante.

Para além de ser uma violência ao corpo da mulher, esse procedimento pode também configurar uma agressão emocional e de cunho moral à medida que, no final da sutura da episiotomia, não raro é dado um ponto a mais no corte para “estreitar” a abertura vaginal, a fim de proporcionar maior satisfação sexual ao parceiro masculino. Essa intervenção conhecida como “ponto do marido” foi, em certos casos, realizada sem a concordância da mulher, muitas das quais ainda teve de suportar comentários grosseiros e de tom jocoso emitidos pelo profissional. Em outras palavras, esse retrato mostra que o descaso à saúde reprodutiva e à autonomia da mulher é permeado ainda por uma questão de gênero.

Os exames de toque vaginal, igualmente, configuram abuso físico e de caráter sexual, se efetuados de maneira não cuidadosa ou mesmo agressiva, ou se realizados repetidamente por diferentes profissionais porque não há uma devida comunicação dentro da equipe técnica.

Outras formas de manifestação dessa violência se dão pela omissão dos profissionais que privam a paciente de água, alimentos e analgésicos quando indicados, ou pelo impedimento à livre movimentação da mulher durante o parto, prática recomendada para os casos em que não exista nenhuma restrição clínica8.

A chamada “manobra de Kristeller”, que consiste na pressão física realizada sobre o útero da mulher para tentar auxiliar a expulsão do bebê - e que pode provocar sérios danos à mulher (rupturas de costelas e hemorragias) e ao filho -, é a única prática oficialmente contraindicada pelo Ministério da Saúde9, desde 2017. Entretanto, sua prática não cessou completamente.

Por último, a realização de cesáreas sem indicação constitui outra forma de violência obstétrica. Embora essa intervenção não seja recomendada pela OMS, sobretudo quando se trata de procedimento para aceleração do trabalho de parto, é uma prática que vem crescendo no Brasil. As principais razões desse aumento são: (i) a falta de informação sobre seus riscos a curto e longo prazo, os quais devem ser de conhecimento da gestante, principalmente, durante o período pré-natal; e (ii) o incentivo feito pelos próprio médicos para que a gestante opte pela cesariana.

  1. Violência verbal e emocional

No âmbito jurídico, a violência verbal e emocional representa uma afronta ao princípio constitucional da dignidade humana, bem como o desrespeito a diversas leis que resguardam o direito ao parto humanizado.

No plano concreto, tal tratamento pode constituir ameaça à integridade física e psicológica da parturiente. Isso porque condutas coercitivas e de constrangimento, uma vez que se sobrepõem à liberdade de escolha da mulher, evidenciam uma espécie de ferramenta de persuasão, capaz de legitimar algum tipo de abuso físico ou mesmo propiciá-lo.

Presente em diversos relatos, um caso que bem retrata essa realidade é o exemplo do profissional que exerce pressão emocional sobre a parturiente, culpabilizando-a pela eventual complicação no nascimento do próprio filho, como forma de convencê-la sobre a necessidade de se realizar uma episiotomia.

  1. Discriminação

A discriminação que, não raro, ocorre durante o atendimento médico está associada aos aspectos físicos, de classe, idade, cor da pele e étnicos-raciais. Esse tipo de violência pode se revelar de diferentes maneiras, dentre elas: pela agressão verbal, a partir de xingamentos e palavras humilhantes; pelo descaso da equipe médica, ao ignorar as decisões, os desejos e eventual sofrimento da parturiente; ou também quando o profissional tenta ludibriar uma paciente pressupondo sua ignorância.

  1. Práticas sem consentimento e cerceamento à autodeterminação e à autonomia

A falta de informação - ou a desinformação, em muitos casos - sobre as práticas atreladas ao parto e ao pós-parto é o principal fator que leva muitas mulheres a abdicarem de sua autonomia nos momentos de escolha. A mulher deve ter plena condição de se autodeterminar, ou seja, ter conhecimento suficiente sobre os riscos e benefícios atrelados a cada procedimento e conduta médica, para que então possa tomar uma decisão, cujos efeitos incidirão sobre seu próprio corpo e de seu filho.

Ocorre que esse cerceamento à autonomia é resultado, não somente da ausência de informações, mas igualmente da comunicação que se dá de forma inadequada por parte do profissional da saúde, o que evidencia, muitas vezes, o descaso e a discriminação no atendimento médico.

Em vista disso, o dever de prestar informação qualificada foi inserido nas diretrizes do parto humanizado e hoje é assegurada, por exemplo, pela Lei nº 15.759/2015 do Estado de São Paulo, que prevê a elaboração do Plano Individual de Parto10.

A responsabilização

A mulher que é vítima de qualquer ato que configure violência obstétrica pode buscar a responsabilização de quem o praticou, tanto no âmbito administrativo quanto no âmbito judicial.

A responsabilização na esfera administrativa decorre, primordialmente, do Código de Ética Médica11, e deve ser processada a partir da denúncia perante a Ouvidoria, a Comissão Ética do Hospital ou o Conselho Regional de Medicina. Esse dispositivo prevê a responsabilidade pessoal e não presumida do profissional12 pelas condutas que lhe são proibidas, podendo o médico sofrer sanções disciplinares13. Dentre as condutas vedadas, destacam-se:

Art. 14. Praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação vigente no País.

Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.

Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.

Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

No âmbito judicial, é possível buscar a responsabilidade do agente nas esferas penal e civil. Quanto à primeira, não existe uma tipificação que identifique a “violência obstétrica”, mas, sim, diferentes condutas previstas no Código Penal Brasileiro que podem refletir essa violência, a depender das circunstâncias, como, por exemplo, os crimes de constrangimento ilegal (art. 146), de ameaça (art. 147), de maus-tratos (art. 136) e de lesão corporal (art. 129), dentre outros tipos penais.

Já na esfera civil, a reparação à vítima se dá pelo ingresso com uma ação judicial de natureza indenizatória contra o profissional da saúde, o hospital ou o convênio, sendo necessária, no caso, a assistência de um advogado ou defensor público. Pelos dispositivos legais14, a indenização deve se basear nos danos morais - e, eventualmente, estéticos e materiais - suportados pela mulher.

Portanto, as práticas médicas que desrespeitam os direitos reprodutivos das parturientes, para além de constituírem uma violação de direitos humanos, evidenciam algumas das diversas formas de violência contra a mulher e refletem, assim, uma questão de gênero.

O tratamento desrespeitoso e não digno é uma realidade comumente presente em um dos períodos mais significativos e delicados da vida de uma mulher. É responsável por provocar sequelas físicas, emocionais e psicológicas em grande parte delas, inclusive naquelas consideradas saudáveis no período gestacional.

Em vista disso, as estratégias de proteção dos direitos reprodutivos da mulher devem ocorrer de maneira plena, a fim de que a abordagem não se dê apenas no plano da reparação das vítimas, mas, antes de tudo, com vistas à prevenção contra o cometimento dessas práticas, zelando-se assim pela dignidade da parturiente em todos os momentos. 

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1 Declaração Universal dos Direitos Humanos. Organização das Nações Unidas. 1948. Ver em: clique aqui.

2 Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher - CEDAW. Organização das Nações Unidas. 1979. Ver em: clique aqui.

3 Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento - Plataforma de Cairo. 1994. Ver em: clique aqui.

4 Exemplos: Lei Estaduais de Santa Catarina (Lei 17.097/17), de São Paulo (Lei 15.759/15), de Minas Gerais (Lei 23.175/18), de Tocantins (Lei 3.385/18), dentre outras.

5 Art. 2º. Considera-se violência obstétrica todo ato praticado pelo médico, pela equipe do hospital, por um familiar ou acompanhante que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres gestantes, em trabalho de parto ou, ainda, no período de puerpério.

6 Direito das mulheres no parto: conversando com profissionais da saúde e do direito. Organização: Coletivo Feminista de Sexualidade e Saúde, 1ª edição, 2017, p. 18.

7 LEAL, Maria do Carmo et al . Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30, supl. 1, p. S17-S32, 2014.

8 Manual de Boas Práticas de Atenção ao Parto e Nascimento da OMS (1996).

9 Notícia disponível em: clique aqui.

10 Ver o artigo anterior “Direitos da gestante e parturiente: Saiba os seus!”.

11 Resolução nº 1.921/2009 do Conselho Federal de Medicina.

12 Art. 1º, parágrafo único, do Código de Ética Médica.

13 Lei 3.268/57, disponível em: clique aqui.

14 Art. 927 do Código Civil; arts 6º, incisos, e 14, caput e § 4º, do Código de Defesa do Consumidor.

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Cartilha “Direitos das mulheres no parto: Conversando com profissionais da saúde e do direito”, elaborada por Bianca Zorzam e Priscila Cavalcanti, com organização do Coletivo Feminista de Sexualidade e Saúde, 1ª edição, 2017.

Diretrizes de Atenção à Gestante: a operação cesariana, Edição nº 179 (março/2016), da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS - CONITEC, do Ministério da Saúde - Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, disponível em: clique aqui.

Recomendações da Organização Mundial da Saúde (2018); versão em inglês “WHO recommendations: Intrapartum care for a positive childbirth experience”, disponível em: clique aqui.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Responsabilidade civil. v.4. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

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Irene Jacomini Bonetti
Graduada em Direito pela USP, com diploma de Licence en Droit pela Université Jean Moulin III de Lyon-França, Pós graduanda em Direitos Humanos pelo CEI e Mestranda em Direito e Desenvolvimento pela FGV.

Susie Yumiko Fugii
Graduada em Direito pela USP, com diploma de Licence en Droit pela Université Jean Moulin III de Lyon-França.

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